Por Ronan Gonçalves [*]

Introdução

Um dos grandes problemas na crítica da educação dentro da sociedade mercantil é, ao enfatizar o caráter exploratório e opressivo das burocracias escolares, tomar essa realidade como a totalidade do existente e deixar silenciadas e/ou ocultas as formas de resistência, racionais e irracionais, desenvolvidas tanto por alunos quanto pelos professores e demais trabalhadores. Muitas vezes, os mesmos que se enraivecem por verem os jornais a dar publicidade somente às proclamações oficiais, tanto dos governantes quanto dos sindicatos, não dão o merecido relevo às lutas e experiências traçadas fora desse quadro já conhecido. É assim que passamos a ter a visão equivocada de que as experiências alternativas em educação são aquelas que constam de textos do século XIX ou início do século XX, quando não é o caso de as únicas referências apresentadas serem somente citações ou resenhas do pensamento de um dado autor.

Nada mais distante da verdade. No cotidiano de vida dos mais de 5 milhões de alunos do Estado de São Paulo, juntamente com os 250 mil professores, dentro das mais de 5.500 escolas, há uma profunda riqueza de vivências de caráter multicolorido que não são abarcadas pelas teses e dissertações, não surgem em notícias de jornal e menos ainda em programas televisivos. Longe dos programas oficiais de educação há a presença de variadas forças, que vão da maçonaria à tradicional atuação clerical, passando por clubes escoteiros e movimentos juvenis. Há, também, presença de práticas de educação libertária, que são aquelas voltadas para a luta e libertação social.

cefam
CEFAM de Franco da Rocha

Posto isso, e com o interesse de mostrar que o sistema de ensino não é realidade homogênea e que há, em seu interior, vários focos de luta e de criação de práticas alternativas, pretendo neste texto apresentar de forma sucinta um relato sobre a experiência pedagógica desenvolvida na Escola Estadual de Segundo Grau do Centro, situada em Franco da Rocha, no período de 1995 a 1999. A escola era popularmente conhecida como CEFAM, por também abrigar a conhecida formação para o magistério no período matutino, ao passo que oferecia o ensino médio normal no vespertino e no noturno.

Dentre outros, a validade do relato está em divulgar uma experiência em que houve uma verdadeira politização do cotidiano escolar, onde a atuação pedagógica mais libertária dos gestores e professores serviu de mola propulsora para o desenvolvimento da autonomia estudantil e o almejar de uma consciência mais crítica, tanto no interior da escola, quanto na cidade. Por outro lado, por ter ocorrido em uma escola precária de uma cidade extremamente pobre da região metropolitana de São Paulo, a experiência permite vislumbrar o papel articulador que uma escola pode ter para as lutas sociais: as escolas públicas constituem um vasto campo de atuação e alterar a sua gestão interna constitui a mais importante luta a ser travada.

A Escola

dubuffet-7O CEFAM era destinado à formação para o magistério e foi criado em Franco da Rocha ainda na década de 1980. A partir de 1994 se instalou em um prédio novo e desde 1996 além da formação para o magistério, que era a função original, durante o período matutino, passou a abrigar os alunos de ensino médio no período vespertino e noturno, por conta da falta de vagas em outras unidades. Com um prédio grande e situada a dois quilômetros do centro – ao lado do portão de entrada de uma penitenciária – a escola era freqüentada – além de pelos integrantes do magistério – pelos alunos que não haviam conseguido vagas em outras unidades mais próximas de suas casas. Portanto, estudar no CEFAM, para quem não era do magistério, dado a longa distância, era tido como uma condenação.

Para nos situarmos comparativamente, os anos iniciais do novo CEFAM, de 1994 até 1996, foram marcados por uma gestão autoritária e pela completa apatia estudantil. A diretora responsável pela unidade fazia valer a autonomia disciplinar de que dispõe todas as burocracias e erigia um amontoado de normas dignas dos tempos mais férreos da história do país. Dessa forma, além das regras já tradicionalmente conhecidas, – da submissão geográfica e pedagógica do aluno na sala de aula, passando pela obrigatoriedade de filas e imposição férrea dos horários -, a diretora havia implementado a proibição do beijo e dos namoros, do uso de bonés, também o controle sobre a vestimenta e a punição para quem passasse no corredor ao lado da diretoria.

dubuffet-141O portão principal só era aberto cinco minutos antes do início das aulas, de forma que a totalidade dos alunos do noturno era obrigada a ficar esperando do lado de fora – com frio ou calor, sol ou chuva, necessitando usar os banheiros ou não. Isso tudo quando não eram aplacados por um enorme discurso prévio às aulas, motivado pelo fato de a diretora ter encontrado uma bituca de cigarro – embora não fosse proibido por lei, os alunos eram proibidos de fumar na escola. Essas regras eram prejudiciais, sobretudo, aos alunos trabalhadores. Estes, como trabalhavam em outra cidade, iam diretamente do trabalho para a escola, retornavam à Franco da Rocha sempre 30 ou 40 minutos antes do início das aulas – tempo, entretanto, insuficiente para que eles pudessem se dirigir às suas casas antes de ir às aulas. Naturalmente, eram os que mais necessitavam de um lugar para sentar, usar os banheiros ou acolher-se da chuva.

