Por Marcelo Lopes de Souza
Leia a 1ª parte deste artigo.
Antes de prosseguir, desejo ressaltar, resumidamente, alguns “pontos de partida”, que serão depois desenvolvidos e justificados. Adianto que eles só fazem pleno sentido em conjunto, e sobretudo depois de complementados pela discussão da última seção deste artigo; pinçados de contexto, pelo contrário, alguns deles poderão levar a mal-entendidos.
“Pontos de partida”
– Em que reside a utilidade político-pedagógica de danificar fachadas de prédios, vitrines etc., ação costumeiramente levada a cabo no âmbito da tática conhecida como black bloc? Essas práticas insurgentes (e para não dizer a agressão física contra policiais e outros agentes da ordem sistêmica que não seja cristalinamente em situação de autodefesa) pouco (ou nada) podem contribuir, quando desacompanhadas de um sério esforço prévio e paralelo de divulgação pública maciça das razões da luta (seja de uma luta social específica, seja, mais amplamente, da luta anticapitalista em geral) junto à maioria da população, para uma estratégia de deslegitimação e enfraquecimento do status quo capitalista e heterônomo, no longo prazo. Ao contrário, é significativo o risco de um isolamento dos que protestam, em meio a manipulações de consciência e emocionais engendradas pelo Estado, pelos grupos e classes dominantes e pelos meios de comunicação de massa. A força destrutiva e a violência “míopes”, que aqui são aquelas que facilmente se prestam à apresentação caricatural pelos meios de comunicação de massa como “muita testosterona e poucas ideias” (apesar de elas não serem redutíveis a isso!), por usar mais os músculos do que o cérebro, são politicamente pouco pedagógicas e, no limite, antipedagógicas. Elas contrastam claramente com um outro tipo de realidade, em que uma dose bem refletida e ponderada de emprego de vigor em situações de nítida autoproteção de ativistas ameaçados em sua integridade física, indo da construção de barricadas ao rompimento de cercos policiais, pode ser muitíssimo mais facilmente justificada perante os olhos da população em geral.
– Não critico a força destrutiva e a violência “míopes”, aquelas em que seus desdobramentos não são enxergados com nitidez, e que são frutos simultâneos de indignação justa e destempero (combinação que pode abrir as portas para oportunismos de vários tipos, dependendo do momento), em nome do “Estado democrático de direito” e das “regras do jogo democrático”. Esclareço que, na minha interpretação, o conceito de “Estado democrático de direito” é uma construção conceitual fortemente ideológica que recobre, precisamente, a “violência estrutural”, as assimetrias e as iniquidades do sistema capitalista, possuindo, com isso, uma mal disfarçada aparência de farsa, ainda que a isso não possa ser reduzida; e a “democracia” representativa, de sua parte, corresponde à negação de uma autêntica democracia, contribuindo antes para perpetuar e legitimar a “violência estrutural” do que para superá-la (ainda que possa, de vez em quando, por pressão popular direta ou indireta, servir para atenuá-la momentaneamente). [1]
– Tampouco critico a força destrutiva e a violência “míopes” para fazer o elogio acrítico de protestos e manifestantes “pacíficos” e “ordeiros”. A minha preocupação não é com a estabilidade da ordem sócio-espacial estabelecida, e nem com o bem-estar e o conforto de seus apoiadores conscientes (não me refiro aqui, claro, às massas sujeitadas que muitas vezes “apoiam” medidas opressivas e de controle social que, objetivamente, lhes são prejudiciais de várias maneiras). Minha preocupação é, isso sim, com o bem-estar e a imagem de longo prazo dos que se insurgem contra o sistema capitalista, pensando nos riscos de desgaste e descrédito duradouros que podem advir de práticas com baixo (ou nulo) potencial de destruir a hegemonia ideológica, combater a desinformação e corroer os valores heterônomos que servem à exploração e à dominação. Minha preocupação, portanto, é com o próprio futuro das lutas sociais emancipatórias: com sua viabilidade, com seu incremento, com sua eficácia, com seu aprimoramento — de tal sorte que possam, inconfundivelmente, ser vistas como uma inegável alternativa à barbárie produzida e reproduzida pelo sistema capitalista, em especial em sua (semi)periferia, como é o caso do Brasil.
