Por Daniel Caribé
Quando as ruas começaram a ser ocupadas pelas manifestações de junho de 2013, irradiando de São Paulo para todo o país, muitas análises foram feitas a partir dos mais diversos pontos de vista. A maioria tentou entender aquilo tudo como sendo a consequência natural de uma crise das instituições, da incapacidade do poder estabelecido em dar conta da nova dinâmica da luta de classes. Os arranjos institucionais historicamente consolidados, que têm no parlamento a expressão maior mas que não se resumem a ele, já não seriam mais capazes de responder aos anseios da população, muito menos de apaziguar os ânimos em momentos de convulsão social. Daí uma nova institucionalidade deveria emergir, mais democrática ou mais autoritária, não importava a forma, desde que fosse eficiente.
Os mais otimistas pensaram que inevitavelmente teria que ser mais democrática, afinal a história não anda para trás. Quando a presidente Dilma declarou em cadeia nacional que faria um plebiscito e deste a reforma política, a evidência necessária estava dada para aqueles que reservavam alguma esperança no governo eleito. Ainda comemorando a suposta virada, sinalizaram para a construção de amplas assembleias locais para elaborar propostas de emendas constitucionais e, contra as forças conservadoras, apoiar o governo que após 10 anos no poder seria finalmente “democrático e popular”.
Entretanto, como tudo de junho, o sonho não durou nem duas semanas. Não houve plebiscito e não houve reforma política. Por outro lado, as estruturas de poder se reforçaram por outras vias: a da repressão. O PT e nenhum outro partido tinham força social nem interesse em seguir o rumo das grandes transformações. Por outro lado, das ruas não emergiu nada que levasse à frente o desejo de transformações mais radicais. O Movimento Passe Livre (MPL), como único movimento social que entendia o que se passava e com legitimidade para apontar alguns caminhos, não tinha ainda a dimensão necessária para o desafio, e os outros movimentos que deveriam construir esta rede de lutas se encontravam totalmente estraçalhados após uma década de intensa cooptação estatal.
Recuperar a qualquer custo a estabilidade política e social, mesmo que a credibilidade das instituições esteja definitivamente na lata do lixo, passou a ser a meta de todos os grupos no poder. Como criminalizar os milhões de pessoas que foram às ruas em todo país em centenas de cidades era atirar contra o próprio pé, buscou-se corromper a pauta das ruas para tirar delas a radicalidade e jogá-las para a direita ou, no mínimo, esvaziá-las de conteúdo através da pulverização das exigências. Foi este movimento que as elites operaram com maestria, usando principalmente das emissoras de TV, e aqui neste site passou a chamar-se esta virada de “Revolta dos Coxinhas”.
É difícil dizer de que forma esta manobra obteve sucesso em cada canto do país. No Rio de Janeiro e em São Paulo, as duas maiores cidades, nitidamente a reversão das lutas à direita abateu todos os lutadores sociais, inclusive fisicamente quando os grupos fascistas atacaram os militantes dos partidos de esquerda. Acompanhávamos pela televisão, líamos cotidianamente os mais diversos relatos, quando não eram os companheiros próximos a nós que nos contavam o que se passava. Chegou-se ao ponto dos setores libertários se proporem a ser eles mesmos escudo dos partidos políticos nos atos de rua, isto antes dos black blocs se destacarem.
Mas e nas outras cidades? O Passa Palavra apresentou Salvador como exceção. Aqui os coxinhas não tiveram vez e setores populares pautaram as lutas mesmo que de forma difusa. Mas das outras cidades até hoje carecemos de relatos e pode ser que nunca seja apresentado um panorama mais preciso do que aconteceu. Sabe-se que em Fortaleza, Belo Horizonte, Belém, Manaus, entre outras, ocorreram manifestações muito maiores do que as de Salvador e embates muito mais violentos contra a polícia. Porém, quem eram estes que estavam no asfalto? Coxinhas, movimento sociais, jovens da periferia?
Em outro sentido, se ao entendermos a recuperação das lutas a partir de fora já nos deparamos com estes limites, entendermos a recuperação delas por dentro, na linha do que foi exposto no texto Entre o fogo e a panela, passa a ser também de extrema importância. Se a novidade de junho foi a forma como se deu a assimilação por fora, isto não pode nos levar a acreditar que a assimilação por dentro tenha saído de moda. E, infelizmente, mais uma vez Salvador se apresenta como exceção. Talvez seja a única cidade em que a sigla MPL tenha significado uma frente de lutas e não o movimento social que a criou. E talvez também seja a única cidade em que os partidos de esquerda conseguiram recuperar as lutas por dentro. Daí a importância de socializar o que se segue.
