O editorial perde foco ao não evidenciar o mais evidente fato: resolveram dar uma primeira amostra de sua revolta aquelas pessoas cotidianamente violentadas pelo aparelho repressor do Estado, sob a mais retumbante indiferença da população em geral e dos governantes em especial. Por Leônidas Dias

As considerações que apresento abaixo constituem uma resposta à nota “Opinião do Hoje em Dia: Repúdio à violência”, publicada na capa do referido jornal de Belo Horizonte na manhã de 24 de junho de 2013. E o que faço neste escrito é citar e em seguida comentar cada trecho do que foi publicado.

“O Hoje em Dia não é contra as manifestações.”

Quanto a isso é suficiente notar que essa publicação acompanha a maré que arrasta indistintamente os grandes veículos do país, desde que mudaram em coro sua estratégia, de satanização do movimento como um todo à execração categórica de sua minoria mais acalorada.

Para além de apontar que se trata da revelação de uma convergência midiática mais que rotineira entre nós, não sendo o jornal em questão nem um pouco inovador em sua postura, essa afirmação deixa ainda no ar a pergunta: as pessoas estão mesmo dispostas a ver sua manifestação pautada pela apreciação da mídia convencional acerca de seus atos?

“Com isenção, este jornal abriu espaço para opiniões e tentativas de interpretação dos acontecimentos. Mas não pode e não vai aceitar como normal e democrática a violência provocada nos últimos dias por uma minoria dos que saíram às ruas para protestar.”

Em primeiro lugar, é de se notar o tom de renúncia do jornal diante de sua primeira e louvável posição de dar voz às várias posições em dissenso, a qual deveria fortalecer e perpetuar. Como se pode facilmente interpretar, o veículo agora melindrado se indispõe com uma das facções em litígio e decide julgá-la e condená-la, reduzindo imprudentemente a um juízo estritamente moral o que deveria ser uma tentativa isenta de dar voz às pessoas reais que estão realmente envolvidas nas ocorrências também reais que o jornal agora pretende obscurecer com abstrações como “violência” e “democracia”.

O que ocorre, e foge por completo à capacidade de compreensão do jornal, é que a camada mais lesada da população está demonstrando que não vai aceitar mais ser violentamente perseguida, cerceada, acossada, aterrorizada e assassinada pelos supostos agentes de segurança que subsistem com soldo pago por nós. E não ligam a mínima para os chiliques de jornalistas, embora sejam muitíssimo lesados em conseqüência do hediondo jornalismo que tradicionalmente praticam.

O afetado editorial perde foco ao não evidenciar o mais evidente fato: resolveram dar uma primeira amostra de sua revolta aquelas pessoas cotidianamente violentadas pelo aparelho repressor do Estado, sob a mais retumbante indiferença da população em geral e dos governantes em especial, que de fato são quem comanda sua chacina, em nome dos grandes interesses econômicos.

Quanto à questão numérica, é fato inquestionável que os assim chamados “vândalos” constituem uma minoria (embora crescente) entre os manifestantes. Mas, se isso lhes retira a legitimidade por completo, a própria manifestação (aliás, como qualquer manifestação) é deslegitimada segundo o mesmo critério, uma vez que não chega sequer perto da metade de nossos duzentos milhões de habitantes. Então, se a minoria que quebra é ilegítima, isso não é senão a ilegitimidade dentro da ilegitimidade, uma vez assumido o critério numérico. Desse modo, o caráter minoritário deveria ter conduzido o democrático jornal a não apoiar o movimento, posição contrária à que assume, no entanto. O jornal apoia um movimento minoritário, mas nega uma posição minoritária no interior desse movimento. E o faz em nome de abstrações, isto é, não revela a história real das pessoas que são estupidamente (e covardemente) tachadas como “baderneiras”.

“A insatisfação popular está sendo aproveitada pelos que tentam pescar em águas turvas.”

Deixando de lado o que poderia significar essa última expressão, pode-se lançar mais uma pergunta: não estaria o jornal tentando enquadrar o que chama de “insatisfação popular” em seus esquemas, ao arrepio de pessoas realmente insatisfeitas ou, como é o caso, absolutamente revoltadas?

Se na primeira leva estavam em maioria os “insatisfeitos” que lutam por abstrações, a cada novo momento essa turma vai abrindo mais passagem para os efetivamente revoltados, muito mais que indignados. Os que estão para muito além da insatisfação coxinha são aqueles já habituados à polícia assassina pondo abaixo a porta de seus barracos para desgraçar-lhes a vida em troca de um pratinho de sobras que lhes é dado pelo Estado, em atendimento às demandas de uma elite opulenta e covarde.

