Por Ivan

 

Recentemente muitos movimentos sociais participaram (e continuam participando) ativamente no processo de revisão do Plano Diretor da cidade de São Paulo. Apesar da abertura que vem sendo dada aos movimentos para opinarem qual deve ser a proposta da Prefeitura, cabe um questionamento sobre a efetividade e importância desta participação.

A participação da sociedade civil é apenas consultiva. A Prefeitura realizou dezenas de audiências (e agora começaram as audiências realizadas pela Câmara dos vereadores) com diversos grupos diferentes, separados tanto por temas quanto por regiões geográficas da cidade. Além das audiências, o site da Prefeitura esteve aberto a sugestões da população. Ora, isto gerou uma quantidade enorme de propostas, muitas das quais contraditórias, para que a Prefeitura, com seus técnicos “neutros”, pudesse escolher as mais interessantes e viáveis. Nesse processo, apesar de um esforço enorme ter sido despendido, muitas das reivindicações dos movimentos sociais se perderam na abundância de sugestões difusas da população. Com isso a Prefeitura tenta respaldar e angariar apoio para o seu projeto de lei enviado à Câmara dos vereadores.

Façamos brevemente um exercício mental e imaginemos que, mesmo com o caráter apenas consultivo e difuso do processo de revisão, os movimentos sociais se fizessem ouvir. Tomando o Plano Diretor de 2002 como exemplo (Plano este que está em vigor no momento), é fácil encontrar exemplos de artigos que interessam à população de baixa renda e que nunca saíram do papel (estes formam a grande maioria). Não será um artigo em uma lei (que será julgada pelo nosso sistema judiciário viciado) que irá fazer com que os de cima larguem o osso. Os moradores de ocupações, reivindicando o seu direito constitucional à moradia, que o digam. Quase sempre que há uma batalha judicial, o direito à propriedade — mesmo de terrenos que não cumprem sua função social e com milhões de reais de impostos devidos pelos seus donos à Prefeitura — precede o direito à moradia digna. Basta ver o caso de Pinheirinho para entender o sistema judiciário brasileiro.

Será que com tudo isso exposto acima, não seria melhor os movimentos sociais utilizarem suas energias para ir às ruas e arrancar tudo o que é de direito para quem construiu a cidade com seu trabalho?

Podemos tentar analisar em si o projeto de lei enviado pela Prefeitura. Tomemos a questão da mobilidade no Plano Diretor como exemplo.

Para se entender o projeto de lei submetido pela Prefeitura à Câmara dos vereadores é necessário antes entender em que contexto os artigos da lei devem ser interpretados. O prefeito, seus secretários e a Câmara dos vereadores claramente não encaram o transporte como um direito da população e sim como uma mercadoria. Isto fica óbvio ao se pensar na forma de remuneração dos empresários de transporte: por passageiro. Cada vez que pegamos um ônibus, metrô ou trem, compramos o direito de ser transportados (a mercadoria). A compra é oficializada pelo girar da catraca. A cada catraca girada o empresário recebe em sua conta o valor da compra correspondente — tanto do valor que pagamos quanto um complemento subsidiado pelo governo. Mesmo nas trocas usando o bilhete único, o empresário oficializa a sua venda ao girar a catraca, e recebe o valor correspondente da Prefeitura diretamente.

É nesse contexto que termos como otimização e racionalização, tão banalizados pelos técnicos da Prefeitura e presentes no projeto de lei do Plano Diretor, devem ser compreendidos. Por exemplo, de acordo com o artigo 192, inciso VII do projeto de lei da Prefeitura, o Plano Municipal de Mobilidade Urbana deve conter “intervenções para a complementação, adequação, e melhorias no sistema viário estrutural necessárias para favorecer a circulação de transportes coletivos e promover ligações mais eficientes entre os bairros e a centralidade”.

Mas eficiência significa cortes e seccionamento de linhas e transferências em grandes terminais que são construídos no varejo. Essa política é extremamente racional e ótima, mas somente para os empresários dos ônibus que multiplicam seus lucros. Para o trabalhador que passa a demorar uma hora a mais no trajeto diário não há nada de racional nessa lógica. Não é surpreendente que tais medidas não sejam discutidas com a população antes de entrarem em vigor.

