Por Passa Palavra

Primeiro dia (5 de agosto)

Em uma hora de viagem de carro saímos de São Paulo e chegamos a Campinas (tempo menor do que leva um trabalhador, que mora na Zona Leste e trabalha no centro de São Paulo, num ônibus lotado).

Alojamo-nos no espaço do dia prévio à marcha, um ginásio da prefeitura de Campinas, que até o fim da noite receberia diversas delegações do MST.

Centenas de pessoas, vindas das mais variadas regiões do estado mais rico da nação, centenas de necessidades, como a de organizar esse espaço comum. Para tanto, ao contrário do que ocorre em boa parte dos encontros estudantis e sindicais, não se contratou seguranças, não se recorreu a empresas de trabalhadores de limpeza terceirizados, nem tampouco a administradores para planejar a logística para a melhor coordenação dessas centenas de marchantes. Foram exatamente as próprias pessoas que se auto-organizaram, através de mutirões voluntários (isto é, não remunerados), dividindo as tarefas pelos setores de limpeza, de segurança, de distribuição das refeições etc. Se a moda pega, é bom os gestores, administradores, subencarregados de subdivisões procurarem outra ocupação…

Após momentos de descontração e conhecimentos, de carteado e brincadeiras, de música e bate-papos, no início da noite alguns ônibus levaram a companheirada para o ato político no centro da cidade, lá iria ocorrer a apresentação de grupos de rap, especialmente do A Família.

Para além dos discursos dos “aliados” do movimento – sindicalistas, políticos etc. – os “príncipes do gueto com o castelo de lona preta” demonstraram um fato que deveria ser mais atentamente observado pela esquerda, o poder da palavra, que em sua forma rimada, faz com que as idéias entrem em sintonia com a linguagem, abrangendo um espectro muito maior de pessoas, sobretudo dos setores populares.

Segundo dia (6 de agosto)

Mais de 23 quilômetros percorridos a pé, de Campinas a Vinhedo.

Nesta marcha ninguém estava usando um tênis Nike com amortecedor turbo-ultra-hiper que custa mais do que muitas das pessoas gastam na alimentação do mês de toda a família. Nesta marcha as pessoas não estavam sozinhas, movidas pelo simples prazer de marchar. Nem tampouco marchavam para manter o corpo em forma. Não marchavam competindo entre si para ganhar prêmios em vale-compras num supermercado qualquer.

O prêmio exigido não é apenas a realização imediata da reforma agrária, a defesa dos direitos dos trabalhadores e contra a criminalização da luta. O prêmio adquirido é a conquista da dignidade política, a certeza de serem atores, e não espectadores, de suas próprias vidas.

Nesta marcha não são apenas passos que são dados, mas amizades que são construídas, vivências que são compartidas, solidariedades que são erguidas.

Infelizmente, para a companheira Maria Cícera Neves esses passos não serão mais dados por ela, pois foi morta em um atropelamento por um caminhão, mas seus passos serão dados por milhares de sem-terra, que, como ela, ousam enfrentar o presente que lhes foi negado, para construir um amanhã mais justo e igualitário.

À companheira, nem um minuto de silêncio, mas uma vida de luta.

Vida como do Seu Luiz Beltrame, que com mais de cem anos fez questão de participar desta marcha, em sua opinião a mais importante. Em seu vigor centenário, entre passos e abraços, criou e recitou o poema:

Eu sou brasileiro eu sou
Nessa marcha eu vou
Homem e mulher
Então vamos lá São Paulo
lá fazer um intervalo
lá na Praça da Sé
Eu sou brasileiro eu sou
Nessa marcha eu tou
Com um século de vida
companheirada e nunca desistida
Então vamos para a Praça da Sé
Para declarar como é a nossa vida
Começar do começo ao fim
Porque o melhor caminho que eu achei foi o MST

Fotografias a preto e branco: Itapira.
Em breve colocaremos no Em Directo mais depoimentos dos marchantes

Terceiro dia (7 de agosto)

Algumas pessoas acreditam serem mais e melhor porque possuem o produto x, y ou z. Crêem que ao adquirirem, ou poderem consumir determinada marca, como por mágica a propriedade que a propaganda lhe apregoa será também característica desta pessoa.

