Os grandes ganhos provenientes da ocupação da Câmara de Belo Horizonte foram a convergência, o fortalecimento, a organização, a publicidade positiva e a ampliação dos quadros do movimento, que se articula por meio de uma assembléia popular horizontal que promete ser longeva e prolífica. Por Leônidas Dias de Faria
É impressionante como tenho visto à minha volta caçadores de unicórnio. Eles querem o Estado, mas o querem representando e encaminhando as decisões populares, negando o interesse do capital, que apesar disso permanece existindo feliz da vida, incólume, imaculado. Querem, então, um cavalo; mas o querem com um belo chifre bem no meio da testa!
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Não sejamos ingênuos de “exigir o impossível”, de suplicar por um capitalismo justo, garantido por um Estado democrático, cioso dos anseios dos mais “humildes” – lamentável eufemismo, forjado sob medida para disfarçar o exército de miseráveis que a lógica social hegemônica engendra ininterruptamente como condição de sua perversa reprodução.
Sejamos corajosos de buscar instituir, ainda que paulatinamente, o possível, necessário e mais que urgente: a propriedade e a gestão comuns dos meios sociais de produção cooperativamente criados ao longo de centenas de milhares de anos pela humanidade; a apropriação comunitária das forças produtivas sócio-históricas, a ser arquitetada e conduzida sem a necessidade ou a possibilidade de um aparato estatal, mas por meio de mecanismos democráticos diretos de deliberação e decisão coletivas.
Ainda que passo a passo e com muita cautela, o caminho a ser firmemente trilhado é o da revolução. Não há reforma historicamente possível ou desejável para o sistema do capital. A cada plástica a que se submete, o monstro fica ainda mais horrível.
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Que não nos percamos, portanto, nos remendos políticos de uma ordem socialmente insustentável, moribunda e absolutamente nociva, em franco colapso em todos os âmbitos e já perfeitamente passível de superação positiva por via comunitária.
Que nossa prática política seja, portanto, negativa, voltada à dissolução e não à perpetuação da armadura oficial com a qual o capital se protege dos golpes que recebe de sua classe rival por excelência ou de qualquer outra, inclusive de suas próprias facções mais débeis, enquanto distribui a esmo seus ferozes açoites – em nome de uma mórbida divindade de duas cabeças grotescas chamada Acumulação-Concentração.
Não busquemos a conciliação com os gestores atuais do Estado, nem a tomada desta outra aberração como nossa mascote. Visemos à criação de mecanismos distintos e superiores que a tornem não só desnecessária ou inviável, mas impossível, por incompatibilidade com a base comunitária da produção social mesma, que deve ser cultivada em cada um de nossos atos, nas brechas do sistema econômico-político atual. Criemos as condições de sua implosão ao invés de exaurirmos nossas energias na tentativa vã de adestrá-lo.
Não nos contentemos com a exageradamente flexível abstração do socialismo, centremos foco na criação de uma sociedade comunista concreta; evidentemente não entendida como um bando de acéfalos guiados em rebanhos nacionais por um Estado absoluto, mas como o poder das comunas autônomas articuladas em uma teia global complexa e fecunda de conexões livres e mutuamente enriquecedoras, atuando em concerto nos mais diversificados âmbitos da atividade humana hoje possível. É esse o único propósito legítimo de uma perspectiva que se arrogue esquerdista.
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Tentemos, sim, claro, desde já, criar incrustações de poder popular no aparato estatal efetivamente vigente, para a imposição de abertura para diálogo e de pressão efetiva por concretização de demandas discutidas, bem como tentemos ocupar com representantes formais e informais todas as instâncias oficiais possíveis, por meio do lastimável sistema eleitoral bem como de ações diretas.
Mas não nos percamos na ilusão de que haverá um dia a possibilidade de conciliar os conflitantes interesses de classe que jazem na base de nossa sociedade sob a égide do aparelho de controle configurado no Estado nacional, pois ele próprio é fundamentalmente um instrumento de domínio local do capital internacional, uma arma para contenção de levantes populares contra o sistema do dinheiro em cada um dos cercados em que opera.