– O uso de vigor contra as forças da ordem heterônoma, em situações claras de autodefesa, não pode ser um tabu. Na verdade, mesmo ações de elevado conteúdo simbólico e ético-político podem ser, dependendo do país e da conjuntura, plenamente justificáveis, como coroamento de demonstração de repúdio popular de um regime ou governo. Aliás, recordemos que a história das revoluções burguesas, a começar pela Revolução Americana, está repleta de inteligentes defesas e justificativas da violência insurrecional contra um poder opressor e tirânico. [2] É bem verdade que “pacifismo” não significa passividade; e também é verdade, postulo, que iniciativas e métodos pacíficos como a desobediência civil, os protestos criativos e bem-humorados com a finalidade de constranger opressores e os bloqueios temporários e não violentos de ruas e estradas (entre outras formas de protesto não violento), possuem um potencial político-pedagógico, em princípio, superior ao uso da violência, ou mesmo da força destrutiva. Contudo, não é razoável lançar contra o uso do vigor insurgente um anátema, esperando que manifestantes aceitem não se defender de agressões indiscriminadas perpetradas por uma polícia historicamente incentivada a ser atrabiliária e brutal, independentemente das circunstâncias. Necessário na esteira de um esforço de agitação política pautada, sobretudo, pela desmontagem inteligente e criativa dos discursos e da propaganda sistêmicos, o emprego da força em situações evidentes de autodefesa não pode ser objetado como moralmente injustificado, pois a ninguém pode ser vedado o direito de defender a própria vida e a própria integridade física. Sintomaticamente, os liberais muitas vezes não hesitam em imolar a coerência no altar do pragmatismo geopolítico mais chão, ao admitir a legitimidade ética desse tipo de resistência à opressão quando se trata de substituir um governo “incômodo” por um governo “amigo”, ao mesmo tempo em que estabelecem restrições ao princípio da resistência legítima em outros casos (a história da política externa dos EUA está repleta de exemplos didáticos desse tipo de enfoque no estilo “dois pesos e duas medidas”).
– O pano de fundo sobre o qual se desenrolam a força destrutiva e a violência “míopes” é a “violência estrutural”. Criticar a primeira sem salientar e examinar a última, que é o caldo de cultura básico para as tragédias que às vezes ocorrem em meio a protestos e resistências sociais, equivale a uma contrafação ideológica consciente ou, na melhor das hipóteses, a uma “cegueira” ideologicamente condicionada. Qualquer ressalva a respeito da violência que parte, imediatamente, dos oprimidos, precisa, para ser justa, ser entendida contra o pano de fundo das violências que partem dos opressores, imediata ou mediatamente. E, como sabemos há muitas gerações, graças às corretas análises dos pensadores críticos sobre cujas pegadas caminhamos, não se trata de culpabilizar este ou aquele opressor em particular, ou mesmo um grupo definido de pessoas específicas; os fatores impessoais (os imperativos econômicos e as formas de organização da economia, as exigências retroalimentadas de reprodução do controle social etc.) são o nó a ser desatado, e isso não se pode dar por meio de apelos à “responsabilidade social e ambiental” dos empresários individuais, de simples aprimoramentos legais e de meras reengenharias institucionais (com base na troca de uns partidos por outros e de uns políticos profissionais por outros).
Desenvolvendo os “pontos de partida”
Qualquer ação política, para ser algo mais do que um simples desabafo coletivo, uma expressão (compreensível, mas não necessariamente construtiva) de indignação, precisa ser pautada por perguntas como as seguintes: como se encontra o “nível de consciência política” da maioria da população, e precisamente dos setores mais subalternizados e oprimidos, relativamente a uma ação política determinada? Qual será, previsivelmente, a sua reação diante da ação política em questão? Qual é a utilidade dessa ação política do ponto de vista de sua capacidade de agregar, mobilizar, induzir a uma reflexão desideologizante e aumentar o grau de desmoralização do sistema? E qual é, pelo contrário, o risco de que, à luz do “nível de consciência” médio da maioria da população e nos marcos de uma conjuntura específica, a ação política anticapitalista acabe sendo isolada e estigmatizada, facilitando a repressão policial e judicial dos que protestam e se insurgem?
O grau de indignação a que já chegamos, nas principais metrópoles brasileiras, por razões que vão da insatisfação com os patamares alcançados pelos índices de criminalidade violenta ordinária aos aumentos abusivos das passagens de meios de transporte coletivo é, sem dúvida, muito alto. Mas isso não deve nos iludir quanto ao seguinte: há ainda muitas contradições nos discursos e nas práticas quotidianas dos oprimidos. A predisposição a compreender e até aprovar o emprego da força destrutiva, como acontece, no contexto de explosões de raiva, com as depredações de estações ferroviárias por parte de trabalhadores comuns vítimas de atrasos frequentes e outros sintomas de descalabro e insensibilidade perante o sofrimento da população pobre, parece ser significativo, e talvez até tenda a aumentar. Por outro lado, as depredações de edifícios e, ainda que não prioritariamente, às vezes até mesmo de mobiliário urbano, em meio a protestos programados, ainda não gozam de nada parecido com uma aprovação ampla. A influência da mídia corporativa (secundada pelo efeito corrosivo de longo prazo de valores conformistas e quietistas incutidos, por exemplo, por igrejas, em especial pelas neopentecostais nas últimas três décadas) não pode ser subestimada, como se tem visto nos últimos meses, desde junho de 2013.
