O Tribunal Popular se propôs a simular um julgamento das ações criminosas do Estado brasileiro. Apesar de ter contado com a adesão de diversos movimentos sociais, a iniciativa é matéria polêmica entre setores da esquerda. Por Passa Palavra
Entre os dias 04 e 06 de dezembro passado, movimentos sociais, entidades em defesa dos direitos humanos e associações ligadas a comunidades pobres de centros urbanos e rurais brasileiros realizaram o Tribunal Popular: o Estado no banco dos réus. O objetivo foi o de promover um julgamento alegórico, que apontasse e analisasse alguns episódios exemplares de crimes que o Estado Democrático e de Direito brasileiro vem sistematicamente cometendo contra seus cidadãos, à margem do que reza a carta constitucional de 1988, bem como o de fortalecer a solidariedade entre aqueles que são vítimas diretas do aparelho repressivo estatal e os que se indignam com tais atrocidades.
Os quatro eixos temáticos em que foram divididas as atividades originaram teses de acusação que foram apresentadas aos presidentes, aos acusadores e aos jurados de cada sessão. Foram elas: a violência estatal sob pretexto de segurança pública em comunidades urbanas pobres (em particular, o caso do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro); a violência estatal no sistema prisional (com destaque para a execução sumária de jovens negros na Bahia); a violência estatal contra a juventude pobre (episódios de abuso policial em maio de 2006 e a morte de crianças nas instituições “sócio-educativas” para menores de idade, ambos em São Paulo); e a violência estatal contra movimentos sociais (criminalização de lutas sindicais, pela terra e pelo meio-ambiente).
A iniciativa aproveitou o ensejo da celebração dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), assunto sempre controverso entre os meios de esquerda. Isto porque, de uma perspectiva mais radical, o documento comporta antagonismos inconciliáveis na medida em que assegura a todas as pessoas o igual acesso aos recursos indispensáveis às necessidades mais básicas (como saúde, educação, moradia, etc.), ao mesmo tempo em que defende o exclusivismo e a inviolabilidade da propriedade privada, por exemplo; o que compõe um quadro onde a luta por direitos na maioria das vezes contraria a legalidade do sistema.
De todo modo, as sessões do Tribunal Popular, realizadas na Faculdade de Direito São Francisco da Universidade de São Paulo, mesmo que simbólicas, permitiram reunir, durante todo o seu processo de construção, ativistas sociais seriamente comprometidos com os mais variados problemas da população pobre do país. Neste ínterim, movimentos sociais e entidades de direitos humanos trocaram informações a respeito dos enfrentamentos que diariamente suas comunidades travam contra a máquina repressora das elites brasileiras, entrelaçando experiências concretas e, reconhecendo-se mutuamente, tiveram a oportunidade de esboçar um programa de ação baseado em uma necessidade imediatamente comum: resistir ao agravamento das investidas letais do poder público brasileiro.
Passada a palavra a estes homens e mulheres costumeiramente amordaçados pelos instrumentos legais de participação política, ignorados pela imprensa corporativa e tantas vezes sequer associados a alguma entidade representativa, foi posto a nu aquilo que para muitos nunca fora novidade: o sem-número de atitudes brutais que os agentes de todas as instâncias do aparelho estatal – políticos profissionais, polícias, exércitos, milícias, juízes, promotores de justiça e outros funcionários de alto escalão – deliberadamente fazem pesar sobre os que teimam em resistir, reclamar ou pôr em prática as mínimas garantias sociais aludidas pela lei.
O veredicto final a que chegaram os jurados concluiu ser o Estado brasileiro culpado pela prática de várias modalidades, formais ou informais, de violação da dignidade humana. Explicitou-se a existência de grupos de extermínio, execuções sumárias, torturas, desaparecimentos, prisões arbitrárias, maus-tratos e super-exploração do trabalho carcerário, morosidade de processos judiciais, abordagem policial truculenta e espancamento à juventude pobre (em especial, negra), toques de recolher, mandados de busca coletivos, e outros abusos.
Em junho de 2007, no Complexo do Alemão (bairro periférico da cidade do Rio de Janeiro), por exemplo, uma “Mega-operação policial” – como espetacularmente são noticiados estes tipos de ações envolvendo militares, civis e soldados da Força Nacional – acarretou a morte de, no mínimo, 19 pessoas, entre elas crianças. Ocorre que, fatos como este costumam ser registrados como Autos de Resistência, de modo que os agentes de segurança pública não sejam denunciados pela caracterização legal que lhes conviria, ou seja, homicídio doloso. O Tribunal apurou, entretanto, que a intenção de matar é clara quando tomamos conhecimento de que 46% dos corpos abatidos pela polícia carioca apresentam 4 ou mais marcas de bala, 61% recebem ao menos um disparo na cabeça, 65% mostram um disparo na região das costas, sem falarmos dos vários casos de tiros à queima-roupa.