Trocar a roda com o buzu andando
Após o país todo acompanhar ao vivo, pela TV, a repressão aos atos puxados pelo MPL de São Paulo, gerando uma revolta generalizada, alguns poucos aparentemente não vinculados a nenhuma organização política puxaram uma plenária no Passeio Público de Salvador para construir ações em solidariedade aos militantes paulistas.
Um número próximo a mil pessoas comparece ao local, a maioria com pouca experiência em mobilizações sociais. A grande polêmica era se já sairíamos dali, em um sábado final de tarde, em passeata pelas ruas da cidade ou se convocaríamos um ato maior para os próximos dias. Após confusões e rachas, e algumas horas de debates, um grupo puxa um ato sem esperar pela deliberação da assembleia e ocupa a rua em frente ao Passeio Público. A maior parte continua debatendo e cerca de uma hora depois se junta aos demais para saírem todos juntos, sem confrontos entre si e contra a polícia, rumo à Estação da Lapa, onde houve o passe livre, que em Salvador significa colocar os passageiros para dentro do ônibus pela porta de saída, sem ter que passar pela catraca nem pagar a tarifa.
Paralelo a isto, pessoas do antigo MPL Salvador (2005-2008) se articulam e, com o apoio de militantes próximos a eles, resolveram comparecer a esta assembleia e de lá começaram a discutir de que forma contribuiriam com este novo momento. Alguns destes participaram da condução da assembleia e empreenderam esforços para que a bandeira do transporte público gratuito não fosse escanteada, evitando que o ato ganhasse teor moralista (contra a corrupção, por exemplo) ou fosse rapidamente cooptado por grupos autoritários ou se perdesse em múltiplas pautas.
Na semana seguinte, puxado por esta primeira assembleia, aconteceu o primeiro grande ato, com cerca de 10 mil pessoas na região do Iguatemi. O ato foi bastante difuso em suas pautas, de caráter nacionalista e hegemonizado pelo setor conhecido por classe média. Foi a primeira e única vitória dos coxinhas em Salvador. Daí para a frente não teriam mais vez. Sem articulação, sem uma pauta clara e sem quererem misturar-se com os trabalhadores precarizados, praticamente abandonaram as ruas.
Este ato, além de desfilar pelo centro econômico da cidade, contou com um setor em destaque que fez passe livre na estação de transbordo do Iguatemi ao final, mas a grande maioria se limitou a cantar o hino nacional e gritar “sem violência”, mesmo não havendo repressão policial. A exceção ficou a frente deste ato, no qual a juventude do PCdoB (UJS) dava um caráter mais de esquerda, com todo o cuidado para não atingir os governos estadual e federal. Muitos outros militantes, que viriam logo à frente compor as forças que disputariam a vanguarda do movimento, também se encontraram ali naquele setor.
Nesta altura mais pessoas se aglomeravam em torno dos antigos militantes do MPL Salvador e resolveram seguir a estratégia de “passar o bastão”, o que significava pautar massivamente a questão da mobilidade urbana com os setores interessados, e daí não deixar a pauta se esvaziar, passando o movimento para aqueles que entendessem a lógica do seu funcionamento e que estivessem dispostos a entrar em uma organização autogerida. A esperança era que surgisse dos atos um coletivo do MPL ainda maior que o anterior, entretanto, e, obviamente, não nos moldes em que se deu.
Naquela altura a pressão midiática já era muito forte para que as ruas se virassem à direita. O antigo MPL Salvador e setores próximos puxaram uma videoconferência com um representante do MPL São Paulo, que aconteceu exatamente no dia em que o prefeito de São Paulo, junto com o governador do mesmo estado, decretaram a redução da tarifa e confirmaram a vitória dos movimentos sociais. Já aqui em Salvador nenhuma vitória pintava no horizonte. Daí uma série de atividades formativa foram tiradas, porém o contexto apresentava muitas emergências a cada novo dia, inviabilizando qualquer planejamento consistente das atividades.