Levando-se em conta tudo isso, não parece, para dizer o mínimo, que a prioridade número um nas cidades brasileiras neste momento, em matéria de gasto de energia de resistência e indignação, resida em apedrejar fachadas de agências bancárias e prédios públicos. Acredito que a maioria dos ativistas e manifestantes antissistêmicos seja suficientemente lúcida e sensível para perceber ou intuir isso, mas é válido chamar a atenção, de qualquer modo, para certas deficiências. É curioso ver como, para além de algumas formas de protesto extremamente criativas e satíricas que surgiram nos últimos meses (como a engraçadíssima “Tropa de Nhoque” que fez pilhéria com a Tropa de Choque da Polícia Militar do Rio de Janeiro em 2013, e que nos lembra o hoje já internacional “Exército Clandestino Insurgente de Palhaços Rebeldes”), pouco, afora palavras de ordem e cartazes e panfletos (alguns muito bons, outros nem tanto), têm sido ainda escassas iniciativas como a preparação de cartilhas e pequenos livretos bem elaborados explicando, com inteligência e em linguagem adequada, as razões imediatas e as causas últimas dos protestos (dos bastidores da “política” de transportes ao contraste entre déficit habitacional e domicílios vagos e ociosos, passando por muitos outros problemas). Sim, eu sei que há algumas páginas de Internet razoáveis ou até bem boas (não são muitas), e que ali podem ser obtidos vários esclarecimentos. Contudo, quantos, entre os trabalhadores pobres, as acessam? E como chamar a atenção ou despertar o interesse para informações de tipo socialmente crítico, em geral? Faz-se necessário um empenho redobrado em geração, armazenamento e disseminação de dados, informações e reflexões, sobre temas que vão da natureza e atuação das polícias até o engodo das eleições, passando pelo futuro das cidades, pela questão da habitação e até chegar às causas dos problemas do capitalismo global. E isso não é “papo de intelectual”, conversa de quem aposta mais nas palavras que na ação. Oficinas e debates populares (em ocupações de sem-teto, em favelas, nas periferias e em espaços públicos das áreas centrais e dos bairros), produção de vídeos críticos, preparação de materiais diversos, intervenções artísticas engajadas: são várias as frentes de batalha, e as trincheiras são numerosas. E muito, muitíssimo resta por ser feito. Basta lembrar que, diferentemente da Argentina do início da década passada, ou mesmo do Movimiento 15-M na Espanha (para ficar em dois exemplos relativamente recentes), a capilaridade da atuação política nos bairros e favelas (coisa que os argentinos, sugestivamente, chamam de trabajo territorial), está ainda em patamares tímidos no Brasil; a capilarização da insurgência por meio da multiplicação de assembleias permanentes e organizações de novo tipo de modo descentralizado, que deveria ser a decorrência (e a condição de não dissipação imediata) da onda de protestos de 2013, ainda engatinha entre nós. Isso sem contar que, sem conseguir e adensar as articulações transversais (isto é, não hierárquicas ou subordinadoras) entre grupos e organizações, as chances de enfraquecimento e isolamento aumentam muito. [3] A onda de protestos de 2013, a despeito de suas contradições, acarretou, ademais de algumas modestas vitórias táticas (como o congelamento temporário das passagens de ônibus em vários municípios), também um novo clima de questionamento e debate político, cuja utilidade não pode ser completamente desprezada. Sem embargo, o terreno mal começou a ser arado, e falta ainda fertilizá-lo. Sem isso, o que se espera colher? Não basta atirar sementes ao léu. Os corvos talvez comam a maior parte, outras tantas provavelmente apodrecerão antes de germinar.
Ora, munição intelectual não falta aos opositores da ordem sócio-espacial vigente. O indigente nível intelectual e argumentativo de uma revista como a Veja e dos telejornais da Rede Globo (para ficar em dois exemplos notórios) é fácil de ser sobrepujado. Em assim sendo, por que não investir mais na construção criativa e inteligente de formas de protesto e crítica que, não sendo “bem-comportadas” (do tipo que a mídia corporativa se dispõe a elogiar), tampouco sejam alvos fáceis para os ataques mais torpes dos jornalistas da grande imprensa, das “autoridades” civis e religiosas, e assim sucessivamente?… Sem dúvida, isso exige capacidade de organização. Mas construir um mundo novo e melhor exigirá, sem dúvida, ainda muito mais capacidade de organização (e criatividade, paciência etc.). O enfrentamento das opressões, aqui e agora, não é, portanto, justamente um excelente laboratório para testar e refinar argumentos, capacidade de persuasão, a arte da ironia e da sátira, a habilidade de isolar os adversários e escancarar suas contradições e suas fraquezas? Refinar e ajustar as formas de “propaganda pela ação” aos novos (ou renovados) desafios da repressão estatal, ao mesmo tempo valorizando a ação (a práxis) e expandindo construtivamente o seu conteúdo, pressupõe priorizar a capacidade persuasiva de exemplos de auto-organização em diversas escalas, de socialização e sociabilidade alternativas em “territórios dissidentes” (centros sociais, ocupações de sem-teto, organizações comunitárias etc.) e de difusão criativa de mensagens críticas.