Diminuir a significação social dessa revolta e reduzi-la a convulsões subjetivas de baderneiros irresponsáveis, além de uma confissão patente de incompetência jornalística e histórico-analítica, constitui um desrespeito duplo: contra a gente sofrida que agora se põe em confronto aberto com as forças que patrocinamos todos para seu extermínio, bem como contra aqueles que financiam às cegas esse genocídio que se pratica em nossas comunidades carentes, elas próprias suficientes para justificar qualquer hostilidade contra os símbolos da opulência e da arrogância de nossa elite, que foram sim alvos de ações agressivas.

E eu disse acima que se trata de uma pequena amostra, por que não é contra as coisas que quebraram que os revoltosos sentem, e sentem muito forte (como pude ver de perto), o seu ódio absoluto.

É contra esse estado de coisas que essas pessoas estão se tornando cada vez mais violentas. E a maior violência é dar chilique moralóide e se negar sequer a tentar entender, entrincheirando-se em conceitos vazios, digitados a partir de um confortável lar, certamente jamais violado pelos lacaios do poder.

“Não é aceitável que casas comerciais sejam depredadas ou roubadas, como no último sábado, na avenida Antônio Carlos.”

Não é aceitável o melindre diante da quebra de coisas por pessoas que acabaram de ser quebradas com muitíssima violência pelo aparato estatal de “segurança”. E é estúpido não perceber que não se trata de uma turba ignara em convulsão descontrolada, mas de um grupo cada vez mais consciente de suas demandas e da inviabilidade de seu atendimento pelos meios já de saída rançosos à disposição. Tachá-los assim é idiota, além de covarde, pois isso não explicaria o foco estrito dos atos destrutivos em representantes do grande capital, o responsável direto e fundamental por todo o mal sofrido por aquelas pessoas.

Nesse ponto é bom enfatizar o que foi dito: as pessoas (enfurecidas pela agressão covarde de que foram vitimados pelos demônios de farda) quebraram coisas, sim. Mas não agrediram qualquer transeunte, não depredaram qualquer pequeno estabelecimento comercial ou avariaram bens privados de consumo, como carros e casas. Restringiram-se a grandes concessionárias, conglomerados “educacionais” e, item mais que simbólico, um gigantesco outdoor da maldita Coca-Cola, patrocinadora de uma das desgraças que se abate sobre esse país, que é a Copa do Mundo de 2014 — assim como de sua ridícula preliminar que está em curso no momento, a patética Copa das Confederações.

Além disso, só foram depredados bens de utilidade pública duvidosa, como os radares-caça-níqueis, com que uns se abastecem do dinheiro de outros por meio de fraudes múltiplas, travestidas também de medidas de segurança.

“Repórteres a trabalho foram agredidos.”

Do mesmo modo, foram feridos médicos e advogados também a trabalho, além de muitíssimos outros profissionais que estavam ali apenas para protestar, juntamente com estudantes e cidadãos diversos, que foram alvejados indiscriminadamente por policiais. Sem provocações que não alguns dizeres muitíssimo verdadeiros sobre o sentido de sua existência social.

Contra a afirmação corrente quanto a um possível despreparo da polícia, eu digo que os demônios estão muito bem preparados para o exercício de sua função, uma vez que ela é justamente a de conter a todo custo (mesmo!) qualquer ameaça que se faça aos desmandos de nossa repugnante classe parasita, nada tendo sua ação a ver com a garantia de algo mais que seus lucros polpudos. A polícia estava ali para usar de toda a violência permitida e um pouco mais (já que se usaram gases não autorizados e mesmo vencidos para a operação de contenção), não para garantir a integridade física e moral da população, mas para ferir o máximo possível todo aquele que ousasse contrariar as determinações de seus senhores. Até mesmo negar socorro e obstruir prestação de socorro a um paciente em estado gravíssimo eles souberam perfeitamente.

Ainda outra observação a ser feita quanto ao treinamento adequado da polícia é o fato de que o modelo de operação implantado nos protestos é o mesmo que se adota há décadas no trato com a população favelada: embora seja uma minoria os que aprontam ali dentro, a punição é equânime. Não é, portanto, por não haver agredido um policial ou cometido qualquer outra infração que um manifestante é privado de seu direito de ser agredido pela polícia. Deve ser a isso que dá direito o kit de impostos que paga.

Então, quanto à questão do caráter minoritário da porção violenta dos manifestantes, algo a ser levado em conta é que ele não impede a polícia de usar seus gases (proibidos ou vencidos, como foi o caso aqui em BH) e suas balas de borracha. Talvez os policiais fiquem até chateados de não poderem servir aos manifestantes amostras de suas demais munições, com as quais já estão bem mais acostumados, por servi-las quentes todos os dias à camada mais pobre de nossa gente.

Por fim, desafio o indignado autor do editorial, protetor de vitrines indefesas, a indicar entre os participantes dos eventos traumáticos aquele que promoveu com maior sucesso a violência desabrida: a polícia (e seus mandantes) ou os ditos bárbaros?

E quem foi o vândalo, visigodo, ostrogodo, huno ou viking que atacou tão violentamente os repórteres como o fez a horda de demônios a soldo do Estado, fardada ou à paisana?