Nem muito menos nos deixemos desviar pela fantasia de que este monstro burocrático-militar irá algum dia fazer sobrepor-se o interesse do trabalho sobre aquele do capital, fazendo dos produtores diretos os campeões da sociedade capitalista – algo que não se pode sequer pensar de fato, sem incorrer em devaneios. Se o Estado assumir a perspectiva do trabalho ou, melhor, se a perspectiva do trabalho assumir o Estado, esse será o fim do capital e do próprio aparato estatal, que a ele se agarra como uma espécie depravada de peixe piloto.
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É crucial que o movimento se aprofunde bastante, que transcenda da política à ação imediata e economicamente contundente, minuciosamente orquestrada e conduzida. É necessário que se ocupem, por exemplo, os estabelecimentos da Monsanto e da Syngenta e que se as ponham para correr com o rabo entre as pernas do país, deixando para trás não só seus venenos, para serem dispensados de modo ambientalmente seguro, mas também os tesouros (em saberes e sementes crioulas) que vêm usurpando de comunidades tradicionais e mantendo a sete chaves, enquanto assassinam em massa com suas mercadorias diferenciadas.
É incontornável que se tomem as mineradoras predatórias e as grandes construtoras e transportadoras de pessoas, que as fazem ser carregadas como sacos de esterco por outras pessoas totalmente despreparadas e mal remuneradas, bem como os grandes conglomerados pretensamente educacionais, que desovam a cada ano centenas de milhares de iludidos e endividados na máquina de moer gente que é o famigerado mercado de trabalho. Que se ponha sob controle dos produtores diretos livremente associados tudo o que hoje, ao invés de nos servir, causa o esmagamento de nossas vidas; que tudo passe a operar com fins legitimamente humanos, por meio do suprimento de serviços e bens que satisfaçam a quem mereça também essa qualificação. Que se liberte o trabalho nesses âmbitos, que as impressionantes mudanças positivas não tardam a se fazer notar aos borbotões.
Que todo o acervo daquelas gigantes da agroindústria e demais corporações criminosas acobertadas pelo Estado se torne propriedade comum, ao lado das terras em que hoje se aplicam seus produtos anti-vida, seja na agricultura, na produção industrial, na urbanização irresponsável, parideira de condomínios fechados e favelas, e em sua exploração comercial predatória, inclusive de pessoas. Também essas terras devem ser apropriadas por meio de procedimentos análogos, para que ali se empreendam técnicas de manejo orgânico sob gestão comunitária, muitíssimo mais inteligentes e produtivas em todos os seus aspectos. E que não tremam os pequenos e valentes proprietários, pois não é contra seu heróico trabalho que deve ser dirigida a fúria transformadora do povo em levante. Sua vida também será suprida com novos e saudáveis ares, se tudo correr como deve.
Que se multipliquem as ações diretas contra o grande capital e em prol da emancipação humana, fazendo-se expandir qualquer brecha ou mesmo fissura possível no sistema da grande propriedade privada (que é também o da privação da propriedade, para a grande maioria), contribuindo para que um dia o tenebroso e caquético edifício venha a ruir por completo em estrondoso colapso – bem maior que aquele promovido pelo Mossad israelense nas Torres Gêmeas de Nova Iorque.
E que outro modo de produção seja forjado na luta, não deixando que as forças sociais finalmente despertadas em bloco se dispersem no anteparo político-midiático-militar do capital, o qual não deve ser apropriado para fins benéficos como ingenuamente se almeja em pretensos setores de esquerda, mas ser minado e finalmente dissolvido, por inutilidade histórica, decorrente da superação do sistema da propriedade privada capitalista a que pretende conferir legitimidade.
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Que sejam duramente questionados os que se arvorarem em defesa da sacralidade dos contratos contra as demandas reais das pessoas efetivamente lesadas pela atual maneira de se conduzirem as coisas humanas, como o fez o senhor Márcio Lacerda em patética reação à enérgica demanda imposta a ele em reunião pelos delegados do grupo que há mais de uma semana ocupa a Câmara Municipal de Belo Horizonte. Neste episódio, o repulsivo prefeito, desconsiderando por completo as demandas concretas decididas em assembléia e encaminhadas pelos referidos delegados, reforçou o ganho das empresas privadas encarregadas do péssimo serviço de transporte da cidade com isenções fiscais, levando a uma redução do preço do transporte que reflete negativamente em outras áreas igualmente carentes de recursos, como educação, saúde, habitação etc. O que revela a completa intransigência do lastimável gestor é que foi justamente a aprovação de uma versão quase idêntica dessa sua proposta por parte dos vereadores, em seção fechada ao público, o que desencadeou a ocupação, muito organizada, democrática e popularmente aprovada, do referido prédio público – que, segundo dizem, nunca foi palco de trabalho tão intenso e comprometido. O prefeito enviou uma proposta, os vereadores aprovaram, os manifestantes ocuparam o órgão público e exigiram uma reunião; o evento ocorreu, depois de muito esforço dos ocupantes, mas o que ficou foi a proposta inicial ligeiramente modificada. Mas o básico foi: o contrato é sagrado e o povo não importa.