Poucos dias depois do ato dos coxinhas, no dia do jogo da seleção da Nigéria contra a do Uruguai, que aconteceu na Fonte Nova, o maior ato foi chamado, para sair da praça do Campo Grande em direção ao estádio. A ideia de muitos era barrar o jogo, o que significava que a crítica aos “megaeventos” estava definitivamente na pauta das manifestações, junto com outras tantas. Enquanto os coxinhas ficaram na praça, a maioria, um número maior que 10 mil pessoas, resolveu seguir em frente. Muitos policiais infiltrados e pouca organização prévia permitiram que o ato fosse dividido em duas colunas, uma seguindo pela Joana Angélica e a outra descendo os Barris. Dois ou três quilômetros após o ponto inicial, as duas colunas foram duramente reprimidas, o embate contra a polícia durou algumas horas, houve algumas prisões e alguns feridos. O grupo que estava com a faixa da “Tarifa Zero Já”, formado pelo antigo MPL Salvador e pessoas próximas, foi tensionado pelos infiltrados a tomar o rumo dos Barris e muita gente acabou descendo atrás. Após dispersar os manifestantes das duas colunas na base da bomba e do cassetete, a polícia saiu “varrendo” o Centro da cidade. Os embates recomeçaram e chegaram até o Campo Grande. O jogo aconteceu normalmente.
Neste mesmo dia o grupo que tinha confeccionado a faixa do “Tarifa Zero Já” se juntou a outros coletivos já estruturados e resolveram puxar a “Frente Tarifa Zero”, que só ganharia este nome mais à frente. A Frente era para ser o mais ampla possível e o debate ficou em torno de se os setores governistas deveriam ou não compô-la. Deste modo, além dos grupos libertários, o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) foram convidados, e houve tensionamento em convidar também a Consulta Popular, devido ao seu posicionamento favorável aos governos estadual e federal. O partido acabou participando de umas das reuniões, mas sinalizou desde o início que ali não era o espaço de construção deles. O PSTU também não se agregou e pessoas ligadas ao PSOL participaram sem maiores contribuições. Ficaram somente os coletivos de caráter mais autonomista e militantes que participaram de organizações já extintas.
Neste momento a intensidade dos atos e a forte repressão a eles não dava espaço para maiores formulações e somente duas ações funcionaram bem: o grupo de destaque de Advogados Populares, que era mais amplo do que a Frente Tarifa Zero, pois contava com pessoas não ligadas a ela; e a confecção de materiais para dar identidade visual aos atos e fincar de vez a pauta da tarifa zero nas mobilizações. Não havia consenso nem ação bem articulada nas intervenções das assembleias no Passeio Público. Alguns achavam que era melhor abandonar aquele espaço e construir os atos e atividades por outros meios, porém outros tantos ainda defendiam que ali era um espaço importante de construção coletiva.
O primeiro ato enquanto Frente Tarifa Zero foi um desastre. Com poucas pessoas nas ruas e diante de outros dois grupos mais articulados e coesos, a Frente “comeu mosca”. Alguns membros da Frente foram seguidos por policiais antes do ato, o que deixou todos um pouco aflitos, já esperando pela repressão maior de mais tarde. Enquanto os setores governistas saíram em direção ao Iguatemi, em uma cidade completamente vazia e escoltados pela polícia (estava acontecendo jogo da seleção brasileira na Fonte Nova), um outro grupo resolveu seguir em direção ao estádio. Os dois grupos foram reprimidos e houve muitos presos, principalmente no ato do Iguatemi (leia aqui o relato deste dia). Os advogados que participavam da Frente se dividiram entre as duas colunas, alguns militantes também seguiram junto a alguma das duas colunas, mas a grande maioria resolveu fazer uma avaliação da situação para poder se antecipar aos próximos acontecimentos. Após este ato deu-se início à campanha de arrecadação de dinheiro para pagar as fianças, sendo que um dos detidos ficou encarcerado por mais de duas semanas. Também deste ato em diante os grupos partidários, principalmente os governistas, passaram a fazer peso nas assembleias do Passeio Público.
Apesar do fracasso do ato anterior, a consolidação da Frente permitiu que daí em diante todos os atos fossem identificados visualmente pelas faixas do “Tarifa Zero Já”, única faixa que os manifestantes permitiam ir na linha de frente, e a Frente chegou a articular uma bateria musical que foi destaque nos atos seguintes. A Consulta Popular decidiu se diferenciar através das pautas “Passe Livre” e “10% do PIB para educação” e os outros grupos raramente conseguiam se mostrar visualmente nos atos. Tanto foi assim que no ato derradeiro de junho, o da final da Copa das Confederações, só havia as faixas e bandeiras “Tarifa Zero Já” e as da Consulta Popular.