No que se refere à crescente criminalização dos movimentos sociais, os relatos demonstraram não faltar enquadramentos penais àqueles que se aventuram em lutar pelo reconhecimento de direitos. Emblemática tem sido a ação empreendida pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, o qual, em 2008, invocou um artifício residual da legislação do período militar – a Lei de Segurança Nacional – para indiciar oito militantes do MST. Em outras situações, a represália aos camponeses pobres organizados vai mais longe, não sendo raro que os grandes proprietários, com a conivência das autoridades públicas, lancem mão de milícias privadas para perseguir e silenciar ativistas políticos. [ver mais sobre isso em Plantados no Chão, livro de Natália Viana] Nos circuitos urbanos, por sua vez, têm-se tornado constantes os apelos ao “direito de ir e vir”, como forma de evitar que entidades estudantis e sindicais realizem passeatas públicas, além das retaliações a membros mais combativos destes órgãos, habitualmente autuados por formação de quadrilha.
Feito o balanço dos 20 anos do experimento democrático no Brasil, e dos 40 anos da DUDH, uma das questões que se nos impõem não é nova: é possível que os direitos fundamentais da vida humana sejam minimamente alcançados no vigente modelo econômico? Haverá um dia em que as garantias humanitárias deixem de constar apenas como letra morta nos documentos oficiais (que os senhores do poder estão sempre a reformular) para tornarem-se mais concretamente perceptíveis no dia-a-dia das pessoas comuns, sem que estas, por sua própria força, deitem abaixo um sistema social baseado na exploração e na produção interminável de desigualdades?
Porém, até lá, mais urgente, realista e instrutivo seria afrontarmos desde agora as malditas dívidas históricas que foram herdadas com a nossa forma singular de inserção no capitalismo. E o Tribunal suscitou esta reflexão ao demonstrar que a conjugação entre miserabilidade extrema e opressão estatal foi e continua sendo a tônica das políticas sociais que as classes dirigentes reservam para os países outrora colônias, e quão parcos e ilusórios foram os avanços democráticos para que possamos hoje considerar definitivamente superado o legado dos quase 400 anos de escravidão moderna e a sucessão de regimes autoritários.
Talvez esse passado peculiar ajude a explicar a relativa naturalidade com que mesmo o povo castigado, tantas vezes, se acanha diante do problema: “Brasil é assim, sempre foi. O que se pode fazer?” A mesma hipótese pode ser aplicada para se tentar compreender o porquê de sermos capazes de expressar nas ruas o nosso sentimento de repúdio à violência sofrida por povos de outro lugar qualquer do mundo (o que é obviamente muito legítimo), mas sermos ainda muito tímidos, salvo alguns casos especiais, quando se trata de se rebelar contra a brutalidade institucional que ocorre bem debaixo dos nossos narizes.
As barbaridades cometidas contra a pobreza, é bem sabido, não são um problema exclusivo da realidade brasileira. Ao que tudo indica, elas têm se estendido para todos os lugares do mundo. Seja na Grécia, na França, em Portugal ou na Palestina, cada dia mais, trabalhadores, minorias étnicas, ativistas políticos, moradores de bairros pobres, etc, vêm se tornando alvo predileto das caçadas estatais. Nalgumas situações, até menos escandalosas que as descritas e julgadas pelo Tribunal, jovens e trabalhadores marginalizados não têm deixado por menos: rompem o silêncio e as amarras, forçando, através de grandes manifestações de descontentamento social, os beneficiários da ordem a, pelo menos, repensarem suas estratégias de dominação. Estes atos sim, é que são reconhecidos pela grande imprensa como feitos de violência e vandalismo.
Diante deste quadro, o pontapé inicial dado pelas entidades populares e pessoas envolvidas é acertado e digno de incentivo. O que parece estar ocorrendo de maneira bem sucedida, já que agora o desafio do Tribunal Popular é expandir-se e tornar-se uma articulação permanente, que possa formar uma “rede nacional de proteção àqueles que sofrem constantemente as violações do Estado”, como declara o seu site oficial. Atualmente, ele tem-se constituído por diversos comitês espalhados pelo Brasil, onde assume formas organizativas particulares e debate os temas mais candentes de cada região. Contudo, para que os seus objetivos expressos e originais não se desviem, é preciso que os organismos de base estejam à frente deste processo de consolidação, evitando que ele se converta em mais uma instituição burocrática, um mero palanque ou meio de promoção social para os representantes profissionais dos sem voz, que mais não fazem senão facilitarem a reprodução das violências que dizem condenar.