“Algumas emissoras de TV nem conseguem mais se aproximar das manifestações.”

Agradeçamos à turba insurreta por esse serviço de suprema utilidade pública.

“A TV Alterosa foi vítima de ameaças na noite de sábado e também a redação deste jornal.”

Ameaças que, pelo visto, guardam semelhanças profundas com as promessas proferidas por nossos aspirantes a governantes quando sobem em seus palquinhos. Ou alguém ateou mesmo fogo à emissora ou a esse jornaleco?

Eu creio que não, pois hoje mesmo assisti a um show de horrores batizado de telejornal no referido canal. Desse suposto informe jornalístico só escorriam calúnias contra o povo em luta e uma repugnante apologia dos verdadeiros bandidos. Ali se deu voz ao médico que tentou sem sucesso socorrer um rapaz que havia se ferido gravemente, até o momento em que ele disse à entrevistadora que sua missão foi impedida por policiais truculentos, que se negaram a ajudar, bem como negaram a utilização de uma ambulância e mesmo de insumos médicos básicos. Quando o médico entrevistado disse à apresentadora algo contra a polícia, que todos do jornal já vinham lambendo havia uns dois quadros, a canalha chamou (certamente sob ordens superiores) uma tomada externa, depois da qual já havia um demônio de farda mentindo aos quatro ventos diante das câmeras.

“Dias antes, um caminhão de transmissão da Rede Record foi incendiado em São Paulo e, no Rio, um carro de reportagem do SBT [Sistema Brasileiro de Televisão].”

Não se consegue ver qualquer motivo para que isso aconteça? Isso é mesmo tão impressionante, ou deveríamos dizer que isso é uma reação tacanha, tímida, diante do anseio real de calar de vez a fábrica de mentiras que esses órgãos representam? Será que depois de tanto desserviço prestado à população por essas agências da manipulação ideológica, não era de se esperar que fizessem muito mais do que quebrar um carro ou outro?

Quanto da vida dessas pessoas foi destruído ou jamais chegou a construir-se por causa do endosso e da incitação à violência policial por parte da mídia cooptada pelo capital e seu Estado? Será que é mesmo de se estranhar tanto a revolta popular contra essa mídia?

“Não há democracia sem uma imprensa livre e, muito menos, sem o direito de trabalhar.”

Não há democracia sob o sistema capitalista, a menos que se purgue de qualquer sentido esse termo. E, quanto ao direito a trabalhar, esse deve ser cobrado pelos repórteres aos seus comandantes internos e externos, antes de qualquer outra coisa. Aí, sim, podem começar a falar de liberdade… e com liberdade.

“Como atribuir caráter político a saques, depredações e agressões físicas a pessoas e agentes públicos?”

Pensando com clareza e rigor.

“Como defender de fato a democracia?”

Com unhas e dentes, se necessário. E é isso o que as ruas podem ensinar aos jornalistas e demais deformadores de opinião atuantes entre nós, para que sacudam para bem longe a apatia que os consome.

“São muitas as incertezas.”

Maiores ainda são os equívocos aqui comentados.

“Talvez seja o momento de parar para refletir.”

Quanto a esse ponto, acho que o autor do editorial está coberto de razão.

“Os manifestantes deveriam ouvir suas famílias. Nelas, há quem aprendeu, a duras penas, a valorizar a democracia, apesar de suas falhas.”

Talvez seja o momento de aqueles que tiveram sua pretendida revolução bloqueada pela nuvem de milicos que se arrojou sobre o Estado brasileiro em 1964 se tocarem de que ainda está para ser feita essa mesma revolução, outrora frustrada. Esses filhos da ditadura foram muitíssimo bem formatados, a ponto de acharem hoje que a qualquer tentativa de sair dos trilhos seremos conduzidos de volta a eles pela turma da caserna, de modo que o mais prudente a fazermos é nem sequer tentarmos qualquer coisa mais ousada, habituando-nos a tomar como suficientemente democrático o inferno em que apodrecemos. Essa é justamente a convicção que todos os frágeis detentores do controle social em nosso curral querem que tenhamos bem arraigada em nós, para que realmente não tenham problemas conosco. E é justamente esse pânico, típico dos pretensos conhecedores de leis históricas absolutas, que já não é mais suficiente para conter os ânimos de quem há tempos vive sob as botas dos soldados, jamais falando da ditadura militar no tempo pretérito.

É o presente dessas pessoas o que explica o modo encarniçado como estão dispostas a lutar por seu futuro. Se, de um lado do front, temos imbecis absolutamente indiferentes à dor popular e dispostos a espancar e mesmo assassinar qualquer um por um pote de sobras, do outro lado temos pessoas de verdade, marcadas por sofrimentos verdadeiros e verdadeiramente estimulantes — o suficiente, como se começa a ver, para fazer suas ações transporem o aparato repressor que diante delas se erige.

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