A meu ver, diga-se de passagem, os grandes ganhos provenientes desta ocupação da Câmara foram a convergência, o fortalecimento, a organização, a publicidade positiva e a ampliação dos quadros do movimento, que sabiamente se articula desde o início por meio de uma assembléia popular horizontal que promete ser longeva e prolífica. As assembléias realizadas durante o período de ocupação, tanto gerais como referentes à ocupação mesma e seus propósitos, foram formativas para muitos que ali chegaram apenas como curiosos, como pude ver. As aulas abertas, círculos de discussão, oficinas, saraus e demais manifestações culturais, espontâneas ou programadas, individuais ou coletivas, supriram os presentes com uma espécie de festival de inverno de esquerda, lúdico, pedagógico e crítico. As refeições coletivas exerceram também seu já há muito reconhecido poder de socialização.
Não vejo como ganho a redução “conquistada” em “conversa” com o banana do Lacerda, que fez o que achou que tinha que fazer, ligando o “foda-se” para os ocupantes da “casa do povo”. Nem vejo como acertado, portanto, o abandono do posto a essa altura. Discordo de que seja um acerto estratégico sair agora, pois considero que o que se fez até agora é apenas uma pequena amostra do que se poderia fazer até o fim do mês, momento da volta dos parasitas habituais.
Apesar disso, respeito e admiro muitíssimo essa turma da ocupação, com quem tenho considerável identificação e a quem se dirigem muitas das considerações, inclusive críticas, aqui expostas. Sem dúvida, tiro o chapéu para essas importantes figuras. Elas têm problemas, sim, como todos; mas muitos de seus equívocos e incertezas só ocorrem a quem está disposto a lidar com o que há de mais difícil: a criação coletiva e cooperativa de uma realidade mais saudável. Buscar um diálogo acerca destes problemas com pessoas tão interessadas, interessantes e dispostas é algo muito mais fácil e compensador do que lutar para buscar alguma discussão legítima com as estruturas blindadas do sindicalismo hierárquico ou outras estranhezas afins, também praticantes do sacrifício humano em nome do contrato capitalista.
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Que seja objeto do mais insolente escárnio aquele que defender a necessidade da quitação com dinheiro público das dívidas milionárias ou bilionárias do Estado com tais ou quais instituições financeiras (ou de dívidas desses cassinos entre si, como via de regra se faz, aqui e mundo afora). Que se faça ecoar a necessidade de suprir com habitação, vestuário, alimentação, saúde, educação, transporte, lazer e capacidade de fruição e manifestação cultural sofisticada a todas as pessoas, cuja maioria é hoje privada de tudo isso em atendimento aos imperativos de lucro dos detentores do controle sobre os meios de produção.
Sagrada é a vida e não a dívida! E a ruptura de contratos bilionários só expõe a vida a risco quando inspira represálias militares. Essas somente são eficazes quando há traidores fardados suficientes dispostos a assassinar sua própria gente em troca de uma tigela de sobras, mas um número cada vez maior de zumbis de quartel vem ressuscitando nos últimos tempos com o grito das ruas, ao passo que um número cada vez maior das pessoas que antes se continham com sua violência hoje está mudando de idéia e organizando ao seu modo sua resistência – e talvez em breve passe a organizar também sua ofensiva, fazendo girar um pouco mais a roda histórica.
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Evidentemente, não propugno aqui a intempestiva e irrefletida invasão dessa ou daquela matriz ou filial de uma empresa ou outra, por meia dúzia de indivíduos encapuzados ou de cara limpa, armados ou não, com o fim de depredação ou furto, em ação que se configuraria facilmente como ação criminosa. Não sou assim tão irresponsável ou estúpido.