A diretora e as chefias escolares esforçavam-se ao máximo em resumir a existência estudantil ao interior das salas de aula procurando sistematicamente evitar a convivência dos alunos externa às salas. Daí o combate aos comportamentos que tem vigência nos pátios, quadras e corredores de que é exemplo o namoro, o consumo de cigarro, as competições esportivas, as brincadeiras, as festas etc. Sem ofertar uma variação de possibilidades de aprendizado e dando ênfase no aspecto disciplinar, o administrativo precedia o pedagógico. A clientela que estudava no CEFAM, além de receber a tradicional educação de má qualidade ainda era punida com a vigência de um autoritarismo ao gosto pessoal da diretora e o discurso moralizante que pretende enquadrar o aluno pobre como um fracassado e moralmente inferior.

Foi entre 1997 e 2000 que ocorreram alterações drásticas na unidade escolar. Contrariamente à política da antiga direção – extremamente autoritária -, com a vinda de um novo diretor, presenciou-se a instauração de um projeto pedagógico onde se tinha realmente interesse que os alunos aprendessem, tornando-se pessoas mais conscientes, ativas e dedicadas ao desenvolvimento educacional.

A vinda desse novo diretor, em 1997, ligado ao PT, com novos projetos e novas idéias, coincidiu com um período em que a contratação dos professores era realizada mediante a apresentação de um projeto à escola. Dessa forma, a diretoria da escola podia selecionar aqueles professores que mais se coadunavam com o projeto pedagógico que pretendia implementar. Assim, a citada escola acumulou em seu coletivo de professores uma maioria de docentes estudantes da PUC, alguns da USP, outros provenientes de faculdades particulares, mas todos eles de tonalidade à esquerda e na maioria de passado com participação em lutas sociais – o que implicava um caráter mais prático dessa esquerda. Esse acaso propiciou que a escola fosse formada por um corpo docente de variedade política excêntrica para Franco da Rocha. Dentre uma maioria de professores ligados ao PT, havia uns dois anarquistas, alguns do PSTU, outros ligados às lutas do povo negro, outros independentes e mais ecléticos.

A presença desse coletivo deu uma democratizada na escola e o espaço escolar abriu-se à participação dos alunos. Estes passaram a ser incitados a fazer poesias, jornais, grupos de teatro, rádio, festas, bandas, festivais, fanzines, manifestações artísticas, debates, eventos esportivos. Criou-se uma horta coletiva, de usufruto da escola que [1] era tocada pelos alunos, dias especiais de limpeza geral, onde os alunos, junto com professores e funcionários, punham-se a limpar e pintar a escola. Os alunos podiam escrever nas paredes – em locais específicos – fazer desenhos, colar cartazes. Surgiu um espaço amplo para a manifestação e debate estudantis, assim como, um amplo espaço para recreação.

Foi abolido o controle sobre a vestimenta, a proibição dos namoros, de fumar cigarro, de passar no corredor ao lado da diretoria, enfim, todas as proibições herdadas da antiga gestão. O simples fato de ter sido suspenso o clima de repressão e punição sobre os alunos criou um quadro propício à participação. As primeiras publicações estudantis, à falta de estrutura e experiência anterior, eram feitas com as próprias folhas de caderno, escritos à mão e sem muitas tecnologias mais que a caneta usual, preta, vermelha ou azul.

dubuffet-11De imediato criou-se um conselho colegiado com presença estudantil para debater as questões mais pertinentes e os estudantes começaram a participar da gestão escolar; organizaram-se palestras, filmes, desapareceu o pudor que tolhe as escolas: tudo podia ser debatido; instaurou-se uma biblioteca que era mantida pelos alunos e estes eram incitados à leitura. Os discentes podiam participar das assembléias de professores, embora não tivessem direito de voto, tinham direito de fala e podiam somar-se às excursões de protestos dos mestres até o centro de São Paulo [1] . A rotina escolar passou a ser permeada pela denúncia das desigualdades sociais, que eram debatidas até nas aulas de português ou física, visando uma qualificação política dos alunos e o desenvolvimento de uma cidadania ativa.