Defender-se da brutalidade policial não é apenas um direito, mas até mesmo um dever, caso não se queira passar uma imagem de tibieza e covardia. Já têm aparecido algumas reflexões oportunas e sensatas nesse sentido, inclusive no plano tático. [4] O princípio da legítima defesa, que o “Estado democrático de direito” reconhece no plano estritamente individual, e especialmente quando os agressores não são agentes do próprio Estado (invocando o seu “monopólio legítimo do uso da violência”), precisa ser um tanto reciclado e invocado também para garantir a proteção necessária de grupos e coletividades que, em situação de clara assimetria de meios, se insurge por motivos comprovadamente justos. Por outro lado, e sem que se precise apelar para uma estratégia gandhiana de não violência a todo custo (da qual estou longe de ser propriamente um entusiasta), o fato é que, pelo menos em princípio, o combate por meio de argumentos e imaginação, dosando indignação e bom humor, informações e princípios, denúncia concreta e reflexão geral, possui uma dupla vantagem: em uma perspectiva de longo prazo, ajuda a preparar um apoio popular mais “orgânico” e maciço, e menos episódico ou fugaz a uma oposição à ordem sócio-espacial vigente; e, no curto prazo, não tende a facilitar o isolamento e a repressão dos dissidentes e insurgentes. A ultima ratio, ou o “argumento” da força, deve ser empregado fundamentalmente em uma circunstância: quando a estrita autodefesa dos manifestantes assim o exigir, especialmente para preservar a própria integridade física, direta ou indiretamente. Caso contrário, parecerá que a força dos argumentos possui papel secundário, no tocante a fazer avançar a luta.
Não é difícil demonstrar, em um país como o Brasil, que são justamente as situações de autodefesa perante uma polícia brutal e “despreparada” [5] que têm, direta ou indiretamente, na grande maioria dos casos, alimentado ou justificado reações fortes por parte de muitos manifestantes. Mais uma vez, não apenas em última análise, mas não raro de modo muito imediato, é a “violência estrutural” do sistema e suas instituições que provoca a violência e a força destrutiva de caráter defensivo ou catártico dos que protestam e extravasam a sua indignação e sua revolta. Não obstante isso, é justificada a preocupação com os efeitos de táticas que enfatizam ou priorizam a destruição ou os danos a serem infligidos a prédios icônicos da ordem estabelecida (edifícios do Estado, de bancos, de grandes empresas) ou até do mobiliário urbano. Isso sem falar nos efeitos não premeditados, como o extravasamento para a violência em sentido próprio, ou seja, interpessoal. Será que a maioria da população trabalhadora das cidades brasileiras irá, realmente, no curto prazo, aqui e agora, compartilhar ou até entender perfeitamente o ataque à materialidade do sistema opressor da forma como supõem (ou parecem supor) muitos manifestantes — ou seja, como um ataque do Davi contra a materialidade-símbolo de um Golias (ou do Leviatã)? Há indícios ou mesmo evidências de que não é exatamente assim. E até de que o tiro pode bem sair pela culatra.
Em meio a essa espinhosa e delicada discussão, nunca será demais repetir: não estou fazendo apelos ingênuos a uma substituição da força, eventualmente necessária à autodefesa, por gestos de simplória cordialidade ou amor cristão, no estilo “oferecer a outra face”. O ônus da falta de diálogo cabe, em geral, ao Estado, e o ônus da violência de autodefesa deve, sem dúvida, recair também sobre ele, pilar essencial da “violência estrutural”. Ocorre que, como já lembrava convincentemente a filósofa Hannah Arendt, violência e poder são coisas distintas: o poder tem muito a ver com consentimento e persuasão (utilizando-se fartamente do logro, da trapaça e da mentira, no caso do poder heterônomo, e recusando esses expedientes deploráveis, no caso de um poder autônomo fundado sobre a igualdade efetiva de oportunidades de participação em processos decisórios); já a violência costuma entrar em cena, exatamente, quando o poder começa a minguar. Não é, por conseguinte, razoável permitir que as coisas se passem de uma tal maneira que sobre as forças anticapitalistas paire a dúvida quanto à sua capacidade de não precisar apelar sistematicamente para a violência. Se isso se desse, seria um passo na direção de uma derrota no plano simbólico e, em decorrência, político.
Para os libertários, não vale a máxima maquiavélica de que os fins justificam os meios. Para nós, em nossos momentos de maior coerência pedagógica, sempre valeu a sabedoria de que os fins são, em grande medida, os meios, no sentido de que os fins condicionam os meios e preparam o caminho, hoje, para o amanhã. A violência, qualquer que seja, não pode ser vista como algo intrinsecamente positivo, e a própria força destrutiva merece uma avaliação muito prudente e sensata. Em algumas situações, sem dúvida, são males necessários, pois aquele que oprime não tenderá a abrir mão de todos os recursos ao seu dispor (inclusive os mais vis e abjetos) para manter e perpetuar a opressão. No entanto, por serem ardilosas e contaminadoras, a força destrutiva e a violência precisam, justamente por isso, ser empregadas de modo parcimonioso, inteligente e apenas em situações (e conjunturas) nitidamente justificáveis nos planos ético e político. Para uma política emancipatória libertária, o contrário do “oferecer a outra face” (ou do “a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”, outro ensinamento útil à heteronomia instituída) não deve ser o “olho por olho, dente por dente” sem reflexão e sem comedimento, mas sim uma autodefesa na medida certa. E a própria forma da autodefesa deve se fazer de tal maneira que fique claro que se trata de um prolongamento da ação criativa e inteligente por outros meios, e não de uma simples explosão de ódio e fúria. O ódio e a fúria, repito, são compreensíveis; mas o fato de serem compreensíveis não os torna necessariamente úteis. A indignação é indispensável emocional-individualmente, e política-coletivamente é uma premissa. Porém, ao expressar-se racional e criativamente, ela terá melhores chances de ajudar a construir o verdadeiramente novo.