Incentivo, ao invés disso, a ocupação de empreendimentos socialmente lesivos por milhares ou mesmo centenas de pessoas criticamente conscientes, resolutas e bem organizadas, que assim demonstrariam com muita clareza não só sua intenção positiva e socialmente benéfica, mas também sua capacidade de resistência à criminalização e à satanização midiática da mobilização social autêntica, que a visa reduzir a um amorfo e enigmático bando de “vândalos”.
Agindo assim essas pessoas evitariam que encobrissem com um véu de preconceito agressivo o caráter radicalmente benéfico da medida radical tomada por elas, aquele de impulsionar no grito e no xingamento, senão no pau mesmo (como às vezes é necessário), o bom encaminhamento de sérias e intrincadas questões de nosso tempo, que há muito não encontram vazão por divergirem dos interesses dos atuais gestores. No caso do combate à Monsanto e outras de sua laia, as ações seriam justificadas pelo envenenamento de centenas de milhões de pessoas por elas perpetrados, no interior e para além de nossas fronteiras. Não é mau atentar contra o astronômico lucro privado desses apadrinhados do Estado, grandes conglomerados agro-industriais transnacionais e seus tentáculos financeiros e comerciais, corja que deixa atrás de si ao passar um legado indelével (pelo menos sob a ordem vigente) de depredação ambiental geral e de violentos assassinatos de indígenas, camponeses, favelados, desabrigados e demais em situação de vulnerabilidade extrema.
Deste modo, quando faço a apologia do ataque econômico classista como estratégia de luta social, não estou praticando o incentivo ao crime, mas exortando à revolução social. Quando falo desses ataques, falo de um combate mais que legítimo e universalmente benéfico contra uma máquina monstruosa de esmagamento humano para a extração de benefício econômico privado, o qual é reservado a pessoas bestificadas que se comprazem em exaurir parasiticamente os demais.
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Embora inspirador de redobrados cuidados e exigente de trabalho árduo e muitíssimo qualificado, o cenário que hoje se delineia parece excepcionalmente propício para uma retomada da perspectiva radical de esquerda aqui anunciada, ao mesmo tempo em que se evidencia como inibidor de qualquer deturpação barata desse mesmo viés.
Não se pode hoje facilmente fingir lutar contra o capital e fazer-lhe, ao invés disso, carícias, oprimindo para isso o trabalho – isso não é mais aceito; só se pode de fato combatê-lo decidida e inteligentemente em nome e por meio da articulação do mesmo trabalho, força social insuperável se articulada em todos os âmbitos e atuante a todo o tempo. Não se pode negar a existência nem a contundência das determinações objetivas do sistema do capital, mas não se pode tampouco contemporizar com elas, deixando de combatê-las decididamente com o auxílio de todos os meios. Somente seu combate encarniçado é defensável em termos progressistas, libertários, humanistas. E somente os produtores livremente associados podem levar a cabo a grande tarefa.
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Não vivemos hoje o fim das disputas de classe entre os parasitas e os produtores, como pateticamente sugeriram os assim chamados “pós-modernos” (cujos gemidos não se podem mais ouvir devido ao barulho das ruas), experimentamos ao invés disso um acirramento desabrido desse complexo conflito, que hoje se desdobra em âmbitos sequer imagináveis há algumas décadas. Assistimos à exacerbação das contradições entre o que podemos ser tecnológica e organizativamente, por um lado, e o que de fato somos nesses mesmos aspectos, por outro, devido ao controle de toda a sociedade por uma micro-parcela de mega-privilegiados. Temos um fosso cada vez maior entre as possibilidades do gênero humano e a efetiva apropriação de si e do mundo pelos indivíduos humanos, mesmo se considerados os mais abastados e bem instruídos entre nós, que se deixam necessariamente afetar pelo entorno nocivo. E temos esse estado de coisas estabelecido em escala global, apresentando-se em cada canto várias de suas incontáveis facetas ou caretas.