Alguns professores chegaram a dar aulas gratuitas fora do horário escolar para uma turma que pretendia prestar vestibular e havia, em geral, um grande incentivo rumo à universidade. Alguns dos professores participavam da manutenção de um cursinho pré-vestibular gratuito para alunos pobres dentro da PUC-SP e incentivaram os alunos a freqüentarem tal cursinho que oferecia aulas durante todo o sábado. Nesse intuito, os professores se esforçaram em conseguir junto à UNESP isenções no pagamento da taxa para o vestibular. Ocorria de se organizar turmas inteiras para presenciar eventos e discussões que ocorriam nos centros culturais do centro de São Paulo, tirando-os da segregação cultural a que a cidade os condenava. Houve alunos que ganharam livros e muitos que acabaram fazendo amizades dentre os docentes. Incluindo ai festas, freqüência de residências e até namoro. Tratava-se de uma tentativa sistemática e coletiva de minorar a hierarquização e dar ênfase ao estudo, à participação e desenvolvimento coletivo.

O novo CEFAM marcou positivamente não só os alunos que lá estudavam, mas a cidade em si. Era a escola onde os alunos tinham a chave para fazer eventos nos finais de semana, os portões não eram trancados e contra toda a situação geral, era a única escola onde não havia violência, nem pixações e os alunos não queriam sair.

Com um clima desses os alunos não tardaram a dar frutos. Em muito pouco tempo organizou-se um grêmio estudantil e iniciaram as passeatas na cidade em prol do passe livre e contra o projeto de municipalização do ensino que era o grande debate daquela época. Os próprios professores incentivavam os alunos a participarem dos eventos e debates políticos, os acompanhando quando das idas à Assembléia Municipal de Vereadores. Em 1998, por atuação hegemônica dos estudantes do CEFAM, fundou-se a União Municipal dos Estudantes para lutar pelas causas estudantis. Antes do jornalzinho incentivado e materialmente apoiado pela escola, surgiram fanzines independentes, debates intra-estudantis que eram expostos em publicações feitas à mão, em folha de caderno e postos na parede, projetos de discussões e um pequeno grupo que já se postava mais à frente da democracia implantada e requeria um alargamento do espaço de politização, atuando junto aos estudantes.

dubuffet-42Tendo em conta a eleição de 1998, fez-se uma simulação interna do sufrágio universal e, com o grande número de alunos que se posicionaram a favor do voto nulo, marcou-se um debate aglutinando alunos e professores que eram pró e contra o voto nulo. Os debates e todas as demais atividades desenvolviam-se, com as limitações dadas, nos três períodos. Assim, independente da hierarquia, os alunos eram postos a debater, com igualdade de tempo para fala, com os professores e entre sí.

O despertar da sociedade para as mobilizações do Movimento Sem Terra, (MST), era acompanhado na escola com documentários, exposições das fotos de Sebastião Salgado, com peças teatrais feitas pelos estudantes tematizando a questão agrária e com o espaço dado para ativistas palestrarem, expor e debater suas questões.

Com a preocupação de dar espaço as mais distintas ramificações políticas e mobilizações sociais e culturais, a escola tinha o seu espaço aberto para os debates efetuados por membros do PT, PSTU, Movimento Negro, Punk, Feminista, Anarquista, Movimento Humanista e movimentos sociais organizados, em geral. Daí que se criou a Semana da Consciência Negra, debates sobre preconceito de todos os matizes, sexualidade etc. Criou-se uma Noite da Poesia, projeto pelo qual todos os anos os alunos eram incitados a produzirem poesias, sendo as melhores aprovadas para a noite final, onde se escrutinava, enfim, as vencedoras, com direito ao prêmio de um livro ou cartões com dizeres de Manuel Bandeira ou Cecília Meirelles – tudo isso regado à música, dramatizações, danças e outros que eram feitos em sua maior parte pelos próprios alunos e professores. Professores e alunos como artistas! Proliferaram as bandas estudantis, os grupos, os eventos, e a escola passou a abrigar uma efervescência cultural que ia do punk ao pop, do rap ao sertanejo, do samba ao eletrônico, passando por debates feministas, raciais, sexuais e amostras e concursos de arte.

Uma coisa interessante foi a instauração de uma avaliação semestral dos docentes efetuada pelos alunos, cujos resultados eram tornados públicos posteriormente. Não eram somente os alunos a serem eternamente avaliados, mas agora estes surgiam como avaliadores dos professores.

O impacto educacional do CEFAM foi tão grande que, até então, dos poucos alunos de Franco da Rocha que chegaram às universidades estatais, ou às particulares de melhor qualidade, assim como aos bons cursos técnicos, a quase totalidade havia passado por lá. Um número enorme de pessoas passou em concursos públicos e de lá saíram muitas educadoras com formação técnica e política diferenciada, além de o colégio ter constituído a base formativa de muitas pessoas que acabaram desenvolvendo papel ativo em lutas estudantís no interior da UNESP, PUC-SP, Fundação Santo André, cursinhos populares, faculdades e movimentos vários.