Notas
[1] Dizer que a “democracia” e o “Estado democrático”, em sua versão corrente e dominante, não podem ser reduzidos a uma farsa, não corresponde, de jeito nenhum, a aboná-los, nem mesmo a atenuar seus malefícios e sua natureza heterônoma, fundada na alienação e na opressão. Concordando com uma ponderação feita décadas atrás por Cornelius Castoriadis, a “democracia” representativa não é meramente formal, uma vez que faz diferença (para todos e, sobretudo, para dissidentes e ativistas políticos), em matéria de liberdades, se vivemos na Argentina pós-golpe militar de 1976 ou na Suécia de 2014, na Alemanha de hoje ou no Terceiro Reich, no Brasil atual ou no Brasil dos “anos de chumbo”. Como dizia Castoriadis, a “democracia” representativa é, essencial e inarredavelmente, incompleta, limitada e limitante; e essa incompletude não é uma simples questão de “imperfeições aqui e ali”, sanáveis mediante melhorias graduais no interior do próprio sistema. Avanços são, muitas vezes, possíveis — e é aqui que entra em cena o papel decisivo das pressões, mobilizações e revoltas populares —, mas um outro patamar qualitativo só pode ser atingido com base em uma superação, em uma ruptura.
[2] É conhecida a tirada de Thomas Jefferson (datada de 1787), Segundo a qual “[a] little rebellion now and then is a good thing” (= “[u]ma rebeliãozinha de tempos em tempos é uma boa coisa); e menos conhecida, mas ainda mais forte, é esta outra (datada de 1823), contida em uma carta a John Adams: “To attain all this [universal republicanism], however, rivers of blood must yet flow, and years of desolation pass over; yet the object is worth rivers of blood, and years of desolation.” (= “Para se alcançar isso [o republicanismo universal], entretanto, rios de sangue ainda precisarão correr, e anos de desolação passar; e no entanto, o propósito vale rios de sangue e anos de desolação.”) É delicioso imaginar se algum dos articulistas e jornalistas pátrios, daquela espécie sempre tão obcecada com o espectro da “subversão”, do “comunismo” e da “anarquia”, teria a coragem de dar o passo de caracterizar Jefferson como um precursor do que gostam de chamar, indiscriminadamente, de “vandalismo”, de “bagunça” ou mesmo de “terrorismo”…
[3] No Rio de Janeiro, os adeptos da tática black bloc buscaram, em 2013, uma aproximação com os professores que, em greve, protestavam nas ruas. Esse exemplo é importante, inclusive porque uma das funções históricas dos black blocs deveria ser, justamente, ajudar na proteção de outros manifestantes. Porém, muito ainda precisa ser feito para se quebrar a resistência até mesmo de outros manifestantes relativamente aos black blocs (e seria um equívoco tachar esses outros manifestantes, genericamente, de “coxinhas” ou algo que o valha, como se constituíssem um universo homogêneo).
[4] Um bom exemplo é o texto “Autodefesa em manifestações, para quê?”, divulgado pelo sítio Passa Palavra em 28 de fevereiro de 2014, cujo autor se assina Comunista Heterodoxo.
[5] Vale a pena relativizar o alcance desse qualificativo, ouvido e lido com tanta frequência. A despeito de todas as manifestações de indignação e cólera contra os “excessos” policiais (especialmente quando, por “acidente”, a vítima é branca e economicamente privilegiada), as polícias, no Brasil, têm se mostrado funcionais ao sistema exatamente como são. Os vários elementos de disfuncionalidade e fatores de mal-estar não devem servir de empecilho para que se perceba o quanto elas têm sido úteis — caso contrário, não seriam mais o que são, há muito tempo. Note-se, ademais, que mesmo em “democracias” ditas “avançadas”, como nos EUA e na Europa, a brutalidade e os “excessos” policiais estão longe de ser desconhecidos, apesar de um processo histórico distinto tê-los tornado muito menos freqüentes: basta que a ameaça à ordem sócio-espacial vigente se torne suficientemente forte para quase desaparecer qualquer traço de polidez e até mesmo de comedimento.