Assim, nas universidades brasileiras é cada vez mais comum a utilização de camisetas com o nome e a turma de determinado curso com logotipos que imitam marcas transnacionais famosas.

Curiosamente os marchantes sem-terra não desfilavam com grifes, não eram outdoors ambulantes. E não somente pela impossibilidade de comprar roupas de determinada marca, pois as roupas com as quais se cobriam tinham mensagens e reflexões, fruto, talvez, da síntese que a prática lhes possibilita.

A projeção

Hoje também teve um evento muito interessante, e não tão comum, o Coletivo de Comunicação da Marcha, composto por diversos grupos e indivíduos, recolheu materiais áudio-visuais e iconográficos e os projetou para os marchantes acampados, para que estes pudessem se ver, ao invés de apenas saberem das notícias e fatos pela grande mídia. Estas projeções permitiram a auto-identificação dos marchantes, que podiam se enxergar nos fatos e notícias que eles mesmos criam, ao invés destas fotografias, vídeos e áudios servirem apenas para a deturpação e desqualificação por um lado, ou para teses e eventos intelectuais por outro. 

Fotografias da projeção: Waldo Lao Sanchez

Quarto dia (8 de agosto)

Você gostaria de ter um ou dois carros? Um ou dois apartamentos?

Pergunta besta para uma resposta óbvia não?

Numa época na qual a publicidade corrobora e promove um sistema que tem por visão o quanto mais melhor, gerando crianças que trocam de celular a cada seis meses e adultos que trocam de carro a cada ano, tendo por intuito último e íntimo a acumulação pela acumulação, é surpreendente que uma menininha, ao ser questionada pela educadora se gostaria de ganhar os brinquedos que fez em um desenho (se é que esse desenho possa ser compreensível para além da mente infantil), responda convictamente que:

Não, já tenho brinquedos suficientes. Eu não preciso de mais.

Como também pode parecer inconcebível que crianças, em plena época da globalização-pós-moderna, estejam a gastar seus tenros anos em brincar de pega-pega, esconde-esconde, jogos de adivinhação, a ouvir historinhas ou a cantar, sem a preocupação de virarem a melhor velocista, a melhor cantora, a melhor em ser melhor.

Crianças que ao contrário de seus pais, podem desfrutar de sua infância e aprender os valores de outro mundo, como a coletividade e a solidariedade, não pautado no lucro incessante ou na competição extremada, enquanto suas mães podem se dedicar à tarefa de criar os caminhos desse novo mundo para seus filhos trilharem.

Mais inacreditável é pensar que tudo isto existe de forma itinerante, ao longo de uma marcha que caminha pela Rodovia Anhanguera.

Pois é, a valorização do ser humano em detrimento do lucro constante e infinito. O ser ao invés do ter ou o aparentar ter. Mais uma das perigosas armas que os Sem Terra e os Sem Terrinha, através das Cirandas Infantis, empunham contra o Estado de Direito (da propriedade) e sua excelente educação infantil (que o digam as empresas transnacionais).

Ah, essas crianças vão dar trabalho…

As cirandas

 

 

 

 

 

 

 

Fotografias de Waldo Lao Sanchez

E vejam aqui os Sem Terrinha marchando!

Quinto dia (9 de agosto)

É comum que os grandes fatos sejam narrados pela história de líderes e “personalidades”. Ao centrar-se nos personagens, relegam-se ao ostracismo os processos históricos e não se compreende como a história é escrita, não apenas na prática e nem somente na teoria, mas na práxis que nos coloca em movimento.

Os que focarem seus olhos exclusivamente nos quilômetros andados pela Anhanguera, no trabalho mais visível – e espetacularizado da marcha – não conseguirão perceber o batente quase invisível que torna possível a caminhada para além do andar.

Uma estrutura que ocorre simultaneamente com a marcha, a acompanhando e a sustentando. Como as equipes que distribuem copos de água na rodovia e os recolhem depois; a que carrega e descarrega os pertences dos companheiros entre os alojamentos; a da cozinha e a de distribuição das refeições; a da limpeza e a de agitação e propaganda, bem como a de comunicação e a de saúde ou a de segurança que, durante a marcha, procura garantir que os motoristas, estressados por ter que esperarem alguns minutos no trânsito, não avancem para cima dos sem terra, que esperam há décadas, para não dizer séculos, a efetivação da reforma agrária.