Infelizmente, com a instabilidade que caracteriza a vida profissional dos professores da rede estadual de ensino – trabalho temporário etc-, aos poucos houve uma grande desarticulação do grupo de docentes. A partir de 2000 a diretoria de ensino da região não permitiu mais a contratação de professores mediante projetos apresentados à escola e passou a prevalecer o critério de antiguidade e maior número de aulas dadas, que hoje é usual. Com essa alteração, e como a maioria dos professores eram novos, sendo que alguns ainda freqüentavam a graduação, muitos não conseguiram trabalho na escola nos anos seguintes, outros foram transferidos ou passaram a ocupar cargos de chefia. Ainda, houve quem passou em concurso e almejando a efetivação foi obrigado a mudar de escola. Mais a frente deu-se a troca do diretor, o que teve um impacto muito grande, e, por fim, a escola foi desativada para que o prédio alojasse cursos de qualificação técnica, tendo-se transformado em uma unidade do Instituto Paula Souza.

dubuffet-12Do outro lado, os alunos são já naturalmente desarticulados na medida em que o curto prazo de três anos do ensino médio vai renovando um terço do estudantado a cada ano. Ocorre, também, que os alunos que amadurecem posições críticas e se posicionam ativamente na organização das atividades, inelutavelmente, se formam e nem sempre são substituídos por outros que correspondam à altura. Entretanto, embora os estudantes se formem rapidamente, eles corresponderam com a participação e o apoio em eventos vários, tanto trazendo para o espaço aberto do CEFAM uma miríade de coisas que surgiam no convívio urbano, do transporte, barrial e em movimentos sociais e de juventude quanto levando para esse convívio coisas que eram germinadas ou reelaboradas a partir do CEFAM. Contrariamente, poucos foram os elementos do professorado das demais unidades escolares que se somaram ao trabalho pioneiro dos professores e da direção do CEFAM.

Diante do ostracismo das gestões e docentes das outras unidades escolares, a juventude foi ficando sozinha com os poucos professores que restaram, ante um quadro em que as ameaças e repressões foram se acentuando, principalmente por parte dos quadros políticos da cidade que viram nesse período o alvorecer da luta por direitos e protestos e denúncias contra a corrupção local. Dispersando-se nos casamentos vários, nos diferentes empregos e locais de estudo que foram se inserindo, não só aquela juventude lutadora foi se dispersando como foi se reduzindo toda a efervescência cultural que era a expressão estética de suas redes de convivência.

Uma ou duas coisas

Não pode passar sem consideração que todo o foco de mudanças implementadas e vivenciadas na escola tinha como alicerce a busca do aprendizado. No contexto de uma unidade escolar agrupada por alunos pobres de uma cidade pauperizada da grande São Paulo, a denúncia das mazelas sociais, da exclusão, da exploração, da inobservância dos direitos sociais por parte do estado e do empresariado, constituiu uma forma de motivar os alunos ao aprendizado. Um aprendizado coadunado com a luta por direitos e/ou efetivação de muitos não cumpridos.

Na busca do aprendizado, havia uma preocupação efetiva com a figura e a condição social do aluno. Além de buscar um tratamento humanizado e mais igualitário entre todos na unidade escolar a unidade buscava fazer a sua parte no que dizia respeito à responsabilidade social para com o estudantado. Assim, embora somente nesse 2009 tenha sido aprovada a lei que garante aos estudantes do ensino médio o direito à merenda escolar, a nova gestão do CEFAM procurou, desde o início, construir parcerias com a prefeitura para que fosse oferecida alimentação aos alunos. No mesmo sentido, embora não fosse de sua obrigação ou alçada, a gestão se preocupou em convencer a empresa de ônibus da cidade a oferecer transporte desde a porta da escola nos horários de saída noturnos. A unidade situava-se afastada do centro, em região escura, de estrada e matagal.

dubuffet-8A perspectiva do projeto partia do pressuposto de que os alunos possuem inteligência e criatividade não exploradas e não manifestadas e a tônica esteve em buscar uma cada vez maior destruição das amarras que fazem tantos andarem de cabeça baixa. Procurou-se por variados modos não somente incitar os alunos a participação, mas foi-se abrindo o espaço escolar às projeções e propostas vindas deles próprios. Com o tempo, ao lado das rotineiras atividades, os discentes foram mostrando-se capazes de organizar grupos de estudo, debates, palestras, assembléias, atos, manifestações, eventos culturais, publicações e outras coisas mais.