Este último ato de junho, pouco expressivo, aconteceu no dia da disputa do terceiro lugar da Copa das Confederações, em Salvador. Logo após este jogo, já no Rio de Janeiro, aconteceria a final entre Brasil e Espanha, e o país já se encontrava em convulsão nacionalista e as ruas completamente vazias, só marcando presença nelas os grupos políticos mais radicais e a polícia. Com mais de três policiais para cada manifestante, este último ato de junho nem chegou a ser reprimido e, após desistir de chegar à Fonte Nova, resolveu regressar ao Campo Grande onde uma tropa da polícia o aguardava.
Depois de junho…
Logo nos primeiros dias de julho aconteceram dois atos. Um deles foi completamente hegemonizado pelos partidos governistas e foi também o primeiro ato que conseguiu chegar ao seu destino final. No meio da semana e em horário comercial, poucos se dispuseram a dar sequência à Jornada de Junho e o medo de que algo parecido com a Revolta do Buzu de 2003 acontecesse mais uma vez pairou no ar. Na porta da Prefeitura, representantes do PCdoB/UJS anunciaram que aconteceria na semana seguinte uma audiência pública na Câmara de Vereadores com o Movimento Passe Livre Salvador e que deveriam ser apresentados os seus representantes.
Daí em diante, no Passeio Público, local onde as pessoas e grupos se encontravam para construir as atividades, os embates entre setores antipartidários, independentes, libertários e partidos políticos se deram de forma cada vez mais intensa, sempre sob a vigia dos infiltrados da polícia. O ápice destes embates aconteceu exatamente em torno da composição do time de representantes das mobilizações na audiência pública. Na primeira assembleia com este pauta os grupos partidários elegeram quase todos os representantes a partir dos seus quadros e os poucos independentes escolhidos eram bem próximos a eles, o que causou uma revolta geral. Na assembleia seguinte a comissão foi revogada e uma nova posta no lugar.
O grupo que se formava em torno do antigo MPL Salvador debatia se ainda valia a pena participar daquele espaço e não chegava a nenhum consenso, quando a plenária da assembleia os chamou para elegê-los, por aclamação, representantes do movimento para a audiência pública, pondo-os no lugar dos representantes escolhidos na assembleia anterior. Junto a eles um advogado do Coletivo de Advogados Populares ligado ao PSOL e uma independente também foram escolhidos. A verdade é que o espaço era contraditório e se perdia correndo atrás do próprio rabo, sinalizava para se transformar numa reprise de outros filmes e com o velho final já manjado onde a vitória só pode vir pelo cansaço dos demais e pelo esvaziamento, porém, e diferentemente de outros momentos, era muito favorável aos grupos autonomistas.
Tentou-se a partir daí intensificar as atividades de formação em torno da pauta tarifa zero e dos princípios organizativos do MPL com as pessoas que participavam das atividades do Passeio Público. Outro representante do MPL-SP se fez presente em Salvador neste momento e ajudou nas atividades. Ficou ambíguo se era a Frente ou os militantes do extinto MPL Salvador e pessoas próximas a ele que faziam este trabalho. Entretanto, o desgaste e a falta de confiança política e pessoal em relação às pessoas e grupos que não compunham a Frente havia se aprofundado e atravancava as atividades. Era também muito difícil mediar as tensões entre os setores antipartidários e os partidos políticos.
Ainda nos primeiros dias de julho houve o ato do desfile do 2 de Julho. A Frente Tarifa Zero bancou o ato pautando a questão da mobilidade urbana, enquanto os outros resolveram reforçar as suas organizações. Além da tarifa zero, a Frente pautou a repressão do Estado contra as manifestações e exigia a liberação dos presos políticos. A ala da Tarifa Zero conseguiu algum destaque, apesar de nem de perto refletir o tamanho das manifestações de junho.
Perdeu-se, então, o mês de julho nestas disputas. Após a audiência pública, os grupos partidários tentavam barrar os atos contra os governos do estado e federal, ambos do PT, e somente no final do mês marcou-se um ato em direção ao Centro Administrativo da Bahia (CAB), visando questionar o poder estadual.
Entretanto, na véspera do ato no CAB, houve a ocupação da Câmara de Vereadores, que se encontrava em recesso, feita por um grupo no qual as pessoas da Frente não foram convidadas e o foco voltou a ser o prefeito Antônio Carlos Magalhães Neto, do Democratas (DEM). Todo o processo de construção coletiva no Passeio Público, mesmo que conflituosa, foi abortado neste momento e as energias que restavam foram direcionadas para manter a ocupação da Câmara.
