A luta pela liberação da catraca pode não ser imediatamente revolucionária, mas, na atual quadra histórica, as causas mais imediatas adquirem força dado o descontentamento latente que começa a explodir. Por Maria Orlanda Pinassi
Este artigo foi escrito e foi-nos entregue antes de estar conquistada a revogação do aumento das tarifas dos transportes públicos em São Paulo e no Rio de Janeiro (leia aqui). Mas as reflexões de Maria Orlanda Pinassi mantêm toda a actualidade. Passa Palavra
O medo de agir e de cometer erros é filho do comodismo
e do erro absoluto da passividade.
Hegel
Acompanho com entusiasmo o crescimento das manifestações chamadas pelo Movimento Passe Livre (MPL) em todo o Brasil. E, de fato, é cada vez mais difícil ficar alheio aos impactos causados pela multidão de jovens que, nas últimas semanas, toma as ruas das principais cidades do país para exigir a gratuidade do transporte público urbano, operado com tarifas das mais abusivas da América Latina. [*]
Acompanho também os comentários sobre os acontecimentos que radicalizam entre a posição dos entusiasmados como eu e a posição dos apologetas que, ocupando a maior parte da mídia nacional, sai na defesa irada da “ordem democrática, conquistada a duras penas no país”, e, contraditoriamente, da segurança pública a fim de garanti-la. A novidade se deve ao fato de que o Movimento, que teve origens na classe média, em ações juvenis e isoladas, tem fôlego para ampliar seus horizontes ideológicos e suas estratégias de ação adquirindo caráter massivo e popular. O motivo, em parte, remete à legitimidade da causa imediata que defende porque surge (e representa) a faixa etária mais atingida pelo desemprego e pelo esgotamento do suposto sucesso neodesenvolvimentista, da marcha inflacionária e da pesada crise estrutural que se anuncia no Brasil.
Chegou a vez do Brasil pagar tributo a ela. Por isso é que a luta pelo passe livre, assim como as lutas pela terra, pela moradia, pelo emprego, por direitos mais elementares da classe, que, em tempos mais favoráveis, caberiam no escopo liberal das conquistas democráticas, encontram dificuldades ampliadas de serem atendidas. No Brasil, país incuravelmente conservador — como bem disse Florestan Fernandes —, tudo isso sempre foi muito relativo. Por aqui, as reivindicações mais justas sempre ganharam conotação radical e hoje, com o agravante da crise, essa radicalidade tende a se intensificar. Daí a necessidade de se partir para uma ampla ofensiva de lutas ao invés de apaziguar os ânimos com pactos e frentes.
Diante do quadro, nem o PT nem o PSDB, partidos que, apesar das origens distintas, estão cada vez mais aparentados em seus comprometimentos de classe, em suas estratégias econômicas e suas arengas pautadas na ampliação e aperfeiçoamento das políticas públicas, conseguirão conter seus efeitos mais graves. O remédio mais eficaz para os males sociais vem sendo ministrado com doses cavalares de repressão policial.
As atuais manifestações de rua não reproduzem o legalismo político dos “caras pintadas”, pautado na destituição de um governante corrupto; as manifestações do MPL são pacíficas sim, mas se colocam como ponta de lança para sensibilizar amplos setores da população brasileira. Além disso, extrapolam os limites do controle institucional, pois o Estado, independentemente do partido que o ocupe, não poderá atender a sua reivindicação, porque isso não se trata como “de vontade política”, mas de um total desinteresse econômico da burguesia que controla o setor. Por isso precisam ser reprimidas. Exemplarmente.
A razão inicial das revoltas contra as consequências específicas do neoliberalismo seja no Brasil, no Chile, Argentina, Turquia, Portugal, Espanha, Grécia, acrescidas as particularidades do Oriente Médio, funciona como elemento canalizador para as mais amplas insatisfações populares com o sistema. Só nesta dimensão as causas que defendem são difusas. Porque, na verdade, todas se originam do mesmo problema: o esgotamento das possibilidades civilizatórias do capital. Mas é preciso que compreendam isso, que estabeleçam essa relação. E, se no Brasil, o processo é crônico, em todo o planeta a “democracia neoliberal” é mais abstrata do que nunca, pois qualquer reivindicação popular tem chances mínimas de ser atendida. O sistema cada vez mais terá que manter a sua ordem pela força e pela militarização.