Embora todo o processo passasse pela motivação que é construída aos poucos dentro das salas de aula, o projeto adquiriu uma forma estética e política na cada vez maior tomada dos pátios, rampas e corredores como locais de aprendizado e vivência pedagógica. Naturalmente, até as velhas, curiosas e clássicas pichações de banheiro, foram desaparecendo ou tornando-se menos importantes quando cada vez mais os alunos encontravam espaço amplo de expressão na música que tocavam na rádio, nos textos que colavam nas paredes e expressavam nos jornais, nas letras cantadas no palco, nos poemas declamados, na expressão estética de suas roupas postas à mostra sem medo ou vergonha, nos discursos, nas dramatizações.

Como não era somente o espaço das salas de aulas que eram vistos como locais de aprendizado, mesmo os momentos de paralisação e/ou greve não implicavam no desligamento dos alunos e no abandono do ensino. Os discentes eram convocados a participar das manifestações, das panfletagens, dos atos, das discussões, palestras e debates aproveitando esses momentos e esses locais como situações de aprendizagem. Daí a possibilidade de se aprender sobre estrutura educacional do país, legislação, financiamento, cidadania ativa, sindicatos, movimentos sociais, projetos educacionais etc. Da mesma forma, muito antes de surgir o Escola da Família, a unidade tinha um bom funcionamento nos finais de semana, com debates, palestras, filmes, shows, desfiles, eventos etc. Numa mesma cidade, enquanto em outras escolas a polícia invadia os prédios com metralhadoras na mão para combater, nas palavras dos policiais, “a invasão do espaço público”, no CEFAM o espaço escolar era utilizado como ponto de aprendizagem e entretenimento não só por seus alunos mas, ainda, por alunos de outras unidades e movimentos sociais vários. Era aos sábados, era aula: ficavam pra fora da sala, pra dentro da escola.

Numa perspectiva conceitual, podemos dizer que a unidade citada acabou por substituir a tradicional concepção bancária de educação pela idéia de vivência pedagógica. Muito mais do que um dado conteúdo técnico uma unidade escolar transmite um ethos, um conjunto de valores, explícito na forma em que se realiza enquanto vivência pedagógica. Em conjunto com a oferta de dados inputs de saber, a escola pode se apresentar como uma modalidade de sadismo, de tortura ritual e espacial classicamente conhecida nas situações em que as unidades escolares procuram incutir uma mentalidade subserviente nos educandos, também os tratando como fracassados socialmente e moralmente inferiores. Numa linha em que se entende a escola enquanto vivência pedagógica, o aluno nunca fracassa totalmente, pois a escola coaduna a oferta de inputs de saber com uma perspectiva de aprendizado pela vivência. Se dados elementos de saber pode[1] m acabar não assimilados, a vivência nunca é perdida. Por outro lado, um saber não assimilado hoje pode o ser futuramente mas a vivência pedagógica é única e não se repete.

dubuffet-6Pensar a escola como vivência pedagógica é muito importante porque duas coisas distinguem a unidade escolar de uma penitenciária: a qualidade do saber transmitido e a vivência ofertada. Num contexto de absoluto fracasso educacional das escolas públicas brasileiras onde boa parte dos professores não possui conhecimento para ofertar aos discentes – no Estado de São Paulo, mais de 90 mil professores não acertaram metade das questões em uma avaliação nas próprias áreas em que pretendem ensinar – a vivência pedagógica é o grande elemento a diferir a escola do cárcere, já que o saber não fica muito distante do que é oferecido nas unidades educacionais penitenciárias. Vivência pedagógica implica pensar a escola como local de realização estudantil, onde aprende ensinando e os alunos são o elemento central do processo.

Para Franco da Rocha, cidade onde os meios empresariais e políticos pouco se distinguem dos meios criminais, tendo havido vários assassinatos e espancamentos de militantes, empresários e políticos, atroz repressão policial, onde diretoras convidavam policiais a espancarem alunos, os jovens que, além da tortura estética expressa na miserabilidade visível a que estavam condenados, viviam um cotidiano brutal que incluia espancamentos, tiroteios, estupros, assassinatos, violências várias pelos motivos mais insignificantes, puderam encontrar no CEFAM um espaço de realização pessoal e de vivência do belo e da esperança. Uma vivência de educação libertária, que os livros acadêmicos, amantes do passado, não se dignaram a contar.

Notas

[*] Criado em Franco da Rocha, é mestre em Ciências Sociais pela UNESP de Marília.

[1] Como a Secretaria Estadual de Educação fica no centro de São Paulo, e a maioria dos atos conjuntos dos professores era realizada também no centro de São Paulo, organizavam-se ônibus para levar os manifestantes até a capital.

[Ilustrações: pinturas e desenhos de Jean Dubuffet.]