A Frente resolveu não participar da ocupação, mas alguns dos militantes e grupos que a formaram foram mesmo assim. Ao redor da ocupação, muitos conflitos e nenhuma vitória. As ruas se esvaziavam e muitos que até então participavam ativamente das manifestações se decepcionavam e regressavam às suas vidas. A ocupação da Câmara de Vereadores foi o xeque-mate no grupo que se organizava em torno dos antigos membros do MPL Salvador e na Frente, e se foi uma tática desesperada com o intuito de ganhar a direção do movimento ou isto aconteceu por tabela já não importa mais saber. O fato é que do dia em que este pequeno grupo ocupou a Câmara em diante (mesmo que fosse um ato simbólico, já que os seguranças continuaram controlando o fluxo de pessoas e as atividades estavam suspensas por outros motivos), a sigla MPL estava completamente perdida e só não se consolidaram enquanto vanguarda do movimento porque já não havia mais retaguarda.
Durante o período da ocupação da Câmara de Vereadores o grupo em torno dos militantes do antigo MPL Salvador resolveu reativar o coletivo do MPL em Salvador e o debate passou a ser se valeria a pena disputar o nome “Movimento Passe Livre”, totalmente capturado pelo grupo que ocupava a Câmara de Vereadores, ou se usariam a pauta central do próprio Movimento, a tarifa zero. O grupo formado por militantes, em sua grande maioria ligados a partidos da base de apoio dos governos estadual e federal, usava a sigla do MPL sem nenhum constrangimento, se diziam lideranças e representantes, mas não tinham nenhuma ligação com a história do Movimento Passe Livre, além de não respeitarem as pautas e estrutura organizativa. Sequer consultaram os outros coletivos da federação.
Daí para a frente os atos foram cada vez mais inexpressivos e a repressão cada vez mais forte. Alguns destes atos foram puxados pela frente partidária que capturou o nome do MPL e em que se destacaram a UJS, Consulta Popular e grupos próximos menores. Entretanto, as tarefas mais evidentes ficaram a cargo de supostos independentes. O ato que aconteceu no dia seguinte à ocupação retrata bem a dinâmica que tomaria conta das mobilizações até o mês de setembro.
Já no 7 de Setembro, Grito dos Excluídos, houve outro ato duramente reprimido, desta vez puxado pela União Independente Pelo Passe Livre (ver aqui), coletivo que decidiu se organizar por fora da federação do MPL por não aceitar de modo algum partidários entre os seus membros. O coletivo em torno dos antigos membros do MPL Salvador já se assumia Coletivo Tarifa Zero e já havia encaminhado aos outros coletivos do MPL a intenção de ser aceito na federação, o que se concretizou logo em seguida. Os dois coletivos toparam juntar forças para construir algumas das suas atividades, em contraposição à frente partidária que capturou a sigla e o capital simbólico das manifestações de junho e do MPL.
Para além de Salvador
É difícil hoje entender a frente que capturou a sigla do MPL em Salvador. Há quatro ou cinco figuras em destaque (ver as duas mais evidentes) que aparecem nas entrevistas, debates e se expõem nas redes sociais, com um discurso pouco coeso entre elas. As organizações com alguma base social ligadas à juventude que a constituíam, como a UJS e a Consulta Popular, não jogam mais peso nos atos e atividades. Entretanto, o capital simbólico formado a partir da apropriação da sigla, das manifestações e da ocupação da Câmara de Vereadores dá ainda alguma visibilidade ao grupo. Neste vídeo (ver aqui) feito por eles, podemos perceber o esvaziamento do grupo e a apropriação indevida dos símbolos do MPL, assim como no site em construção da frente partidária.
A esquizofrenia é tamanha que chegaram a puxar também um ato da Semana Nacional de Luta pelo Transporte Público do MPL, e ao seu final fizeram passe livre na Estação da Lapa, enquanto a poucos metros dali o Coletivo Tarifa Zero, já federalizado ao MPL, panfletava e fazia a queima da catraca junto com outros coletivos. Usaram no ato bandeiras do tarifa zero e a estética das faixas negras com letras brancas, mesmo que no grupo não haja sequer um membro que reivindique a história das lutas autonomistas e/ou libertárias, muito pelo contrário, pois fazem questão de repudiá-las sistematicamente. Ao mesmo tempo em que adotam símbolos, atividades e práticas históricas do MPL, continuam reforçando o personalismo, a institucionalidade enquanto meio de ação e o aparelhamento partidário dos movimentos sociais. E, estranhamente, continuam ignorando a existência da federação nacional de coletivos do MPL. Se de fato é apenas uma contradição ou tudo não passa de uma encenação, quem tem dúvidas que faça as suas apostas.