Assim como em várias outras partes do mundo, aqui também a juventude vem tomando a dianteira dos enfrentamentos antissistêmicos. Mas essa forma de organização, pautada por ações consideradas espontâneas e voluntaristas, fere os princípios organizativos tradicionalmente concebidos. De fato, a luta pela liberação da catraca pode não ser imediatamente revolucionária, nem surgir como causa central da classe. Mas, na atual quadra histórica, as causas mais imediatas adquirem força dado o descontentamento latente que começa a explodir. Tais causas, portanto, podem e devem representá-la em sua atualidade complexa e adversa, expressando e impulsionando, por vias alternativas, o sentido atual da luta de classes.
A luta pela Tarifa Zero está no mesmo patamar das lutas contra os crimes sociais e ambientais da Copa, do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do agro e do hidronegócio, da mineração, da privatização silenciosa da universidade pública, da indigência da educação pública do país em todos os níveis, dos sucessivos golpes desferidos contra os trabalhadores — formais e informais — de todos os setores produtivos e improdutivos do país. Para manter viva sua causa e seu poder de mobilização deve solidarizar-se com a luta dos grevistas de Belo Monte, da luta quase sempre solitária dos terenas, dos guarani-kayowáas, dos quilombolas, dos sem-terra e dos sem-teto, dos atingidos pela Vale, da luta contra o flagelo do tráfico humano, da prostituição e do trabalho infantil, de toda e qualquer dimensão tangível pela desigualdade substantiva e pela lógica destrutiva sobejamente reproduzida pelo mundo do capital.
Como disse acima, há potencial nessas manifestações que ocorrem no Brasil atual desde que assumam claramente o seu papel político no interior da luta de classes. A recusa disso poderá impor-lhe esvaziamento e custar-lhe a liberdade de contribuir com os caminhos difíceis da emancipação. Além disso, coloco aqui o desafio e a imperativa necessidade dos lutadores sociais do país de apoiarem a práxis do MPL nas ruas. De confirmarem ali a pertinência, as críticas e as necessidades sociais de suas próprias causas. É aí que a frente ampla deve ser consolidada. Com a palavra os mais significativos movimentos organizados do país: Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), sindicatos, centrais combativas e partidos políticos empenhados na luta pela transformação social radical.
Nota
[*] O fenômeno não é exatamente novo. Ouve-se falar dessas manifestações fomentadas por estudantes secundaristas e universitários há já alguns anos. “O MPL foi batizado na Plenária Nacional pelo Passe Livre, em janeiro de 2005, em Porto Alegre. Mas antes disso, há seis anos, já existia a Campanha pelo Passe Livre em Florianópolis. Fatos históricos importantes na origem e na atuação do MPL são a Revolta do Buzu (Salvador, 2003) e as Revoltas da Catraca (Florianópolis, 2004 e 2005). Em 2006 o MPL realizou seu 3º Encontro Nacional, com a participação de mais de 10 cidades brasileiras, na Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra].” http://tarifazero.org/mpl/
Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.
MO,
A partir da sua clara análise, que coloca o corte de classe como primazia para os passos seguintes, acrescentaria a necessidade da análise de que o esgotamento das vias institucionais, ocorre na vaga dos governos do PT, que se antes, acalantavam parcelas da população, ano após ano, tem mostrado sua opção pela defesa da ordem e lucratividade burguesas. Mais à esquerda estão os partidos que tem realizado um antiserviço à formação política classista ao centralizar a disputa em pautas longe do cotidiano dos sujeitos trabalhador@s e incapazes de fazer autocrítica de suas ações. Não à toa, os movimentos populares combativos, tem sido os interlocutores primordiais do MPL. Haja vista, os atos “A periferia vai parar” realizados ao longo dessa semana. Esperemos que os setores combativos, incluindo aí o partidos, estejam abertos à mudanças e que não se agarrem aos itens programáticos, sob pena de perdermos esse momento de ousadia e levante, que como sabemos, não ficará a nos esperar…
Olá Profa. Maria Orlanda, parabéns pela lucidez e por situar a luta atual dentro da crise estrutural do capital e o esgotamento da fase “civilizatória” do capital. Destacaria também o Banlieu (Periferia) parisiense, as lutas dos jovens ingleses dois anos atrás e a juventude chilena que não aguenta mais o avanço da mercantilização da educação. Também gostei do seu alerta: o cansaço generalizado do povo brasileiro pode ficar desgovernado se as pautas específicas não forem colocadas dentro da luta de classes, da superação do trabalho alienado-explorado e da vida alienante. Sugiro aos leitores do passapalavra a análise da música Rodo Cotidiano, dos nossos filósofos do Grupo O Rappa.