 

12 COMENTÁRIOS

  1. Ronan,
    Seu texto é demais! Nos leva (especialmente a nós que compartilhamos essa experiência) à uma nostálgica viagem, a um tempo onde a luta era real, estava acontecendo e sendo travada, dia a dia, com maior lucidez, por parte dos que até então, não acreditavam ser possível lutar (muitas vezes nem sabiam, existir uma luta).
    Foi a partir dessa experiência, que muitos de nós se deram conta de que estudar, era uma alternativa palpável. Ensino público e de qualidade, longe dos utópicos chavões, tornou-se, construção erguida e mantida, tijolo a tijolo, pela comunidade escolar.
    Lembro-me de cada uma das proibições, mantidas, sem questionamento por parte de nós estudantes, ou de professores, que acostumados àquela lógica autoritária, não nos incentivavam a desfazer estas amarras.
    A experiência emancipadora, foi possível, diante de toda conjuntura que vivíamos.
    As perguntas que me faço, são: Como ela se desfez? E como remontá-la diante de uma conjuntura, tão diferente da que vivíamos?
    Hoje, no meio acadêmico, tenho medo do academicismo, este que nos distancia da dura realidade vivida por fora dos muros das universidades. Percebo que era um ativista, muito mais pontual, no CEFAM, que por dentro desses muros.
    É um desafio, não só de educadores, tornar o espaço escolar, um local de aprendizagem real, de vivência pedagógica intensa. Mas o que vemos, ao menos o que tenho visto, são gestões castradoras, autoritárias, baseadas na punição, e que criam uma falsa idéia de que o processo ensino/aprendizagem é desenvolvido dentro dessa lógica.
    Essa visão emancipante, só pode ser vivenciada, se compartilhada para além dos muros das universidades, para fora das paredes de direções escolares e salas de professores. Inserir o aluno na discussão sobre sua escola, é imprescindível para que este processo torne-se possível. Do contrário, o indivíduo passa pelo seu período escolar, sem dar-se conta de sua importância na formação de uma outra sociedade. Sua história, não pode ser contada somente pelas quatro horas em que está dentro da sala de aula, mas estas quatro horas, devem incidir em sua relação cotidiana.
    Grande abraço,
    Delmo

  2. Este seu olhar deixa passar as próprias contradições e tensões presentes na construção daquele projeto coletivo que foi o CEFAM.Pois os embates não foram apenas com “os de fora da escola”, mas também com os de dentro que consideravam que uma escola não devia ousar tanto. Parece no texto que foi algo muito linear: apareceu um nova gestão, velhas práticas foram abandonadas e novas incorporadas. Ali era luta todo dia, inclusive com os alunos que se recusavam a muitas coisas e professores também. Por exemplo, envolver os alunos nas assembléias do sindicato, não era uma coisa tranquila. Muitos alunos e professores achavam que era uma luta somente dos professores e não tinham nada com isso. Outros que temiam a represária da delegacia de ensino; ou ação policial nas manifestações (já pensou se algum aluno se machucasse nas assembléias). Ronan não perca isso de vista.

  3. Olá Ronan, seu texto está ótimo, mas acho que precisa precisar algumas coisas qauntoa as datas posso estar errada, mas as mudanças não começara em 1998 vc cita 1997?
    O inicio do projeto CEFAM se dá na década de 1990 e no final da década de 1980…Isso é importante arrumar..

    A mudança não começa no ano 2000 e sim a partir de 2003, e o fim se dá em 2005, mas ainda mantivemos com muita luta as acaracterísticas da escola no processo politico pedagógico, mas tbém é verdade que ficamos em um número reduzido dos docentes, mas foi incorporado, como docentes ex-alunos que se formam e retorna para escola.
    Penso que faltou falar do movimento homossexual, que tbém existiu fortemente , na escola, em raleção a policia a nossa resistencia qto a presença de policiais nas unidades escolares.
    A participação dos pais tbém foi um grande feito na experiencia que tivemos lá..
    E os presos que tiveram suas penas concluídas na escola, não podemos excluir esta importante ação na unidade escolar, muitos foram importantes na formação e discuções qto ao preconceito…

    e por último tente mudar o termo clientela para se rfeferir a alunos , lembra brigavamos muito com este adjetivo para identificar vcs..
    MAra

  4. Salve Ronan, quer dizer que voltou para Franco da Rocha e foi trampar de professor e deu certo, que legal mano.
    Legal ficar sabendo dessa fita, vc estudou lá ?