Temos já desenvolvidas forças produtivas massivas e eficientes, com significativo destaque para as tecnologias da comunicação, que não se restringem às telecomunicações e transmissões midiáticas, mas têm aplicações diversas, desde a produção agrícola ou a mineração à operação financeira, passando pelo processamento e pela comercialização final dos produtos – sendo, portanto, de suma importância em um eventual redirecionamento revolucionário. Ao lado disso, temos a eclosão de mobilizações de massa em demanda incontestável pela disponibilização social irrestrita desse fabuloso equipamento de humanização arduamente conquistado pela humanidade – seja no tocante ao suprimento de equipamentos para o livre exercício das capacidades já absorvidas por muitos, seja no que tange à oportunidade mesma de desenvolver tais capacidades por parte da grande massa, como condições para o aproveitamento das gigantescas possibilidades remotas abertas pelo atual momento da história humana, cuja aproximação da vida dessas pessoas só pode ser promovida pela luta.
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Essas mobilizações não parecem ser efêmeras, dado que um de seus efeitos imediatos e de significativa importância é seu desdobramento, sua ramificação e seu enraizamento sob a forma de assembléias populares horizontais, oficinas e grupos de discussão temáticos, aulas abertas e outros dispositivos, por meio dos quais inúmeros núcleos de ação começam a se organizar em consistentes bases municipais, passíveis de articulações cada vez mais amplas, tendendo pela motivação contextual geral à convergência internacional e à troca de experiências em tempo real com agentes em lutas análogas ou similares ora em curso em várias partes do globo. Além de prolongarem e potencializarem o efeito das grandes manifestações, as assembléias e demais organizações e práticas delas derivadas serão responsáveis pela coordenação de novas e ainda mais poderosas marchas, mobilizadoras de forças cada vez mais amplas e diversas, que poderão conduzir nosso entorno a significativas transformações nos próximos anos.
O poder que se está ao mesmo tempo constituindo e mostrando pela primeira vez revela-se cada vez mais apto a transcender o caráter reivindicatório atual, alçando-se a força de instituição do efetivamente novo, a força revolucionária propriamente dita. Revela-se no grupo que ora começa a se delinear, dentro e fora das fronteiras nacionais, um potencial enorme de efetivo empoderamento popular progressivo e irrestrito, que não deve ser negligenciado nem mal aproveitado, em rendimento à dificuldade de se encaminhá-lo de modo efetivamente revolucionário, mas capitaneado para essa criação de um novo modo de vida humano. O vigor com que o capital resiste não deve fazer refluir o ataque decidido por parte do trabalho, mas impulsioná-lo a aprimorar sua estratégia de combate.
No momento atual e sob as circunstâncias objetivas que este contexto apresenta, é fundamental idealizar e realizar incursões cada vez mais decididas, incisivas e contundentes no plano político institucional, nos seus diversos nichos, como se vem fazendo. Não com vistas a criar aos poucos e diligentemente um “Estado justo”, mas com o propósito de torná-lo algo mais fácil de ser removido em um eventual processo revolucionário e que permita melhor o encaminhamento mesmo da revolução, caso seja de fato promovida. Nesse plano encaixam-se medidas como a desmilitarização da polícia, que favorece de algum modo a segurança daqueles que se propõem a exortar a causa revolucionária, inclusive com alguma energia e podendo incorrer em excessos, mas não redirecionam a instituição para outro propósito precípuo que não a salvaguarda do grande capital. Ainda sobre esse ponto, convém sempre lembrar que, no caso dos interesses desse último serem efetivamente postos em risco, não só a desmilitarização se reverte como o restante das forças armadas são enviados prontamente para o restabelecimento da ordem. Tem-se de volta, num estalo, a velha polícia, com todos os seus vícios. A grande missão a ser cumprida sobre esse tema é a de conseguir a desmilitarização e, no prazo mais ligeiro possível, antes de sua reversão por encomenda dos parasitas, conseguir difundir a causa revolucionária o suficiente para que não haja a possibilidade ou sequer a necessidade de qualquer confronto, principalmente por carência de combatentes do lado deles, para que o novo sistema social germine dos escombros desse já moribundo de cuja carcaça semi-morta ainda nos alimentamos.
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O Estado não pode ser a instituição propriamente revolucionária que porá fim ao domínio político de classe do capital, por ser justamente a manutenção desse mesmo domínio sua função precípua. Este papel cabe à Comuna, a ser gestada em meio às amarras do capital e de seu Estado, em suas frestas, mas não a partir de sua genética e segundo suas determinações.
