Por Pela Moradia

Onde transporte e moradia se somam

 

Há mais de duas semanas protestos varrem cidades brasileiras. Não há como negar que o principal estopim para isso foram as históricas manifestações contra o aumento na tarifa dos transportes públicos em São Paulo, cujo tamanho e repressão policial somente fizeram espalhar a fagulha de descontentamento Brasil a fora. A Rede Globo divulga um somatório de cerca de 250 mil em todo o país na última terça-feira (17/6). Sabemos então que fomos muitxs mais. Estaríamos perto do meio milhão em marcha?

Hoje diferentes gritos e bandeiras povoam os protestos. Os veículos de mídia convencionais têm dado especial atenção a algumas delas. A principal é, logicamente, o aumento das passagens (traduzido às vezes como “aumento nos custos de vida”, em referência à inflação). Nunca esquecem de lembrar, porém, dos gastos públicos com os grandes eventos e de pautas como saúde e educação de qualidade. Também estão nas ruas outras palavras de ordem, como o combate à corrupção. Todos são, de fato, vistos nas manifestações. Mas há também muitos outros que são pouco lembrados pela mídia e que, ao mesmo tempo, são muito gritados por quem está com os pés nas ruas e vive o dia a dia das cidades do país: o fim da violência policial nas favelas e periferias, o fim das remoções e despejos, a negação dos partidos políticos. Essas e tantas outras que estamos esquecendo e só comprovam a diversidade e amplitude que tomaram os protestos.

É óbvio que nosso propósito aqui não é julgar se essas e outras bandeiras que estão sendo levantadas são válidas ou não. Pelo corte temático do Pela Moradia, queremos somente listar alguns dos motivos que nos levam a considerar a luta ao redor dos transportes como muito ligada à luta por moradia. Claro que não estamos reinventando a roda, somente sublinhando algumas relações que muitas pessoas já conhecem.

A demanda por moradia em diferentes partes da cidade

O enorme problema do déficit habitacional no Brasil não afeta somente as grandes cidades do país. Nelas, porém, a demanda por moradia explode geralmente em duas áreas: de um lado nas periferias; de outro nas partes historicamente mais deterioradas das regiões centrais. Um bom sinal disso é que são nesses dois principais espaços onde mais vemos ocupações de organizações do movimento dos sem-teto.

Quando acontecem nos centros das cidades, ocorrem em geral em edifícios abandonados ao abandono rentável da especulação imobiliária ou deixados aos ratos pelo Estado em suas três esferas (município, estado e união). Nesses casos ouvimos quase sempre uma forte defesa por partes dxs ocupantes não só do direito à moradia, mas também da importância dessa moradia ser no Centro. É nessa área onde há mais alternativas de emprego e renda. É nela onde, além disso, já existe uma enorme rede de serviços públicos já instalados – como escolas e unidades de saúde – e de opções culturais e de lazer gratuitas. É a partir do Centro, por fim, que se pode ir para praticamente todos os cantos da cidade.

Na periferia a situação é um tanto diferente. A luta pela moradia é frequentemente acompanhada pela batalha por infraestrutura básica e serviços que ainda não existem ou são muito insuficientes. Afinal, como lembram muitas das pessoas envolvidas, não adianta ter um teto e não ter condições de habitá-lo com saneamento básico próprio e formas de ir e vir dele. Muito menos se nas proximidades não há escolas ou atendimento de saúde. Conquistar a moradia é um passo que traz também a necessidade de brigar por essas outras coisas fundamentais à qualidade de vida de cada um/a, lutas lembradas por muitas organizações que atuam na periferia das metrópoles brasileiras.

Os transportes e a cidade ao acesso de todxs

De pequenas a grandes cidades, atraindo mais ou menos gente em situações completamente diferentes, muitas delas são lembradas justamente por oferecerem isso a quem chega nelas: oportunidades de renda, serviços, lazer. Grande parte disso só existe porque é nelas, nas cidades, onde encontros de todo tipo acontecem com o diferente, o inesperado, xs outrxs, a oferta e a procura. Mas algo é necessário para isso: chegar.