Além do mais, estas políticas são extremamente contraditórias com outras sugeridas pelo próprio projeto de lei. De acordo com os artigos 190, I, V e VI, os investimentos e ações no sistema público de transporte devem ser orientados pelos objetivos de melhorar as condições de mobilidade da população, com conforto e segurança, especialmente as dos grupos de baixa renda; homogeneizar as condições de acessibilidade entre as diferentes regiões do município; e reduzir o tempo de viagem dos munícipes. Como se vê, aqui temos mais um exemplo prático de que as leis que interessam aos barões das catracas são seguidas à risca em detrimento dos interesses da população. Pois o que sai do papel é somente o corte de linhas e a geração de mais e mais lucros para os empresários.

Os técnicos em transporte dizem que a redução do número de linhas aumenta a eficiência (velocidade) nos corredores e faixas exclusivas (novamente aumentando o lucro dos donos do transporte). Isto também deve ser interpretado sob a luz da lógica vigente no transporte. O transporte caro e demorado impede o seu uso e assim “organiza” as nossas vidas. Vamos de casa para o trabalho e do trabalho para casa, mas deixamos de passear, de visitar amigos e parentes e de ir a eventos culturais. Com isso, o transporte público cumpre a única função de transportar força de trabalho e mercado consumidor. Ou seja, não só o transporte é tratado como mercadoria, mas nós nos transformamos em meras mercadorias a serem transportadas. O transporte público se torna uma grande empresa de logística e é racional desse ponto de vista fazer com que os moradores das periferias (a força de trabalho que não tem escolhas) demorem mais para chegar ao trabalho, para que os moradores do centro (mercado consumidor), que vivem próximos dos corredores em regiões mais valorizadas da cidade, se locomovam com maior velocidade. Isso fica claro no artigo 194, II, c), que diz que uma das ações prioritárias no sistema de transporte coletivo é a implantação de terminais, estações de transferência e conexões em localizações que “forem mais adequadas para a otimização do desempenho operacional do corredor”.

Voltando às mudanças visíveis na proposta do novo Plano Diretor, algo chama muito a atenção. No Plano Diretor de 2002 existiam capítulos sobre educação, saúde, cultura, etc. que foram simplesmente suprimidos no projeto de lei atual. É verdade que estes capítulos não tratavam, nem superficialmente, de como garantir o acesso (através de transporte público) a estes direitos, mas ao menos havia o espaço para esta crítica. Hoje, na proposta da Prefeitura, não há nem espaço para esta discussão. E, claro, um direito só é garantido quando se tem acesso a ele. A tarifa zero no transporte é a única forma de se garantir o direito social à educação, saúde, trabalho, moradia e lazer previstos na Constituição.

Por outro lado, vale mencionar a sugestão explícita, feita no artigo 192 VII, de que seja elaborada uma “estratégia tarifária para melhorar as condições de mobilidade da população, em especial as de baixa renda”. Mas qual tarifa é melhor para a população de baixa renda do que a tarifa zero, financiada por uma tributação progressiva, onde que tem muito paga muito, e quem não tem não paga?

Por fim, o novo Plano Diretor proposto pela Prefeitura determina, no artigo 194, parágrafo 3, inciso VI, que a implantação de novos corredores, terminais e estações de metrô, etc., deve ser articulada com a oferta de habitação de baixa renda. No entanto, ao se sobreporem os mapas que determinam os eixos de adensamento (onde se encontra boa parte da infra-estrutura existente e projetada do transporte público) e o mapa das ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social — onde estão localizadas e planejadas as habitações sociais), vê-se claramente uma interseção quase nula.

A moradia digna e a mobilidade são os dois direitos fundamentais que mais vêm sendo tratados como mercadoria. Não à toa, é em torno deles que grande parte das batalhas na cidade vêm sendo travadas. É também por eles que boa parte dos movimentos sociais se organizam. Enquanto essa lógica mercantil de gestão das cidades não for superada, enquanto esses direitos não forem tratados como direitos mas como mercadorias, qualquer Plano Diretor, qualquer plano de mobilidade irá falhar miseravelmente. Portanto, essa disputa por migalhas no Plano Diretor não nos serve. Vamos às ruas lutar por uma vida sem muros, sem grades e sem catracas!

Os leitores portugueses que não percebam certas expressões usadas no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam algumas expressões correntes em Portugal
dispõem aqui de um Glossário de gíria e termos idiomáticos.

Fotografias de Gilles Caron.

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