O Passa Palavra publicou no final de Fevereiro o artigo «Autodefesa em manifestações, para quê?» http://passapalavra.info/2014/02/92329 e agora este artigo de Marcelo Lopes de Souza. Parecem-me ambos muito importantes, para mais tendo em conta o artigo «Teoria do caos» http://passapalavra.info/2014/03/92961 porque encetam uma reflexão sobre estratégia e táctica em manifestações, abandonando o plano das banalidades ou dos apelos emocionais. Todavia, com facilidade se esquecem duas coisas.
1) Frequentemente, o uso de acções consideradas violentas serve apenas para ocultar ou a incapacidade de mobilização de massa ou a vontade de manter a massa na passividade. E isto não ocorre apenas com grupos minúsculos. Assim, por exemplo, um certo movimento social pode contar com centenas de milhares de aderentes mas preferir usar duas ou três dezenas de militantes profissionais para bloquear uma auto-estrada com pneus a arder. Não consegue assim conquistar simpatias para a causa e corre até o risco de provocar a hostilidade de outros trabalhadores, especialmente camioneiros. É que o objectivo desse tipo de acções não consiste em organizar mas somente conquistar espaço nos noticiários, ou seja, trata-se de uma autopromoção.
2) Em muitos casos — receio mesmo que na maioria dos casos — é inútil explicar aos fanáticos das acções violentas em qualquer circunstância e a todo o preço que elas podem ser prejudiciais e não benéficas, que podem ser antipedagógicas, dificultarem a organização de massas e afastarem muitos trabalhadores. É inútil explicar porque é precisamente isso que eles querem. Em vez de pretenderem mobilizar as pessoas comuns, pretendem o contrário: destacar-se delas, cavar um fosso intransponível entre uma pequeníssima minoria activa e a esmagadora maioria dos trabalhadores relegados para a passividade. A fronteira é estreita e pouco definida entre o vanguardismo e o elitismo, e nestes casos trata-se de puro elitismo, com todas as consequências que daí advêm.
Caro João:
Concordo totalmente com você a propósito de seu primeiro lembrete. Na realidade, tenho sugerido, inclusive, que estabeleçamos uma distinção – que é conceitual, mas cuja relevãncia é política – entre “movimento social” e “organização de movimento social”. Isso não apenas porque, em um movimento social complexo, sempre há várias organizações, e não apenas uma (ao mesmo tempo em que o movimento, em si, não se reduz a nenhuma delas, e nem mesmo a uma somatória do conjunto de organizações); mas porque, há um certo tempo (e diferentemente do que ocorria décadas atrás), tornou-se comum no Brasil cada organização trazer, em seu nome, a palavra “movimento”. É muitíssimo usual militantes se referirem à sua organização como “o meu movimento” – e aí vai, independentemente do grau de consciência ou não, a mensagem de que, para ele, a sua organização, em si mesma, de fato, é um movimento (ou, quem sabe, “o” movimento ou a única expressão legítima dele, para os mais exclusivistas…). Não poucas vezes, reproduz-se, em uma organização de movimento social, ao menos naquelas mais verticais, o mesmo conjunto de vícios dos partidos: hierarquias, vanguardismo, elitismo… e, mais cedo do que tarde, a tendência de se estabelecerem relações de dependência e fisiologismo com o aparelho de Estado.
Quanto ao seu segundo lembrete, tendo a concordar, mas eu não seria, talvez, tão enfático. Digo isso porque, pelo que tenho podido ver, o que me parece é que há um espectro estonteante de motivações e perfis – desde a “busca por adrenalina” até a conviccção de se estar participando de uma ação antissistêmica. Naqueles casos em que não se está lidando com fanáticos e congêneres, certamente há que se tentar de tudo para dialogar e apresentar argumentos. Porém, nos outros casos… Como disse certa vez Samuel Johnson (tradução livre), “Senhor, eu posso lhe fornecer um argumento, mas não sou obrigado a lhe fornecer a compreensão.”
Abraços,
Marcelo
PS – Em tempo: no último parágrafo, onde se lê “No entanto, por ser ardilosa e contaminadora (…)”, leia-se “No entanto, por serem ardilosas e contaminadoras (…)”.
Pra mim as relações sociais são mais complexas do que nossa pretensão de alcançá-la racionalmente desejaria. Não existe causa e efeito tão determinados como parece que você deseja. O que significa que não existe uma reação uniforme da sociedade, ou de setores populares (que é o que mais interessa) para um determinado tipo de ação política.
Na minha cidade, por ex., que não acompanhou as revoltas de junho como no resto do Brasil, se não em seu formato coxinha, podemos ver o contrário do que você diz. Só em agosto de 2013 tivemos uma ação direta. Um ônibus queimado e a Câmara dos vereadores completamente apedrejada, entre outras coisas.
Depois desse dia parece que uma chama havia sido acesa na cidade e pudemos ver, na mesma semana, vários protestos se desenrolarem nas periferias. Incluindo um em Olinda, na Av. Presidente Kennedy, que ficou marcado como uma das revoltas mais combativa já vista na região metrop. de Recife.
