A construção da verdade ou da obrigação de combater a tradição, família e impropriedades
uma resposta ao texto “Um modismo equivocado” de Pedro Pomar
É engraçado como a defesa de um ideal pode levar à cegueira de seu contexto. Beira quase a uma religião, com direito a discursos de autoridade para justificar sua visão numa repetição tântrica. Sobretudo quando um pretenso diálogo se inicia desqualificando como “moda” a perspectiva do outro. É o que acontece no artigo Um modismo equivocado de Pedro Pomar, onde o autor prima pela repetição ad eternum de suas “verdades” históricas através da desqualificação dos demais que delas não compartilham em uníssono.
No essencial, o texto “Um modismo equivocado” procura afirmar que a expressão “ditadura civil-militar” não passaria de um modismo, que desconsideraria anos e anos de estudos e uma pretensa tradição “consolidada!” que legitimaria o uso da expressão “ditadura militar”. É importante para o autor retirar o termo “civil” do meio de campo. Isto porque, embora reconheça o apoio cúmplice de entidades civis nacionais e estrangeiras, quem mandava matar, encarcerar e perseguir eram os militares e seus governantes. De acordo com sua retórica à moda antiga, o poder é daquele soberano identificado como o que manda, é quem assina as ordens. E neste sentido, não haveria nada no campo civil. Nos salões do poder executivo, a moda era a farda e não o terno cinza de seus cúmplices.
Claro, o autor não deixa de reconhecer, como jornalista que cumpre minimamente sua lição, o apoio de setores do capital nacional e estrangeiro. Faz parte de sua visão arcana reconhecer a ditadura como efeito do capitalismo. Lembra, inclusive, a entrada de personalidades civis no salão do Executivo, mas no período de “abrandamento”, com o presidente Figueiredo tendo como vice Aureliano Chaves (embora, estranhamente, esqueça de mencionar tecnocratas da economia como Roberto Campos e o neo-petista Delfim Neto, entusiasta dos governos Lula e Dilma. Ato falho?). Esquece que talvez o último período da ditadura seja o mais pernicioso e, neste sentido, violento, pois configurou uma anistia para os criminosos, assassinos e torturadores, e uma reconfiguração de poder em que as chagas foram escamoteadas e civis e militares envolvidos nos crimes do regime de exceção puderam seguir com tranquilidade suas vidas, numa pretensa democracia onde a ruptura com as estruturas do regime autoritário foram tênues e apaziguadoras.
Dada estas caracterizações, vamos às possibilidades esquecidas pelas “verdades” de Pomar. Se há algo que observamos neste período de abertura dos arquivos das ditaduras na América Latina é o grande lastro que a sociedade civil ofereceu aos campos militares. Não se trata apenas de um mero apoio a alguém que decide por conta própria. Trata-se por exemplo de financiamento direto à tortura, garantindo o sustento de muitos criminosos ainda hoje, como lembrou generosamente o próprio Cabo Anselmo em entrevista ao programa Roda Viva. Neste período, grandes conglomerados de comunicação se fortalecem e tornam-se hegemônicos, recebendo generosas somas de capitais dos governos autoritários, recompensadas com a exaltação ao Brasil que se formava sob a égide da caserna. É o período em que se consolidam muitos dos grupos que monopolizam as redes de informação até hoje na América Latina (no Brasil a Rede Globo, na Argentina o grupo Clarin, envolvido em sequestros de filhos de militantes desaparecidos). E por que não recordar a brutal e descontrolada invasão do capital estrangeiro em toda a América Latina, recompensa talvez aos generosos serviços prestados aos golpistas. Mais do que uma cumplicidade, elementos civis de diversas ordens, pois o capital é mais diversificado do que a estrutura militar, firmam um pacto em torno de uma sociedade baseada no progresso da indústria e no regresso da tortura. Beneficiam-se diretamente do autoritarismo, pois onde a exceção é a regra, a concentração é a norma. Esquecer este “casamento” significa apreender meias-verdades – pecado mortal para um historiador, erro de estudante de primeiro ano, falha imperdoável para quem se declara um militante de esquerda. O cidadão Boilesen agradece.