    Abraço

    Douglas

  5. Òtimo texto Ronan, experiência singular vcs experimentaram lá, tratando-se da relação hetero-organização e auto-organização. Se possível, e for de seu interesse, será importante para nós textos seus tratando também de mais elementos deste paralelo sistema educacional e sistema penitenciário.
    abraço
    Jefferson

  6. Caro Ronan,

    Como educadora fiquei impressionada com seu texto e até o enviei para algumas colegas que trabalham com Gestão no Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da UEMG/Campus BH.(Minas Gerais).
    Ele demonstra claramente que uma gestão é a alma de uma escola. É fator de mobilização ou desmobilização da comunidade escolar.
    Ao procurar a fonte de onde havia tirado seu texto, deparei-me com uma notícia de 8 de março de 2006 que conta sobre a escola técnica que ocupa o prédio do “antigo CEFAM”. Sou mineira e não conheci esta experiência de perto. Soube dela pela Profª Dra Selma Garrido, hoje Pró-reitora de graduação da USP.
    Sem entrar no mérito de se ter uma escola técnica em Franco da Rocha (é uma conquista importante) fico me perguntando por que, no Brasil, as boas experiências na área de educação não são preservadas, os CEFAM’s por exemplo.

    Atenciosamente,
    Profª Santuza Abras
    Diretora Geral do Campus BH/UEMG

    Segue a notícia completa

    Prefeito foi à aula inaugural na escola técnica

    O sonho de dotar o município de Franco da Rocha com uma escola técnica amadureceu, a ponto de se transformar em realidade. Na tarde de segunda-feira, 13, acompanhado pelo vereador Toninho Reis – um dos grandes incentivadores do projeto-, do diretor de educação no município, o professor Márcio Anzelotti e do corpo diretivo da nova Escola Técnica Estadual (ETE), o prefeito Marcio Cecchettini oficializou o início dos dois cursos que passam a ser oferecidos aos 160 alunos: Administração e Informática.

    Sentados em cadeiras no pátio onde um dia funcionou o Cefam, cerca de 80 alunos, todos inscritos no período vespertino, receberam a comitiva do prefeito e ainda conheceram a coordenadora da escola, Márcia Simões, o diretor da ETE de Jundiaí, Mauro Araújo Gut – que inicialmente dará suporte administrativo à escola, além dos professores João Eduardo Ferreira (Administração) e Carlos Renato Candini (Informática). Serão eles que lecionarão também no período noturno, onde outros 80 alunos foram igualmente recepcionados, nos mesmos moldes, na noite do dia 13.

    Instalar a escola na cidade foi um sucesso. Como reconheceram o vereador Toninho Reis e o próprio prefeito Marcio. “Como professor estou feliz, realizado, porque lutei muito para isso”, vibrou o parlamentar. Já o chefe do executivo destacou os trabalhos desenvolvidos pelo secretário do Fumefi, Widerson Anzelotti, o diretor municipal de Educação, Marcio Anzelotti e da diretoria de Planejamento. “Isso já faz parte do nosso interesse em desenvolver a cidade. Temos 23 salas que certamente serão ocupadas com outras especializações. Formados, esse pessoal representará um grande incremento ao segmento de serviços de nossa cidade. Estou feliz”, admitiu.

    Bastante procuradas, as vagas foram preenchidas com alunos da cidade (maioria), depois seguidos pelos residentes em Caieiras, Francisco Morato e Mairiporã. Moradora no jardim Imperador, zona leste de São Paulo, a aluna Olívia Maria Germano foi prova da importância e alto grau de ensino que a instituição representa. “Oportunidades como essa você não pode perder nunca”, destacou a paulistana, aluna do curso técnico de informática.

    GRANDE PASSO
    Diante de um corre-corre danado para minimizar as dificuldades em se lecionar aulas em um prédio com a maioria das salas passando por reformas, a coordenadora dos cursos técnicos definiu a inauguração do ano letivo na cidade como sendo ‘um grande passo’. Em declarações à imprensa, a gratuidade e a qualidade do ensino foram lembrados em seu discurso: “Trata-se de um curso técnico gratuito e de grande qualidade. Em um ano e meio os alunos terão a oportunidade de se especializar. As expectativas de trazermos novos cursos são grandes. Em maio vamos abrir novas inscrições e espero que mais pessoas venham somar conosco”, convidou.

