Gacheke Gachihi entrevistado por Patrick Schukalla
Esta entrevista teve como objectivo uma visão geral do papel dos movimentos de base no processo eleitoral do Quénia. As opiniões de Gacheke Gachihi são bem informadas e por isso enriquecedoras, uma vez que ele faz parte do Bunge la Mwananchi [Parlamento do Povo] [1] e do Unga Revolution [2]. O Bunge la Mwananchi é um movimento social de base do Quénia, que visa a criação de secções locais por todo o país. Gachihi também está envolvido na criação de centros de aprendizagem comunitários. Estes centros funcionam como meios adicionais de implantação do movimento social nas diversas comunidades do Quénia com o fim de conseguir transformações sociais. O seu principal campo de luta é o bairro de Mathare, nos arredores de Nairobi [capital do Quénia], onde se candidatou ao parlamento na lista do partido Safina [3], nas recentes eleições gerais.
Uma abordagem pela base: força e desafios do processo democrático
Segundo explicou Gacheke, a força de movimentos como o Bunge la Mwananchi está na sua ligação directa ao terreno. Enquanto que o objectivo dos partidos políticos dominantes é conquistarem o poder para manterem um sistema em que a elite existente pode continuar a colher benefícios e a exercer a sua influência económica e política, os movimentos sociais têm um programa de acção baseado em problemas a resolver, relacionados com necessidades básicas. Falando do seu contexto local em Mathare, Gacheke referiu que as organizações de base se preocupam com a falta de acesso a cuidados de saúde, alimentação, educação e habitação, e procuram mobilizar a população local das classes mais pobres. Embora as campanhas, os debates e os apoios nestes e outros tópicos que tenham a ver com a realidade social da grande maioria sejam encarados com o maior interesse em qualquer tempo e em qualquer lugar, a verdade é que são postos na prateleira assim que chegam os períodos eleitorais.
“Há um programa de acção para as necessidades básicas – e é disso que se ocupam o Bunge la Mwananchi e outras organizações da sociedade civil, mas quando se trata do processo eleitoral ou do processo do compromisso político institucionalizado em geral, a verdade é que nós ainda não criámos as ferramentas necessárias”, diz Gacheke.
Referindo-se à sua experiência nos movimentos e aos programas em que teve um papel activo, ele lembra o trabalho feito acerca de como promover eficazes movimentos pela justiça social no Quénia, reflectindo sobre a teoria política. O debate centrou-se em como participar nas diferentes organizações de base de onde vinham os participantes do debate. Por isso, as questões da militância nos movimentos existentes e do seu alargamento foram bem debatidas. Mas ele vê insuficiências na viabilidade dos movimentos em circunstâncias eleitorais. “Sou um militante dos direitos humanos, um militante da justiça social, por isso quando chegam as eleições, que hei-de fazer? […] As pessoas perguntam: Vais ficar à espera que as eleições passem para então voltares ao terreno e continuar as campanhas de direitos humanos? Isso é contraditório!” Segundo Gacheke, os movimentos sociais deveriam participar nas eleições políticas “não só para as vencer”, o que é um grande desafio, mas “como uma oportunidade para edificar o movimento” e para aproveitar a atenção dada às questões políticas durante as campanhas eleitorais como uma oportunidade de educação política e de promoção de visões alternativas que desafiem os partidos do sistema. E mais: ele considera problemático que os movimentos sociais, que estão sempre a fazer campanha pela justiça, se coloquem na posição de peticionários. Mas participar nas eleições com candidatos próprios poderia alargar o espaço dos movimentos sociais. “Isso é uma oportunidade para levar ao povo a agenda da justiça social e para a ele nos mostrarmos, nós e as nossas visões alternativas. É uma oportunidade para enxertarmos as nossas estruturas políticas alternativas de base”.
Falando agora da actualidade pós-eleitoral, em que o vencedor foi a coligação Jubilee de Uhuru Kenyatta e William Ruto, Gacheke declara que, para desafiar eficazmente as contradições em que a agenda deles está enredada, tudo depende da educação política. “A coligação é étnica” enquanto que “a nossa coligação é baseada na luta por cuidados de saúde, educação e habitação, ou seja, uma coligação de ideias. É essa agenda que pode competir com a agenda deles baseada nas questões étnicas”.
Considerando que, apesar de todas as críticas, a coligação Jubilee ganhou as eleições, Gacheke refere uma falha de todas as bases programáticas e ideológicas das campanhas eleitorais das principais coligações do Quénia. Segundo ele, o apoio que recebem é baseado em linhas étnicas e no “medo do desconhecido”.
