Uma música, duas músicas, três músicas, todas pareciam iguais. Quem já teve o desprazer de ir à uma missa dominical sabe o que estou falando. Por Rodrigo Araújo

Sete de Setembro, o glorioso dia da Independência do Brasil. Chegamos à porta da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás por volta das 8:30h, o calor começa a se fazer presente e eu nem mesmo sei por que raios escolhemos nos concentrar aqui na porta deste órgão. O que queremos mesmo? As ruas estão com um movimento que não corresponde ao habitual de uma sexta-feira, já que o feriado nacional dispensa as pessoas da rotina, do mister cotidiano. Mas esta história não começa agora.

Mais ou menos duas semanas atrás, estávamos presentes numa reunião de preparação para o Grito dos Excluídos. Estávamos lá por conta da atuação como apoio de uma outra luta, porque por mim mesmo eu não perderia meu tempo. Mas vamos lá, fazer o quê? Como não se tratava da primeira reunião, chegamos e as coisas já estavam praticamente todas encaminhadas: metodologia, trajeto, etc. Uma das coisas que haviam sido previamente decididas era que as falas seriam estritamente controladas, duas em cada parada, proferidas por representantes de cada uma das cinco bandeiras de luta escolhidas para aquele ano e previamente selecionados pela organização do ato. Além disso, havia sido disposto que as pessoas se organizariam em fila durante o trajeto. Eu não compreendi bem como eles iriam fazer as pessoas ficarem em fila no meio de uma manifestação e não me atentei bem para isto, mas me chamou a atenção o microfone ficar restrito a alguns escolhidos. Outra pessoa, na mesma condição que a minha, mas muito mais incomodada, questionou por que diabos o microfone ficaria restrito e propôs que houvesse a democratização das falas. Pessoas se entreolham e, depois de uma longa e retorcida explicação, percebemos que o motivo era o óbvio mesmo. Os organizadores não queriam perder o controle do que seria dito, para não perder o tom ritualístico do evento.

Vi uma bandeira do PSOL, alguns com broches do PT, outro com o famoso boné vermelho do MST, um jornalzinho do PSTU, panfletos sobre transporte, alguns cartazes e placas manifestando problemas que passavam pela educação, saúde, moradia, segurança pública – que correspondiam exatamente às secretarias de governo, só faltava serem diretamente direcionadas aos respectivos secretários. Oficialmente, o evento tinha como pauta a reinvindicação de um “Estado a serviço da nação que garanta direitos a toda população”, tendo como motes a “luta pela não privatização dos bens públicos, pela reforma agrária, por uma política de segurança pública, pela não criminalização da pobreza e dos movimentos populares e tantas outras questões da conjuntura que favorece a corrupção”, a este último ponto se referiam ao escândalo do Cachoeira, algo a que nenhum militante de Goiás pode deixar de fazer referência.

Começa a manifestação e o desespero maior da voz vinda do carro de som era para que não fechássemos a rua por completo, pois corríamos perigo no trânsito! Perigo?! Uma das faixas da pista ficou aberta por alguns instantes, tempo suficiente para constatarmos que era muitíssimo mais perigoso deixar os carros passarem em uma rua muito estreita, em alta velocidade, que não os deixar passar por completo e corrermos o risco de quererem atropelar-nos todos de uma vez. Fechamos a rua toda. Ante aquela derrota, a preocupação da voz passou a ser a organização das tais filas, aquelas que eu não tinha entendido direito. Quando a coisa finalmente aconteceu, vi que estávamos organizados em filas indianas, tais como em uma marcha militar – será que estávamos assim por conta da parada militar do sete de setembro? -, o que impedia a livre circulação das pessoas e aquele bate-papo esclarecedor baseado nas reflexões surgidas da atitude de luta que tomávamos.

Uma música, duas músicas, três músicas, todas pareciam iguais. Quem já teve o desprazer de ir à uma missa dominical sabe o que estou falando. Aquelas músicas cantadas com a mesma entonação, com o mesmo violão, muitas vezes pela mesma pessoa. Todas as músicas pareciam ser a mesma e aquilo me causava desespero, aquele tom de louvor, aquela súplica, só faltava ficarmos todos de joelhos ali mesmo no asfalto quente. Depois disso, a primeira parada. Exceto a fala do velho guerrilheiro do Araguaia – que falava sobre imperialismo yankee e a salvação do nosso Brasil querido – e a voz do carro de som, todas as demais eram cronometradas e gentilmente encurtadas pelos sinais da direção do ato. Findas as falas, seguimos para o segundo ponto, a maldita fila indiana se mantinha, apesar da resistência de alguns. Finalmente chegamos, ficamos debaixo de um sol escaldante, já passava das onze horas e a temperatura provavelmente estava acima dos 35ºC (com umidade abaixo dos 20%). A voz do carro, vendo a situação, disse que ficaríamos só cinco minutinhos, que se converteram em quase meia hora. Calor, sol, violãozinho, aridez. Um companheiro da luta que acompanho falou pela primeira vez em um grande ato – e por sinal muito bem – mas por conta da situação quase não fixei o que ele disse. Sensação de tortura.