A análise feita pela Prof. Maria Orlanda é real, porém além das análises gostaria de poder buscar soluções para uma outra via que esta a qual sabemos está esgotada. O Estado é capitalista e vai continuar assim, a oportunidade é para o burguês e o restante da sociedade fica a margem e pagando a elas por estarmos simplesmente vivos. A cada ano surgem lutas e mais lutas buscando o fim do suplicio ao qual o povo é submetido. Pouco se fala de se romper com este sistema e pensarmos em outra forma de vida.
Estamos trabalhando uma oportunidade das pessoas pensarem e buscarem uma via que seja libertária e tenho notícias que muitas pessoas no mundo estão nesta mesma busca. Nosso caminho nos aponta a VIA SOT – Sistema Orgânico do Trabalho, como ma das soluções. Visite http://viasot.blogspot.com.br/p/participar.html
Abraços
Legal o artigo. Como ainda estou um pouco perdido em tudo que está acontecendo, tenho algumas inquietações: Os “Caras Pintadas”, o “Gigante Acordado” tem a compreensão de onde surgem as desigualdades, os desequilíbrios, as injustiças, ou seja, as várias reivindicações que aparecem nas passeatas? Compreendem também por que o governo age como age, sempre dando prioridade para àqueles que são os proprietários do Brasil e do Mundo e não para a classe assalariada/trabalhadora? Tem ideia do nível da classe política que temos no Congresso, nas Assembleias Legislativas, nas Câmaras Municipais? Se sim, sabe quais estratégias eles usam para serem eleitos e assim assumir como nossos representantes?
Nem vou questionar o terceiro e o quarto poder (judiciário e grande mídia).
Tudo bem… vamos supor que nós temos esse conhecimento de como funciona o sistema. Agora a inquietação maior: Estamos dispostos a mudar, partindo de uma renovação interna, depois ou na mesma hora, com a família, no bairro, na comunidade, na cidade e assim por diante?
Não podemos esquecer que os nossos eleitos são reflexos da nossa sociedade. Não esquecer também que quem detém o poder já está articulando para inclusive, lucrar com tudo isso. Se não rompermos com a cultura do sistema do capital, poucas conquistas teremos com esse levante.
Finalmente um artigo que se não cobre todos os fatos e vertentes, pelo menos é o mais imparcial que já vi.
Tem razão, professora. Uma parte da classe média está totalmente insatisfeita, haja visto que a política econômica atual não está fazendo diferença palpável para eles. Continuam atrelados a salários e índices, ao mesmo tempo que as melhorias na saúde e educação, embora tenham feito diferença para a classe baixa, não atenderam suas expectativas de modo a livrá-los de planos de saúde, escolas particulares, transporte, etc. Estão investindo alto em educação, mas não tem certeza do retorno deste investimento no mercado de trabalho.
E não vamos esquecer de uma tendência de nossa mídia de destacar de forma pejorativa toda e qualquer tentativa de atender os necessidades desta comunidade, fortalecendo a oposição (que só é oposição porque não interessa a ela mudar as regras do jogo, dar transparência e favorecer a governabilidade). Nesse intuito, não se poupa de campanhas difamatórias orquestradas, mantendo grande parte da população mal informada e consequentemente contra o governo, no caso Lula, PT e Dilma. Cada dia surge novo boato, sempre sem origem, deturpando informações e promovendo todo tipo de loucura, de impeachment a golpe militar para deter “os comunistas”. me parece que faltaram as aulas de história… Porém, nestas alturas do campeonato, as coisas já não estão como estavam há um mês. Veremos que primavera setembro nos trará. Obrigada pelos esclarecimentos.