“À medida que se for desvanecendo a cortina de fumo destas eleições, o povo irá percebendo a realidade: não há acesso aos cuidados de saúde, não há acesso à habitação, não há educação, e há fome”. Por isso ele vê uma contradição importante, no processo eleitoral, entre a verdadeira escolha com base na filiação étnica e os programas que são propagandeados.
“A contradição é que nós votámos em massa nessa gente e eles não estão a fazer nada”. Ao mesmo tempo, as coligações importantes usam de retórica para tratar o problema das necessidades básicas ao “apropriarem-se da linguagem dos movimentos sociais” que em nada tem a ver com a história dos candidatos do Jubilee.
Ao contrário, os movimentos sociais têm uma história de luta nas questões de justiça social. Contudo, o contexto histórico das organizações da sociedade civil desde os anos 1990, a emergência de políticas multipartidos e as mudanças que ocorreram no país em 2002 aquando da queda do regime de [Daniel Arap] Moi são também a história dos limites da militância política directa. Gacheke destaca que o contexto dos programas de ajustamento estrutural e a visão neoliberal do papel da sociedade civil têm de ser levados em conta quando se fala dos movimentos sociais. O Bunge la Mwananchi, tal como outras organizações da sociedade civil, emergiu nesta época de globalização neoliberal, após a derrota dos movimentos nacionalistas na África e das visões panafricanistas dos começos dos anos 1960 e dos anos 1970. Após duas décadas de uma liderança política virada para a corrupção e para os preconceitos étnicos na política, nas leis e no favorecimento, o Quénia foi sujeito, no início dos anos 1990, a programas de ajustamento estrutural do Banco Mundial e do FMI. Com eles veio a redução das dotações orçamentais para os serviços sociais, como a saúde e a educação, em nome do princípio do “utilizador-pagador” e da redução do número de funcionários públicos. Estes programas de ajustamento estrutural fomentaram uma grande agitação social.
Gacheke indica que as reformas neoliberais não só tiveram impactos devastadores na economia, mas também influenciaram o modo como as organizações emergentes da sociedade civil se veem a si próprias. A partir desta época as mais importantes organizações da sociedade civil e ONGs têm-se imposto um papel não-político, não-ideológico e não-interventor. “O Bunge la Mwananchi afastou-se dessa conduta. Somos políticos – e seremos!”.
É por isso que Gacheke o considera um alargamento da esfera de influência dos movimentos sociais pela participação directa em eleições com candidatos a eles ligados. Além disso, é uma maneira de enfrentar a maquinaria neoliberal evidenciando que a sociedade civil tem o direito de deixar de ser, apenas, enquanto destinatário final do poder político, um peticionário. “Mesmo que não tivéssemos suficientes bases e apoios em muitas circunscrições eleitorais, pelo menos em alguns lugares os candidatos vindos dos movimentos sociais conseguiram-no com as eleições, e isso não teria sido possível se não tivessem aberto essas portas com a sua participação empenhada nas eleições de 2007”.
A nova constituição e o descontentamento que gera
Referindo-se ao que escreve o conhecido constitucionalista queniano Yash Ghai no seu blogue, Gacheke concorda com a afirmação de que “a constituição por si só não pode conseguir nada: como as mercadorias de Marx, ela não tem braços nem pernas; tem de ser mobilizada, invocada, usada” (Ghai 2009; Gachihi, Gacheke 2013). A questão controversa será, então, quem é capaz de mobilizar as potencialidades da nova constituição, e por que meios? “Agora que temos esta nova constituição liberal – vemos os seus resultados: […] primeiro, contribuiu para a divisão do país e, segundo, para levar ao poder os violadores dos direitos humanos. É uma grande contradição que pode levar o país ao desespero. Para atenuar esta situação precisamos de movimentos sociais de base muito fortes”. Para terem eficácia no prosseguimento dos seus objectivos, diz Gacheke, os movimentos não se devem auto-excluir do envolvimento em eleições. No entanto “devem intervir nesse espaço para difundirem a sua mensagem”.
O novo quadro constitucional facilita um acesso mais amplo ao “espaço político”, aponta para uma maior justiça social e garante os direitos fundamentais de organização política. Em particular, a estrutura que devolve algum poder político às 47 assembleias distritais, com 15% do Orçamento do Estado, criou “um espaço político para o direito a organizar e democratizar o desenvolvimento ao nível local, que as forças progressistas e os movimentos sociais orgânicos podem usar para promover a causa da revolução nacional democrática” (Gacheke 2013).