Seguimos para o terceiro ponto, a avenida que entramos tinha belas árvores, que refrescaram substancialmente a caminhada. Depois de algum tempo paramos no terceiro ponto, em frente a um velho hotel, um dos símbolos culturais da cidade, que até há pouco tempo abrigava todas as sextas-feiras um espetáculo de chorinho e fechava uma das mais movimentadas avenidas. Era algo verdadeiramente admirável, um oásis cultural no meio da aridez de Goiânia, proibido por argumentos pouco convincentes que diziam respeito à existência de traficantes no meio da turba que se formava. Em qual concentração de pessoas não existem traficantes mesmo? Eu já vi traficantes até mesmo em um grande evento gospel que acontecia na cidade em que eu morava, que fui, aliás, para conhecer algumas garotas. Santo, santo. Mudaram o Chorinho de lugar, um lugar que não me pareceu de todo mau, embora isolado do resto das pessoas, policiado pela guarda-municipal, onde tudo parece mais ordeiro e com a cerveja um real mais cara! Será que os poucos ambulantes que conseguiram o direito de entrar no novo espaço pagam alguma coisa para a Prefeitura? É provável que a resposta seja positiva. Mas isto não importa agora, o fato é que o lugar se tornou um fetiche, um dentre muitos que as organizações costumam adotar, mas pelo menos em frente a este tinha uma sombra vinda de uma estrutura formada por primaveras (trepadeiras com flor arroxeada).

Porém, o tom do discurso se mantinha, a manifestação estava com menos da metade do número inicial – ou menos ainda, só não afirmo com força com medo de ser injusto. Claro! Quem é que quer participar de uma coisa destas? Uma manifestação que não se comunicou com ninguém, que não deixava as pessoas comunicarem livremente suas angústias, que não as deixava circular livremente; em um feriado onde transitariam pelas ruas, além de nós, pessoas envolvidas com o desfile cívico – já que os edifícios residenciais são em número reduzido onde o desfile passou. Neste quadro, para nossa surpresa (convertida em um lapso de alegria), surgiu no horizonte outra manifestação, todos vestidos de preto. Era a “Marcha Contra a Corrupção”. Por um instante pensei que, apesar de serem contra a corrupção, existiriam alguns com quem conversar, trocar algumas ideias sobre essas coisas do Sete de Setembro, sei lá, esperança de mudança daquela situação desalentadora. Afinal, estas manifestações contra a corrupção reúnem um grande número de jovens, pessoas que têm um afã de se mobilizar, mas que não conseguem direcionar muito bem as coisas e, sendo assim, apesar da média geral ser muito ruim, sempre existem aqueles com quem conversar e distribuir alguns panfletos que carregávamos. Sei lá, esperança.

Passaram rápido, alguns gritando ‘pelegos, pelegos’, talvez se referindo às bandeiras, ou quem sabe ao próprio Grito dos Excluídos. Efetivamente, não houve comunicação alguma. Do mesmo jeito que surgiram, passaram. Ninguém se entendeu, ninguém trocou nada, nem mesmo palavras de ordem foram ditas. A indignação dos que passaram foi expressa pelo asco, pelo medo de chegarem perto dos ‘pelegos’ e pegarem sua doença, embora muitos dos que ali estavam fossem pessoas envolvidas com movimentos de luta, como ocupações urbanas e rurais, lutas contra a violência policial, etc. Mas logo me lembrei. São aqueles que acreditam que é possível conceber um ser humano moralmente elevado, acima da mesquinharia, longe da corrupção, imune a fraquezas. São os puros. Que acreditam que em algum lugar do mundo deve existir algo ou alguém como um deus ou um mito, que irá retirá-los do atoleiro. Como isto é disseminado mesmo entre gente que acredita ser de esquerda! Em nenhum momento cogitam a possibilidade de uma estrutura social, com engrenagens da qual fazem parte, a moê-los todos numa massa chamada sociedade. Não é contra isto que lutam, mas sim contra a corrupção e ponto. Assim se organizam em grupos pela limpeza ética do Brasil, usam até as vassourinhas de Jânio Quadros, pela extirpação do ‘mal’ da corrupção. Por fim entendo, naquele momento, que estão mesmo é esperando alguém para guiá-los e retirá-los daquela situação. Angústia, desânimo.

Mas fico atônito quando percebo a gritante ironia daquela situação: mal sabiam que eles são os mais próximos do que chamavam de ‘pelegos’, que a pureza e a elevação moral também estavam ali onde ficaram os do Grito. Nunca passou pela cabeça deles que talvez fossem capazes de dar algum dinamismo e ajudar a romper com toda aquela ordem instituída. Correndo o risco de ser um pouco canalha e me aproveitando da inspiração maniqueísta: para o bem e para o mal provavelmente eles teriam mais a trocar que quaisquer outros; e mudar aquela situação desenxabida. Que tolo eu fui! Estão todos na linha.

Depois deste espetáculo deprimente, só me restou uma saída digna: avisei alguns e parti pensando nestas coisas que acabo de escrever.

Ilustrações: de cima para baixo, duas telas de Theo van Doesburg, uma fotografia de Thomas Farkas, uma tela de Geraldo de Barros e uma fotografia de José Yalenti.

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