Ir à cidade não significa acessá-la. Poder usufruir dela não depende somente de ter o direito formal a isso. Afinal, uma cidade só existe para quem pode se movimentar por ela, como muitas pessoas já falam e é estampado inclusive no site TarifaZero.org. É porque sentem no dia a dia as correntes da mobilidade que tanto a luta por moradia no centro quanto na periferia levam em conta a questão do acesso.

Briga-se pela área central porque não basta ter o direito a “morar”. Nas nossas cidades, onde a mobilidade é luxo dos poucos que podem pagar por ela, a proximidade ganha outra importância. A localização da moradia é, então, fundamental. Ela é que facilita o acesso àquilo que todxs entendem como cruciais à qualidade de vida, à dignidade: saúde, trabalho, educação, lazer, etc. Não estamos aqui dizendo que esses serviços funcionam como deveriam. Mas é preciso reconhecer que a luta por moradia popular no centro também torna visível e emerge em parte da imensa desigualdade que há no acesso à cidade. Brigar por isso é também se revoltar contra a proibição de que a população mais pobre esteja no centro para fazer coisas que não sejam ligadas somente ao seu trabalho, à exploração de sua mão de obra. É dizer: queremos quebrar as correntes da falta de mobilidade ficando perto do que nos é de direito!

Isso fica ainda mais claro nas tantas batalhas pela moradia e sua qualidade na periferia das grandes cidades do país. Nelas é onde se sente na pele a ausência de serviços públicos, que seria quase total se não fosse a absurda violência e brutalidade policial que apavoram todxs (estejam os policiais fardados ou organizados em milícias). Ainda que concentre a maioria da população dessas cidades, as periferias são onde se concentram também as escolas com piores condições, as unidades de saúde mais abandonadas, as opções de lazer mais escassas, as oportunidades de renda mais inseguras. Sem opções próximas, parece que ao menos duas alternativas saltam aos olhos imediatamente: lutar pela melhoria e expansão desses direitos nas periferias, e/ou batalhar por um sistema de transporte público que viabilize o acesso a esses direitos em outros locais da cidade. Uma terceira alternativa, bem mais difícil, é o que já vem sendo tentado e ensaiado em alguns lugares do Brasil e do mundo: criar opções populares que possam suprir essas necessidades, geridas pelos próprios moradores e participantes. É dizer: queremos quebrar as correntes da falta de mobilidade criando ou arrastando para perto de nós aquilo que nos é de direito!

Revogar o aumento e pensar a cidade

Poder circular pela cidade está na base dessas discussões. A cidade é também um ponto de encontro. Por isso se mover por ela é uma das condições pra que ela exista. Mas queremos que ela exista de outra forma, não como está aí, para poucxs. A forma de existir das cidades hoje é uma das grandes violências sofridas pela maioria da população. Violência pelas privações impostas, pelas agressões cotidianas nas periferias e áreas pobres, pelo racismo e outras formas de preconceito, pelos despejos e remoções sumárias.  É em resposta a isso que muitas pessoas explodem violentamente. Não é à toa que os alvos são principalmente aqueles que representam essa opressão do dia a dia: bancos, grandes empresas, órgãos públicos, ônibus das empresas que exploram a população e se beneficiam com a privatização do direito fundamental à mobilidade.

Não há nenhuma novidade aqui. Mas que se lembre que existem ligações fortes entre a luta por um transporte realmente público – que ao invés de excluir realmente possa incluir as pessoas na cidade – e a luta por moradias dignas em todos os cantos da cidade. Afinal, se habitar passa por existir em um espaço, circular pela cidade é parte fundamental do direito a morar dignamente.

A luta pelos transportes e a luta por moradia são, por isso, lutas que se somam. Não se dividem nem se anulam. Revogar o aumento pode ser uma luta pela existência possível de uma cidade construída por nós mesmxs, com a força de nossa própria organização, por fora do sistema político que está aí. Essa nova forma de existir não tem líderes e é nas ruas que ela pode ser gestada.

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