Por outro lado, poderia ser uma confusão que se resolveria com o tempo. Dois ou três grupos atuando a partir da mesma pauta, cada um com suas próprias táticas e estratégias, aparentemente têm mais a acrescentar do que só um. E vai lá que acabem se regulando, numa espécie de freios e contrapesos, ao ser um o reflexo invertido do outro. Quem sabe até, superada as rusgas, atuem conjuntamente mais à frente por exigência das ruas cheias novamente. Ou, antes disto, naturalmente um ou outro deixe de existir. Todas estas possibilidades, se fossem plausíveis, permitiriam que este problema fosse menor do que ele realmente é e o seu remédio seria a passagem do tempo.
A verdade é que pouco importa para a maior parte dos trabalhadores qual sigla encampe as lutas quando elas pouco repercutem, como é a atual situação em Salvador. Pouco importa se um grupo privilegia as negociações em mesas dentro de salas dos governos ou se dedica-se ao trabalho de base e à unidade com outros coletivos e movimentos sociais. Enquanto são grupos pequenos, não importa muito se um tem líderes e o outro horizontalidade. O problema passa a existir quando as lutas ganham dimensões maiores e há o desejo de participação de setores antes em situação de apatia. Em uma situação de ascensão, na qual novos sujeitos se propõem a construir as lutas, eles devem se sujeitar às elites estabelecidas ou se constituírem em uma nova vanguarda? É aí que se faz sentir a diferença entre grupos burocratizados e os autogeridos.
Um exemplo já para agora: se intensifica na cidade a luta contra a Linha Viva, uma rodovia pedagiada que cortará a cidade ao meio e removerá aproximadamente 10 mil famílias. Todos os três grupos nascidos a partir de junho neste momento se agregam à luta e, devido à dimensão dela e ao número de pessoas envolvidas, dificilmente farão trabalho de base nos mesmos espaços, só se encontrando inevitavelmente nos atos de rua e nas reuniões ampliadas. Como os atos contarão com o apoio da bancada de oposição da Câmara de Vereadores (PT, PCdoB e PSOL), além de movimentos muito mais estruturados e legitimados na cidade do que o MPL da frente partidária, a União Independente e o Coletivo Tarifa Zero, estes dois últimos terão visibilidade mínima no curto prazo, já que não fazem parte deste meio e nem pretendem fazer, ao contrário do primeiro. Localmente, aqueles que capturaram a sigla do MPL podem mesmo estar construindo esta luta, nem que seja agregando a sigla sequestrada na lista das organizações formadas pelas mesmas pessoas que saem nos documentos. Mas a quem este grupo prestará contas?
Por último, fica o alerta aos demais coletivos do MPL espalhados pelo País, principalmente para aqueles que, como o de Salvador, ao invés de puxarem os atos de junho foram puxados por eles. Pode ser que, antecipando as mobilizações que provavelmente acontecerão em junho de 2014 contra a Copa do Mundo, um sistema forte de repressão aliado ao massacre midiático e ao consentimento dos partidos de esquerda inviabilize qualquer revolta. Não há dúvidas de que a tentativa será a de recuperar as lutas por fora mais uma vez, quando não for possível liquidá-las na base da porrada e das prisões. Por outro lado, seria um despropósito descartar a possibilidade de recuperação a partir de dentro, desde o sequestro da sigla, como em Salvador, até pelo abandono de práticas que até então caracterizam o Movimento. Se os absurdos acontecem primeiro em Salvador não significa que eles não possam ser exportados.
As ilustrações reproduzem obras d’Os Gêmeos, sendo a primeira e a última em colaboração com Banksy.
Os leitores portugueses que não percebam certas expressões usadas no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam algumas expressões correntes em Portugal dispõem aqui de um Glossário de gíria e termos idiomáticos.
Salvador sempre a frente do seu tempo ou pagando pra ver enquanto assistimos o que acontece lá fora.
O carnaval, o bloco.. pode vir bem antes que a Copa do Mundo, até pq tambem teremos dois ensaios de carnaval no ano.