Que se perpetuem, fortaleçam, difundam e articulem em âmbitos cada vez mais amplos os germens das Comunas, as Assembléias Populares Horizontais que hoje pululam em nossos convulsionados municípios, às quais se agregam e das quais emanam outras instâncias de luta potencialmente revolucionária, a partir dos municípios e em direção aos emaranhados mais amplos de relações sociais.
Que esses combativos grupos se organizem cada vez mais e realizem manifestações ainda mais impactantes, que ocupem produtivamente prédios públicos e incrustem um vigoroso cravo de poder popular nas rançosas instituições estatais servis ao capital, com o qual terão forçosamente que dialogar seus serviçais imediatos, ocupantes dos assim chamados cargos públicos.
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Que também resistam corajosamente à violência repressiva, evidenciando que ela só será efetiva contra os anseios populares se o Estado descaradamente decidir pelo assassinato dos dissidentes em via pública, estendendo de modo irrestrito a chancela social tacitamente conferida às operações homicidas em favelas. Que revidem àquela violência atingindo também seus financiadores, que se situam confortavelmente para bem além dos combatentes fardados ou engravatados que utilizam como anteparo. Não que tentem contra suas vidas em reação à sua violenta polícia, mas que ajam decididamente contra algo que lhes é mais caro do que a vida mesma: suas lucrativas posses.
Essa história de cindir o movimento entre os “vândalos” e os pacíficos não é senão uma estratégia para pasteurizar, domesticar, subjugar, cooptar a manifestação, impedindo que conduza ao que de fato é lesivo aos parasitas: o prejuízo material extremo. É nessa frente que vem lutando a imprensa convencional, reforço importante do aparato contra-revolucionário que se está pondo a operar. É essa sua função social; é esse seu papel histórico.
Se o capital se vir ferido, significativamente lesado, seu domínio se vê efetivamente ameaçado, ainda que a longo prazo, de modo que seus titulares começam a se mostrar incomodados em sua inicial posição de relaxamento e gozo displicente. Esse é o ponto. E aquela parcela da população já habituada ao extremo da violência está se tocando disso, mostrando-se disposta a fazer incidir nesse plano a força de sua ação conjunta, ligando um ruidoso e luminoso “foda-se!” para as possíveis represálias de seus sebosos gestores. É aí que entra a gritaria da mídia contra os arruaceiros, que supostamente sabotam o protesto civilizado dos demais.
É o chamado “vandalismo”, e não o hino nacional cantado em coro pelos mais amenos e desavisados, o que está deixando na berlinda cada âmbito do poder instituído, não só aquele subalterno operante no plano da representação, mas também aquele imediato, dos grandes proprietários. Ele não é senão a violenta reação dos radicais diante da violenta oposição do Estado à consecução de seus mais que legítimos propósitos.
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Infiltraram uns demônios à paisana entre os manifestantes, para começar o pau com os traidores de farda, achando que assim iam só dar o pretexto pra essas aberrações de aluguel espancarem uns poucos manifestantes e aterrorizarem com o exemplo o restante, que iria de rabo entre as pernas para casa, revoltado com os “vândalos” que haveriam provocado tudo aquilo e louvando a polícia, que sairia como a benfazeja restauradora da ordem. Com poucos recursos, parcelas diversas da classe trabalhadora seriam instigadas a uma breve rinha entre si, para a diversão e o benefício amplo da classe parasita. Tudo seria muito bom para os donos de tudo.
Mas o que aconteceu foi que a parcela de “vândalos” era maior e muito mais bem preparada, além de muitíssimo mais irritada, revoltada, do que imaginavam ou poderiam sequer sonhar os terroristas de Estado. Esses “bárbaros” libertários ofereceram muito mais resistência do que haviam previsto os peões de coturno que os mandarins tinham enviado para a contenção da turba revolta e a dispersão do rebanho amedrontado. Embora muitos desses combatentes populares tenham sido apanhados pelo inimigo, o grupo dos que resistiram à absurda violência policial infundiu nos membros dessa instituição e em seus mandantes um pouco do pânico que queriam disseminar na massa.
Além disso, é importantíssimo notar acerca do tema que a vasta parcela de “não vândalos” que compunha a multidão, no correr dos dias de repressão violenta injustificável, passou a dar apoio cada vez maior e mais ruidoso à turma mais aguerrida, senão engrossando suas fileiras com pedras e mesmo bombas caseiras em punho, pelo menos vaiando e xingando a plenos pulmões a polícia mais que truculenta, que agredia a todos indistintamente, com a suposta função de reprimir os mais radicais em sua sanha destrutiva. Já é raro ouvir os gritos de “sem vandalismo” e “sem violência” nas massivas manifestações de nossas cidades, a não ser voltados ironicamente aos repugnantes capangas do capital.