O problema central na retórica de Pomar está na concepção de poder que carrega ao separar o campo militar do civil. Se o poder é caracterizado por quem assina as ordens, então o papel da sociedade civil é necessariamente minimizado. Ora, é possível analisar o poder para além de uma relação de ordens, como um jogo de forças. Afinal, quem detinha (e detêm) os meios de comunicação, quem tornava concreto o aparato simbólico de exaltação ao regime, quem detinha os meios de produção, quem fabricava as máquinas de tortura e quem financiava os torturadores? Na visão à moda antiga, o poder militar mandava e desmandava, enquanto os cúmplices, temerosos por alguma represália, acatavam as ordens. Não havia planos da burguesia nacional e estrangeira no interior desta estrutura de poder. Daí a impressão de que os elementos da sociedade civil mais fervorosos, defensores da ditadura, eram exceções. Como se a estrutura do poder não transcorresse de um polo de forças mais amplo, mais diverso, com interesses menos monolíticos.
O Cordão da Mentira, bloco carnavalesco do qual fazemos parte, assumiu a nomenclatura “civil-militar” em seu desfile. Não porque estaria assim vestindo as cores da estação, mas porque, como sua trajetória revelou, estruturas civis existentes até hoje, como a TFP, a Folha de São Paulo e a faculdade Mackenzie foram ícones civis de apoio ao regime, e ostentam ainda respeitabilidade e poder a despeito da falta de auto-crítica à seu apoio a barbárie de nosso passado recente. Foi um ato pensado que, dentre tantos outros esculachos que assumiram também a nomenclatura “civil-militar”, na maioria promovidas por jovens que não fazem parte da geração de Pomar, refletiu uma relação histórica fundamental para compreender porque até hoje, os vínculos da ditadura civil-militar tem efeitos profundos. Queremos saber porque é tão difícil um país procurar estabelecer uma Comissão que investigue o passado sombrio de sua história. Queremos entender quais os vínculos das estruturas presentes com o passado, seja em nossos meios de comunicação, em nossos aparatos financeiro e indústrial, seja na lógica de extermínio que continua a reger o cotidiano de nossas periferias. Não é demérito do movimento querer reconhecer todos os personagens da tragédia. Também não é discordar de militantes mais aguerridos e menos retóricos, que identificam a ditadura apenas como militar. Este é um modo legítimo para codificarem suas angústias mas, ao nosso ver, insuficiente para compreendermos os impasses contemporâneos.
A reação de Pomar à nomenclatura “civil-militar” soa, enfim, exagerada. Por mais que sua retórica se dirija à defesa da Comissão da Verdade (e a Justiça??), construída a duras penas, e em início de atividades, pisando no campo minado que a ditadura nos deixou até hoje, afirmar o campo civil como parte da estrutura de poder ditatorial não é nenhum desserviço, apenas uma constatação já presente em vários países vizinhos.
Na insistência de separação entre civil e militar, num esforço dantesco que mais caberia às forças conservadoras do que à um declarado militante de esquerda, Pomar protagoniza um triste papel. Na ânsia cega de afirmar suas convicções, o oprimido torna-se mais radical do que o opressor. Torna-se surdo diante do movimento histórico e segue cantando sua ladainha. Denuncia assim os que não compartilham de suas ideias assentadas na autoridade de tempos ancestrais, assumindo a autoridade de quem detém a verdade para si e não dialoga com ninguém. Prefere atacar a nova geração do que repensar sua posição. Prefere atacar os jovens que clamam por verdade e justiça do que os aliados da ditadura, que continuam servindo-se das benesses do poder. Arroga-se para isso do discurso da tradição, posto ser neto de um dos combatentes fundadores do PCdoB (assassinado pelas forças da repressão no episódio conhecido como Chacina da Lapa).
Que virada espetacular! Típica da novela da Globo. Parabéns, Pomar, aos seus serviços! Os civis subtraídos da nomenclatura (civil)-militar agradecem à política do esquecimento. A memória seletiva será certamente recompensada. Uma nova excrecência, o peleguismo de esquerda, finca raízes na historiografia e na política, e a TFP ressurge como farsa, em seu espelho invertido à esquerda: a moda agora é Tradição, família e impropriedades!
Por Coletivo Zagaia
Zagaia é um coletivo de criação, crítica e experimentação estético-política. É um dos grupos que organizam o Cordão da Mentira. www.zagaiaemrevista.com.br