Aqui tem um site, o reciferesiste.pelivre.org, que compila todas os acontecimentos de resistência noticiados pela mídia, seja independente ou corporativa. Depois (se precisar) eu dou uma procurada pra ilustrar bem o que digo.
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Como se pode medir o “nível de consciência política” da maioria da população? Na verdade, qual o sentido que essa expressão faz pra realidade, o que significa consciência política?
Na minha cidade (falo mais uma vez daqui porque é a realidade que conheço) foi só com a tática black block que vimos o anarquismo e suas “significações imaginárias” como autogestão, anti-estatismo, anti-partidarismo e etc., se espalharem entre jovens de periferia. Pode ter sido diferente no Rio, mas aqui foi assim. Ficamos surpresos quando vimos que quem tava segurando escudos com anábolas e fazendo “as coisas acontecerem” eram pirralhos da periferia.
Claro, boa parte da população estava contrária à tática. Mas também é difícil guiar-se por “boa parte da população”, especialmente quando eles usavam termos da Grande Mídia pra julgar os protestos – “Isso aí é tudo vândalo”. A esse respeito devemos multiplicar nossos meios de comunicação e não renunciar à revolta legítima porque vai ser mal falado. E quer queremos quer não, as páginas do Black Block no Facebook são um dos principais contrapontos midiáticos de hoje. Com toda a pobreza teórica e com o ridículo de ser uma página de Facebook o alcance deles é infinitamente maior que o de qualquer site de contra-informação. E isso se dá porque eles estão nas ruas, fazendo o que estão fazendo.
Além disso, a forma como a maioria dos jovens de periferia dispõe do corpo já tem requintes de violência bem presente. Dá pra ver nas brincadeiras com amigos, nas incursões das torcidas organizadas para os estádios ou, no mais extremo, no próprio banditismo. Eu não vejo essas pessoas olharem com maus olhos a ação direta. Isso é só um exemplo, que fique claro que eu não to localizando nesse setor um sujeito revolucionário pelo qual devemos nos preocupar e esquecer todo o resto.
Agora claro, incomoda bastante o nível de pobreza teórica que a revolta no Brasil demonstra. Aqui não é a França, nem mesmo a Argentina e o Chile, não temos nenhuma tradição intelectual libertária. E quando falo isso não penso na academia, pelo contrário. Tudo está pra ser construído. Dentro dos próprios que utilizam a tática Black Block é lamentável ver a presença decisiva de maoístas e todo tipo de adeptos da “foice e do martelo”. Além disso também incomoda o nível de espetacularização da luta dentro dos “blockers”, isso é, quando o charme da máscara e da ação direta sobrepõe a própria importância política da ação. Claro, a insurreição deve ser charmosa, mas não no nível espetacular facebookiano. Qual é o sentido que faz se mascarar nas ruas e colocar uma foto sua mascarada no perfil de facebook, que tem seu nome e tudo? Essa inversão pra mim é o que mais incomoda em alguns adeptos da tática.
Concordo também que a descentralização da luta, o “trabalho territorial”, ainda está engatinhando por aqui. Nossa situação é difícil. Ainda dependemos muito das explosões aleatórias de revolta, nosso principal meio de comunicação é o Facebook…
Enfim, apesar de tudo isso, pra mim soa irresponsável e arrogante julgar as ações diretas como violência míope quando se trata desse contexto. Acho imprescindível que possamos abrir um diálogo com quem quer que seja sem achar que se está usando os óculos da verdade.
Um abraço!
Prezado “Mascarado”:
O seu longo comentário merece, da minha parte, o respeito que se deve à franqueza (coisa que anda escasseando em nossos dias), bem como à disposição de oferecer contra-argumentos (idem). Nem sempre isso se adequa bem a um espaço como esse, onde pessoas que não se conhecem costumeiramente desferem palavras agressivas umas contra as outras, sem dar o benefício da dúvida, sem conhecer o contexto.
No entanto, você mesmo incorreu um pouco nisso, embora apenas ao final, ao qualificar a minha intervenção de “irresponsável” e “arrogante”. “Irresponsável”, no sentido de agir levianamente, garanto-lhe que não foi o caso. O que escrevi é fruto de muito tempo observando e refletindo, e confesso que, mesmo assim, hesitei em mandar o artigo, pois sabia que haveria reações fortes. Contudo, achei que era minha RESPONSABILIDADE ajudar a fomentar um diálogo, um debate – e agradeço a você por colaborar nesse sentido. O meu objetivo não foi outro. Quanto à “arrogância”, veja só: eu poderia ter ficado no meu cantinho privado, fazendo críticas “domésticas”; ou poderia ter mandado um artigo em que apenas vejo defeitos e faço objeções. Se você ler sem a guarda muito alta o que escrevi, verá que, apesar da palavra que tanto te incomodou – “míope” -, a minha análise está muito longe de, simplesmente, criticar ou condenar a tática “black bloc”. O que eu faço é levantar algumas objeções e ponderar algumas coisas à luz dos possíveis efeitos. Isso é “arrogância”? Não me parece.