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Que se acirrem ainda mais os ânimos dos revoltosos e se disseminem com ainda mais presteza, amplitude e profundidade as capacidades multiplamente produtivas, tanto organizativas como operacionais, dadas à luz pelos eventos dos últimos dias, embora gestadas há bastante tempo.
Engendradas pelas manifestações massivas e pelos trabalhos de apresentação, discussão, deliberação e encaminhamento coletivo de propostas pertinentes às demandas sociais mais prementes que a elas se seguiram, sob a forma de assembléias ou grupos de trabalho diversos e inter-relacionados, essas capacidades devem se articular em quadros cada vez mais combativos, coesos e intercomunicantes, operantes em todos os âmbitos e capazes de contribuir para a criação das condições necessárias e suficientes para a supressão do Estado e todo o sistema capitalista e a emergência de uma federação de comunas autônomas, nas próximas décadas.
Que nesse movimento se articulem as frentes urbana e rural de resistência e avanço e que se forme um só bloco anticapitalista, decididamente revolucionário, descentralizado mas coeso, organicamente ordenado. E que não se aprisione cada levante em suas fronteiras nacionais, mas se impulsione a conexão com movimentos análogos de mundo afora. Que o sistema do capital seja finalmente batido em sua universalidade, não apenas podado neste ou naquele galho, para voltar a crescer ainda mais viçoso após a momentânea perda.
Sobre esse ponto é crucial notar que a afluência dos trabalhadores organizados ao movimento é indispensável para a elaboração conjunta e cooperativa de uma alternativa para o país, ao invés de mero aparato de pressão popular sobre os atuais gestores do Estado do capital. Se houver a convergência entre o contingente que foi às ruas e os trabalhadores sindicalizados e representados em partidos políticos legitimamente de esquerda, pode pensar-se no desenvolvimento aqui entre nós de um modelo alternativo para todo o mundo, passível de alastrar-se a partir da América Latina para os outros continentes do globo. E esta confluência não é tão inusitada quanto aparece a muitos superficiais observadores, que não percebem na grande massa de estudantes mobilizados nos protestos dos últimos dias uma porção da classe trabalhadora já atuante em empregos de baixa qualificação e remuneração, empenhada com seus próprios recursos e esforços em se qualificar educacionalmente para um trabalho mais complexo, portanto, mais caro. Muitos dos atuais estudantes, a partir mesmo do ensino fundamental, mas principalmente desde o ensino médio, não são apenas futuros trabalhadores, mas atuais agentes da labuta produtiva que, com parte do pouco que ganham por seu esforço e sacrifício, se qualificam para um eventual emprego melhor, de cuja renda deverão ser capazes de extrair o suficiente para o pagamento dos créditos educacionais de que lançam mão para se formar para o capital. Os demais estudantes em luta, em sua quase totalidade, são filhos de trabalhadores, de indivíduos há muito operantes como força de trabalho assalariada nos mais diversos ramos da produção. A mágica manobra não seria senão a de unir partes fragmentadas da classe produtora, que hoje se pulveriza em movimentos aparentemente autônomos, de camponeses, operários, estudantes, profissionais liberais, em um conjunto compatível mesmo com pequenos proprietários de meios de produção, que pelejam ao lado de um, dois ou poucos mais funcionários e são igualmente massacrados pelo grande capital e seu Estado.
Há muito que pode ser feito no sentido de promover essa convergência. E deve ser feito, sob pena de perdermos uma singular chance histórica que nos caiu sobre o colo.