  7. Caro Ronan

    Sinto em lhe dizer que, como eu, você foi mais uma vítima da personalidade psicótica e fascista daquele diretor cujo nome não precisamos revelar. Fui professor naquela escola por um curto período de tempo, mas suficiente para perceber as mazelas que lá ocorriam. É verdade que as propostas eram bem inovadoras para a época. Tanto é que muitos amigos meus que lá estudavam comentavam a respeito das atividades que realizavam e mesmo dos professores e diretor. Isso me atraiu para que, numa atribuição de aulas na Diretoria de Ensino, eu optasse pelo CEFAM. Ao chegar lá, percebi que tudo girava em torno daquele diretor. Os tais contratados por meio de projetos que vc cita na verdade eram os amiguinhos da PUC que o diretor trouxe consigo, já que ele se graduou e fez pós-graduação naquela universidade. Os que não eram desse grupinho tinham que passar no teste do sofá. Isso mesmo: se fosse menina ou menino você era convidado a tomar uma sopa na casa do diretor. Se não fosse, estava fora do grupo. Eu mesmo fui convidado pessoalmente por ele para ir a uma canja dessas. Claro que recusei, pois já tinha ouvido relato sobre o que ocorria lá: menino com menino, menina com menina, meninas com meninos e assim vai…Participavam tanto professores como professoras, alunos, alunas, o próprio diretor…A personalidade daquele sujeito (diretor) era doentia. A partir do momento em que recusei a ir a uma das surubas que ele promovia, ele passou a me ridicularizar em público. Essa coisa de que os professores se juntavam para pintar a escola é balela: ele praticamente obrigava os comandados a limpar a escola até mesmo fora do horário de trabalho, sob risco de perderem os “privilégios” que tinham. Sei com conhecimento de causa, pois eu saí algumas vezes para tomar cervejas depois do conselho de classe, inclusive com a participação de alunos de menor. Na casa dele, a putaria rolava solta, com muito vinho e maconha. As condições da escola eram precárias. Os alunos do período noturno estavam jogados às traças. Aqueles que fumavam tinham que fazê-lo num espaço de não mais que 2 m2 que ele denominava fumódromo! Ele comentava conosco que era para um soltar a fumaça na cara do outro, assim parariam de fumar. Que mais: ele comeu boa parte do corpo docente. Isso inclui algumas professoras e até mesmo alguns rapazes mais novinhos. E te garanto: 99% dos alunos que lá passaram sequer chegaram a uma faculdade decente. Muitas garotas já são mães de 3 ou 4 filhos, vários garotos foram mortos ou presos por envolvimento com drogas. O tal diretor que tanto criticava as oligarquias hoje ocupa um cargo de confiança numa prefeitura de uma cidade vizinha, devido ao seu vínculo com o PT.
    Amigo, era tudo ilusão. Espero que vc não tenha tomado muito vinho enquanto comia sopa!!!!

    Abraço.

  8. O CEFAM ERA UMA GRANDE MÃE..
    Muitos professores libertários não davam aula, enrolavam..e davam nota 10 para todo mundo. Teve um aluno de Morato, do Grêmio, que nunca frequentou estágios e aulas e todos os libertários davam nota e presença…
    Usavam o equipamento publico para fazer campanha de vereador do PT. Usavam a merenda escolar par alimentar a turminha da PUC, gente que nem da escola era.
    As festinhas eram algo que se saisse no jornal dava cadeia para um monte de socialistas tarados e vagabundos. O sque mamamram nas tetas do estado usando o CEFAM F Rocha.

  9. FALTOU NO CEFAM MAIS ZELO E QUALIDADE PARA FORMAR SEUS PROFESSORES PARA QUE ESTES TIVESSEM GARANTIDOS E RECONHECIDOS SEUS TRABALHOS E SUA VALORIZAÇÃO!!!

  10. Cara, eu amei!!
    Fiz o CEFAM bem nessa época, foi a melhor época da minha vida. Deixou saudades. Bom, os professores eram bons mas tinha um que era muito radical. O diretor era um cara legal e lembro que era exigente: brigou?? rua!!!
    Bons tempos que a gente ia na hora do almoço sacar a grana e passava a tarde na Galeria do Rock. Teve passeio pra Taubaté, zoológico e Teatro impressa. Tive duas paixões inesquecíveis nessa fase da minha vida. Muito feliz põe ter ter feito o Magistério la, embora hoje não seja professor

  11. É sempre interessante ler esses textos mais antigos do site.
    Fico me perguntando se a análise do autor mudou ou se acrescentaria algo 12 anos depois.

  12. Engraçado encontrar um texto como esse a essa altura da vida. Estudei no Cegam em 1999 e 2000, fiz somente Ensino médio a tarde. Na época estava a dois anos fora da escola, tinha 18 anos e pensei melhor na vida, fiz minha inscrição e comecei a estudar. Foi inovador, era outro nível, aiii que inocência, mas que bom que era tão inocente, me livrei de muita coisa…rs.
    Queria muito saber de algumas pessoas, de alguns professores, muita gente mudou minha vida ali, foram 2 anos gratificantes, que me formaram.
    Ahhh Ricardo estudava História, rapaz bom, tanta gente que não lembro mais o nome, mas que tenho tantas memórias.
    Que legal ler, relembrar, voltar no tempo.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here