Quanto ao “míope”, sei que é uma palavra forte e provocativa, mas note o seu significado: “que ou aquele que não compreende com clareza alguma coisa”. É disso que eu falo, e em torno disso pode-se e deve-se debater. (E “arrogância” seria presumir que uma posição divergente, mas que busca ponderar e refletir, que busca o diálogo, seria… arrogante.) Ressalto, também, as várias passagens em que justifico a autodefesa e, inclusive, saliento o papel legítimo dos militantes que utilizam a tática, como na seguinte nota:
“No Rio de Janeiro, os adeptos da tática black bloc buscaram, em 2013, uma aproximação com os professores que, em greve, protestavam nas ruas. Esse exemplo é importante, inclusive porque uma das funções históricas dos black blocs deveria ser, justamente, ajudar na proteção de outros manifestantes. Porém, muito ainda precisa ser feito para se quebrar a resistência até mesmo de outros manifestantes relativamente aos black blocs (e seria um equívoco tachar esses outros manifestantes, genericamente, de “coxinhas” ou algo que o valha, como se constituíssem um universo homogêneo).”
Agora, sem dúvida, reafirmo as minhas ressalvas e os meus temores. Se em Recife a tática, em si mesma, teve um papel essencialmente construtivo e agregador, ótimo (não vejo como a tática, em si e por si, consiga isso, mas, vá lá…) De qualquer maneira, você mesmo, no decorrer de seu comentário, disse que:
“A esse respeito devemos multiplicar nossos meios de comunicação e não renunciar à revolta legítima porque vai ser mal falado.”
Exato! É preciso multiplicar os meios de comunicação (e não me refiro apenas aos jovens black blocs, mas aos ativistas/militantes antissistêmicos em geral). E, para além disso, há muitas coisas nas quais é preciso investir mais. E a preocupação com “o que o povo vai falar” É, OU DEVERIA SER, uma das preocupações centrais. Não para nos impedir de pensar, falar e agir; mas para orientar e esclarecer sobre o que é preciso fazer para evitar que jovens estudantes de classe média organizem uma “acampada” na Cinelândia e acreditem, realmente, que o slogan “Nós somos os 99%” também se aplica a eles, enquanto que a esmagadora dos trabalhadores e das trabalhadoras pobres ou não tomou conhecimento daquilo, ou viu aquilo com uma mistura de indiferença, vaga simpatia (e, às vezes, difusa antipatia) e curiosidade. Sim, meu caro Mascarado: a mim interessa, e muito, o que pensam os que são bombardeados pelo Domingão do Faustão e pelo Silvio Santos, pelo BBB, pelas telenovelas, pelas igrejas neopentecostais. Esse é um dos principais nós a serem desatados – e explosões periódicas de fúria não reverterão esse quadro, com o se deu conta o Kropotkin maduro, citado em meu artigo.
Termino com uma reflexão geral, a respeito de um problema que há muito tempo me incomoda e preocupa – não por questões “estéticas” ou sentimentais, mas sim por razões políticas. Há, muitas vezes (nem sempre, felizmente!) um fosso, hoje em dia, ou desde algumas décadas, entre “jovens libertários” e “velhos libertários” (eu, com o meu meio século de vida, evidentemente me incluo na segunda categoria). Poucas vezes isso ficou tão claro quanto na análise de Bookchin “anarquismo social” X “anarquismo como estilo de vida”, em que o velho anarquista estadunidense – que morreu amargurado, sentindo-se atacado injustamente e de modo ignorante por jovens libertários e anarquistas ortodoxos – deixou lições importantes: tanto em matéria de críticas válidas como em matéria de “rabugice” e incompreensão. As críticas de Bookchin, elas lá estão para quem as quiser ler; não vou repeti-las aqui. Mas a “rabugice” dele, no fim da vida, é algo sobre o que eu tenho pensado. Será que, se ele tivesse tido mais compreensão para com as formas (estéticas, organizativas, táticas etc.) de expressão dos jovens de hoje, ele teria sido menos atacado e menos visto como… arrogante? Eu gostaria de pensar que sim, mas às vezes tenho dúvidas. Não raro, me parece que o antigo lema de fins dos anos 60, “não confie em ninguém com mais de trinta anos”, está mais vivo do que nunca – dificultando diálogos e uma troca de experiências que, de fato, seriam necessários, muito necessários. De um lado, os que, pelos quilômetros rodados, acham que já sabem tudo (e eu não me incluo entre eles, querido Mascarado, apesar de lhe ter passado essa impressão); de outro lado, aqueles que, a despeito dos poucos quilômetros rodados – ou por isso mesmo?! -, se consideram mais certos e mais aguerridos (espero que você não esteja entre eles, mas tenho conhecido muitos assim, até bem próximo de mim). Esse fosso é uma calamidade. É preciso evitar que ele se aprofunde – justamente em um meio, o libertário, em que os dogmatismos e sectarismos têm sido tão frequentes. Ora, haveria algo mais antilibertário do que isso?…