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Há que se fazer propaganda a todo o momento e em todos os planos, sempre remetendo à emancipação humana global como via única de solução dos problemas concretos que nos afligem a todos, sejam os mais imediatos ou os mais remotos. É urgente que se articulem e comecem a atuar grupos diversos voltados às mais distintas e complementares ações de propagação legítima da causa libertária, sem recurso ao engodo e a inúmeras artimanhas com que está acostumada nossa atual corja de comunicólogos de gabinete ou de agência comercial de ideologização rasteira; mas pelo exercício da efetiva capacidade argumentativa e persuasiva desenvolvida em meio à luta real e efetivamente comprometida em espaços públicos, lançando-se mão de ferramentas, simples e complexas, antigas e modernas, e modos de operação conjunta inusitados ou colhidos e adaptados de experiências históricas positivas mais remotas, tais como a Comuna de Paris, e de outras investidas mais recentes dos produtores diretos contra seus parasitas, como as que vêm ocorrendo nos últimos anos em vários países do mundo.
Temos que recorrer a todos os meios à disposição, desde esquetes teatrais à projeção de vídeos e à realização de oficinas e cursos livres, passando por várias outras técnicas e linguagens, muitas vezes em mesclas inusitadas, tudo em radical afirmação da humanidade e de sua liberdade, nas inseparáveis e mutuamente influentes dimensões da individualidade e da sociabilidade. E temos que fazê-lo em ambientes diversos e fecundos, reais ou virtuais, tais como escolas e praças ou redes sociais e fóruns de discussão, mas principalmente em eventos festivos multimídia realizados com essa finalidade, além daquela lúdica, evidentemente, que não nos pode faltar. Em decorrência desse trabalho as manifestações massivas não só irão perseverar e se multiplicar, mas adquirirão um caráter cada vez mais decididamente combativo e impositivo.
Aproveitemos a momentânea baixa na guarda que o país todo operou nos últimos dias com relação ao tratamento cultural da problemática das “mudanças políticas” e de sua necessidade premente, tema que havia sido banido por inteiro há décadas mesmo de qualquer conversa que não ocorresse nas frestas ou sob olhares de reprovação prepotente, mas que agora se põe com destaque na pauta cotidiana compartilhada pela maioria, ainda que mal digerido.
Usemos essa fenda para plantar com bastante cuidado a muda da revolução social, removendo com atenção e esforço cada erva daninha, seja ela reacionária, conservadora ou reformista. E cuidemos dessa plantinha para que cresça viçosa, saudável e vistosa.
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Aos que se indignam com a corrupção e tentam reduzir a convulsão social atual ao combate dessa prática, lancemos-lhes na cara a pergunta: por que não levam em conta em sua revolta o fato de que há também corruptores, isto é, mega-proprietários que se valem de bons bocados de seus quase intermináveis milhões, quando não bilhões, para comprar a atuação daqueles que vocês estupidamente elegeram para a função?
A questão não é a corrupção, devemos dizer-lhes, mas o sistema perverso do capital. O que chamam de corrupção é a podridão dentro da podridão: é o Estado sendo recomprado por uma facção da classe capitalista para o atendimento de seus interesses contra o de outra facção da mesma repugnante classe, já tendo ficado para trás há muito tempo o interesse dos trabalhadores – que não corrompem ninguém, mas que arcam sempre com o ônus de qualquer corrupção.
Quando a classe capitalista como um todo se vê ameaçada (como agora) – aí, sim! –, acaba a corrupção, pois acaba o racha entre as facções. Mas apenas até que se ponham de novo os trabalhadores no seu devido lugar.
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Temos que reconhecer quem é quem e reconhecer em que luta nós estamos empenhados, lutando de que lado. Não lutamos pela pátria ou pela nação, não lutamos pelo Brasil. Lutamos pelas pessoas aprisionadas e exploradas em todas as dimensões de suas vidas nesse maldito curral. E essa luta é apenas um momento, um fragmento, da luta global pela emancipação humana contra o repulsivo sistema da propriedade privada, que condena quase todos à completa privação de propriedade e todos à mais completa privação de sentido legítimo em sua vida.
Arriscando, como arremate, um prognóstico restrito ao nosso cercadinho, anteciparia uma dissolução gradual, mas irreversível, da pseudo-esquerda petista por completa ausência de significação histórica; a emergência paulatina, mas energicamente decidida, de uma esquerda autêntica e unificada, pautada por movimentos sociais de base e gerida por meio de mecanismos democráticos de participação popular direta, amparada por setores progressistas das universidades e de outras instituições; e, por fim, recrudescimento do ódio encarniçado das hordas da direita que, para o bem de todos nós humanos, estão cindidas em um vasto gradiente, que vai de um patético petismo à cada vez mais preocupante apologia da espada.
Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.