É por isso que Gacheke apoia fundamentalmente a nova constituição mas, ao mesmo tempo, manifesta o seu descontentamento por ela não se referir ao contexto económico em que a democratização assenta. Ele sublinha que a nova constituição criou a “ilusão de um Estado social democrático com uma garantia de direitos economico-sociais progressistas”, que acabam por ser “apenas um pedaço de linguagem legalista” e não podem “resolver o problema da exploração histórica, da marginalização e das desigualdades sociais, que se manifestam no crime, na vida na rua, no desemprego, na destruição ambiental e nas doenças ligadas à pobreza” (ibid.).
Referindo-se a Issa Shivji (2009:61), Gachici indica “a questão da contradição irreconciliável entre, por um lado, a retórica do constitucionalismo e dos direitos humanos – baseada numa governação aberta, transparente e responsabilizante, que tem o dever de assegurar as necessidades básicas ao povo – e, por outro lado, o capitalismo neoliberal que se baseia na mercantilização e na privatização das necessidades básicas e na retirada do Estado da esfera económica, o que sapa o papel do Estado no desenvolvimento” (ibid.).
Daí ele infere que o actual sistema político e económico, sendo controlado pela pequena elite sufragada nas últimas eleições, frustra e impede qualquer hipótese real de plena realização dos valores incorporados na constituição.
Desenvolver instrumentos políticos
Tal como foi dito acima, Gacheke sublinha o facto de que, em contraste com o que ele chama “organizações importantes da sociedade civil”, os movimentos do tipo do Bunge la Mwananchi disputam o poder político. Mas, mesmo se “propõem uma plataforma não-discriminatória e progressista”, estes movimentos não desenvolveram os instrumentos necessários para responder à questão política. Os membros dos movimentos sociais que participaram nas eleições levantaram questões que desafiaram os poderes políticos estabelecidos, mas sem fundamentação suficiente e sem os instrumentos [políticos] necessários” para competir com as campanhas bem financiadas dos outros. “Tirámos a lição de que ainda não construímos um veículo político viável para os activistas de base que lhes permita sair em defesa das mudanças sociais e de uma verdadeira democratização. […] Os movimentos sociais vão pedindo ao governo a implementação dos direitos consignados na nova constituição mas, nas eleições, não têm meios para fundamentar as suas exigências”.
Por isso Gacheke acha que é urgente a intervenção política dos movimentos de base. Caracteriza o presente debate sobre a “questão política” no interior do Bunge la Mwananchi como a discussão fundamental para os próximos anos. Nas recentes eleições, houve membros do Bunge a disputar diferentes posições no seio de vários partidos. Para reforçar a ligação entre os seus movimentos de origem e os candidatos, Gacheke considera essencial perceber-se se a fundação de um novo partido seria o suficiente para introduzir uma nova “agenda de ideias” no campo político-democrático institucionalizado. Outra posição, também presente no Bunge, apela a que se apoiem candidatos independentes dos movimentos, manifestando-se por eles e com o seu apoio. Tendo em conta sobretudo o resultado das eleições deste ano, Gacheke vê a necessidade de desenvolver ambas estas opções para preparar eficazmente o futuro.
A questão fundamental que decorre desta conclusão é, por isso, a de saber como garantir que os candidatos associados aos movimentos e aos seus programas possam ser “vinculados” aos movimentos, como diz Gacheke, e reflectirem as suas ideias. Por outras palavras, o desafio é nada menos do que anular ou no mínimo atenuar a contradição entre uma abordagem de base e estruturas representativas democráticas. No entanto, Gacheke está confiante de que o conjunto de organizações do tipo do Bunge la Mwananchi seja capaz de construir uma “relação orgânica entre um partido, ou candidatos independentes, e o movimento”. “A forma de espalhar uma linha programática de mudança neste país é conseguir enormes movimentos de base que ocupem o mesmo espaço que é ocupado pelo Estado e ocupado pela sociedade civil”.
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Gacheke Gachihi é membro do Bunge la Mwananchi e activista dos direitos humanos em Nairobi, e é dirigente da Fahamu (2010-2011). Patrick Schukalla foi residente do Pambazuka News de Janeiro a Março de 2013.
Notas
[1] http://www.peoples-parliament.org/
[2] http://ungarevolution.org
[3] http://safinaparty.org/
Referências
Gachihi, Gacheke (2013): Bunge la Mwananchi (Peoples Parliament) – Movement in the era of neo-liberal globalization. ( http://gachekegachihi.blogspot.com/)
Ghai, Yash (2009): Challenges facing Kenya: decreeing and establishing a constitutional order (http://goo.gl/ZD3gQ)
Shivji, Issa (2007): Silences In NGOS discourse: The role and future of NGOs in Africa. Fahamu Books, Pambazuka Press.
Shivji, Issa (2009): Where is Uhuru? Reflections on the Struggle for Democracy in Africa. Fahamu Books, Pambazuka Press.
Artigo original (em inglês) aqui. Tradução do Passa Palavra.