Aqui os coxinhas não tiveram vez?
A passagem não subiu porque o Sr. prefeito disse que não iria aumentar a passagem a pedido da presidenta.
Muito pelo contrário, nenhum movimento foi feito aqui…
Infelizmente o articulista carece de informações básicas para expor com clareza seu pensamento.
A maior falta porém é o do conhecimento como funciona o sistema politico brasileiro.
Culpa o PT por não ter tido o PLEBISCITO prometido pela presidenta. Ora, qualquer reforma dependo do CONGRESSO.
Vou desenhar: As reformas POLITICAS dependem DOS políticos.
A pressão na presidenta não vai fazer acontecer a reforma politica.
A pressão tem de ser feita no CONGRESSO!!!
Achar que a presidente pode TUDO… é muita ignorância ou má fé!
É má fé mesmo!
Quintela:
1) Primeiro você tem que aprender a argumentar para podermos travar um debate qualificado. Você afirma, a partir da negação, que os coxinhas em Salvador tiveram vez, para além do ato do Iguatemi. Seria interessante que desenvolvessem isto com fatos, argumentos e paciência. Se tiver dificuldade em usar das palavras, desenhe mesmo. Quem sabe ilustro o próximo artigo com suas artes;
2) Em nenhum momento disse ou deixei de dizer que a culpa de não acontecer a reforma política foi da presidenta. Disse apenas que não aconteceu. Isto é um fato. E disse que não é do interesse do PT, nem ele tem a força, para fazer esta reforma. Curioso é que de tudo que está escrito seja exatamente isto que tenha te chamado a atenção. O que me interessa não são os políticos, mas a força dos movimentos sociais e suas encruzilhadas. O que me preocupou naquele momento não foi, portanto, a correlação de forças no congresso ou entre os políticos e as elites, mas a ilusão em que muitos caíram após o pronunciamento da presidenta. Achei correto os movimentos sociais não perderem tempo pressionando os políticos, mas achei um equívoco saírem em defesa do governo. E foi exatamente por isto que perderam uma grande oportunidade de mudar as instituições a partir de fora delas;
3) Me agrada muito, sem um pingo de ironia, que os defensores dos governos do PT estejam começando a se interessar por este site. Não vou entrar nos motivos que podem estar levando a isto acontecer, mas não deixa de ser curioso. Seria só legal que parassem de usar certos termos que por aqui não cabem, tipo “articulista”. Sou apenas um militante tentando entender o que se passou. Me ofendi mais com este adjetivo do que o de ignorante e praticante da má fé. Até porque eu não tenho mesmo fé nenhum nestes governos daí e, quanto ao ignorante, a forma como você escreve já nos dá uma ideia de quem não costuma usar do espelho.
Daniel,
Eis que alguém escreve um texto de fôlego, descritivo e analítico, sobre o junho soteropolitano. Parabéns, o texto é bastante consistente quanto às disputas travadas internamente na frente “MPL-Salvador” (criada em junho) e as projeções estão bem fundamentadas.
A minha contribuição ao debate:
Salvador manteve os “coxinhas” fora da revolta, mas não soube barrar os pelegos governistas.
Até hj o aspecto mais anunciado – mas não analisado – nas manifestações de Salvador tem sido o seu caráter de “esquerda”, condensado nas ausência dos “coxinhas” e na centralidade da bandeira “Tarifa Zero”. Mas nada dizia-se (antes do seu texto) sobre a assimilação do movimento pelo peleguismo governista – com exceção de alguns debates virtuais ou do relato de uma das manifestações publicadas aqui no PP – (LINK). Talvez fosse cedo demais. Ou talvez estivéssemos iludidos com a possibilidade de hegemonização autonomista dentro da frente MPL-Salvador. Eu me encontro entre os iludidos. Num comentário a um texto neste site, em XX XX XX, escrevi: (Citação). Acreditava que as críticas ao aparelhamento partidário seriam suficientes.
E até certo ponto foi suficiente. Em particular, lembro que numa assembleia lotada no passeio público foram feitas duras criticas a tentativa do PCdoB de liderar a manifestação ocorrida no dia anterior rumo à prefeitura. Os diversos filiados àquele partido, presentes na assembleia, não contestaram as críticas e ainda foram obrigados a presenciar a votação de uma medida anti-aparelhamento: a partir dali, seriam as bandeiras “Tarifa Zero” e “Contra a Copa” que liderariam as manifestações. Para além desta vitória, talvez a mais contundente tenha sido a substituição da mesa de representantes partidários, já relatada por você no artigo acima.
Então, como é que num cenário de crítica generalizada ao aparelhamento partidário (governista) e democracia direta, os partidos voltam a controlar uma frente autônoma?
Duas causas: 1 – a nossa indecisão em disputar o espaço a valer e apresentar um programa e estruturas internas coerentes com a crítica que a maioria fazia; 2 – os partidos usaram uma arma contra a qual não estávamos preparados: a dissimulação através de dois líderes carismáticos (também identificadas no seu texto).
Em relação à causa n.1, não há muito o que dizer. Não estávamos bem articulados no início e quando acordamos, o trem já havia partido. O caráter autônomo da frente “MPL-Salvador” já estava perdido. E a solução foi abdicar de um espaço que ajudamos a construir desde o início para formar algo “novo”. Daí a formação dos dois novos coletivos (CTZ e UIPL).
Tudo bem, nada de tão surpreendente assim. Mas já a causa n. 2, essa sim me surpreende e deve ser analisada para que não se repita em outros lugares. Em todas as assembleias, os filiados a partidos governistas ao invés de se afirmarem militantes do partido X ou Y, diziam ser somente membros de associações representativas. O cara ia falar na assembleia e antes de defender qual deveria ser a reivindicação central da manifestação, dizia: “Meu nome é XXX e eu sou da entidade estudantil Y/do sindicato Z ou do mov. negro e a minha proposta é…”. E não dizia que era da executiva de um partido governista. Não estou insinuando que devêssemos expurgar os filiados a partidos governistas, mas demonstrando como o disfarce e a dissimulação formavam a tática inicial que daria inicio a assimilação. Lembro bem como essa tática foi usada pelo PCdoB e PT para elegerem afiliados para a mesa das assembleias e assim manobrar quando houvesse oportunidade. Essa estratégia fracassou. Com o tempo, os afiliados acabaram identificados e desencorajados.
A essa altura, lá para fins de junho, até pensei que o movimento fosse continuar a adotar espontaneamente um programa crítico de esquerda casado a estratégia de luta autonomista, com decisões em assembleias, comissões temporárias, rotatividade das tarefas, ações de rua e não de gabinete.
Mas é ai, no inicio de julho, que os partidos governistas vão reaparecer com uma tática renovada, na famosa assembleia que elegeu representantes do movimento para a primeira audiência pública. Já tínhamos vencido os governistas para que não houvesse reuniões a portas fechadas com a prefeitura, para que as reivindicações fossem simplesmente lidas em pça publica e protocoladas, para que a tarifa zero fosse central (e não a reforma política ou 10% do PIB para a educação)… por que não conseguiríamos compor uma mesa de representantes independentes para a audiência pública?
Nós fomos surpreendidos pelo discurso oportunista de indivíduos que até então se apresentavam como independentes, mas que a partir dali iriam promover os partidos governistas dentro do movimento. A utilização dessas figuras marcou o início da atual fase do “MPL-Salvador”. Os partidos não precisam se expor nos debates pois, duas ou três pessoas com status de independentes garantem o controle partidário (e governista) do movimento.
Mas não para aí. Para que a base governista se impusesse foi necessário, além dos dois líderes “independentes” partidários-governistas, a mimetização das práticas autonomistas/ libertárias. Daí as bandeiras negras, as comissões, assembleias, ação direta (passe livre) e etc. Não era permitidos estar nas ruas de salvador sem seguir estes códigos.
E é desse modo que os governistas mantem o controle sobre o movimento. Muita forma, pouco conteúdo. Mantem o nome “MPL”, as assembleias, comissões, ação direta e nos documentos não defendem a tarifa zero, mas sim a “tarifa social”. A tarifa zero, segundo o último comunicado oficial da frente, seria um objetivo “ a medio e longo prazo” – dito dessa maneira, sem especificar nem quando, nem como será alcançado. Tarifa zero só para constar.
Pois é, fala-se tanto da infiltração da direita na revolta no Brasil, mas e o que dizer da assimilação das lutas de junho pelo peleguismo governista? Será que foi só em Salvador que os governistas, travestidos de autonomistas, tiveram o cinismo de brandir “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” contra os que se posicionavam contra a institucionalidade e o personalismo? Uma contradição trágica e característica do escroto mimetismo político praticado.
Resta dizer que fomos nós que sugerimos a cor e os acessórios do disfarce.