O focar apenas nos passos na rodovia também não apreende a riqueza que alimenta a marcha, material e espiritualmente, como a humanidade de pessoas como o Seu Cícero, que ensina que o MST também é composto por pessoas que já tiveram melhores posses mas “não venceram na vida”, segundo os valores dominantes, e que no MST as pessoas resgatam a dignidade que pensava-se perdida. Ou a Dona Sandra, que foi auxiliar de enfermagem para ajudar as pessoas, e apesar de sua mãe dizer que não criou uma filha para ser sem terra, ela se sente realizada pelo fato de no MST continuar a ajudar as pessoas de variadas maneiras.

Aos que continuam olhando apenas para a superfície das coisas, e para cima, talvez somente perceberão que a história também se move por baixo, e pelos de baixo, quando o chão desabar sob seus pés. Aí perceberão que a história não se limita a certas pessoas, lideranças e direções, mas que a “massa de baixo” é o que sustenta a história, e que também é ela quem pode mudar a sua direção. Será que estas “velhas toupeiras” já sabem escrever? Passa Palavra

Obs. O diário do marchante também se deu em rodas, de Jordanésia a Osasco a marcha se movimentou em ônibus. As Diretorias Estaduais informaram aos marchantes, divididos por regionais, a sua avaliação de que seria melhor que as pessoas descansassem neste momento, para que tenham mais energia para a Jornada que se iniciará em São Paulo.

 

Fotografias de Waldo Lao Sanchez, Mariana Raphael e Passa Palavra.

Sexto dia (10 de agosto)

A Marcha chegou a São Paulo.

No estádio do Pacaembu, acostumado com gritos das torcidas organizadas, ecoam palavras de ordem do MST:

Ousar Lutar! Ousar Vencer!

Reforma Agrária quando? Já!

Quando o campo não planta? A cidade não janta!

MST! A luta é pra valer!

Simbolicamente os trabalhadores do campo encontraram os trabalhadores da cidade, aspecto mais do que importante, visto que, concretamente, o capitalismo jamais deixou de namorar a cidade e o campo.

Numa conjuntura de fragmentação da classe trabalhadora, o desafio de estratégia política foi colocado pelo MST. Como buscar alianças? Quais os novos instrumentos políticos necessários para uma nova época? Neste momento, os movimentos sociais urbanos irão se somar ao MST para além de moções de apoio? Após cerca de 1.500 marchantes atravessarem inúmeras fronteiras, desde Campinas até São Paulo, quais as cercas que poderão ser derrubadas e quais as fronteiras abolidas?

Esta marcha foi um esforço coletivo e individual, uma grande escola em movimento. Mas ela não acabou, ainda que o diário de marcha tenha chegado ao seu fim.

Contudo, continuaremos, no Passa Palavra, a noticiar as lutas do MST, a pensar sobre elas, e, sobretudo, a apoiá-las.

Fotografias de Waldo Lao Sanchez

8 COMENTÁRIOS

  1. Olá,

    Excelente cobertura do primeiro dia! A chegada da marcha na cidade de São Paulo, dia 10 agora, é esperada com grande entusiasmo e vontade por nós. Boa sorte e boa continuidade aos companheiros que seguem acompanhando as ações.

  2. Excelente e lindo relato…!

    Desejo toda força aos companheiros e companheiras marchantes. Sobretudo depois do trágico incidente de ontem. E aproveito para agradecer e parabenizar todos os envolvidos na marcha, em especial os companheiros do setor de comunicação, que estão fazendo um excelente trabalho.

    Abraços!

  3. O trabalho de vocês está demais!
    Gostei muito dos textos e tenho ficado ansiosa a espera dos diários. Vi os videos. Excelente trabalho! Parabéns!
    Muita vontade de estar com vocês!

  4. Ótimo!um pouco poético! As fotos são muito boas!
    cada dia do diário aborda um aspecto, conta de forma clara e simples como foram algumas coisas
    mto bem organizado, achei mto bom!

  5. A narração é realmente emocionante.

    Queria parabenizar, especialmente, por notar que os grandes feitos não estão, simplesmente, na superfície.

    Prestar atenção na longa duração dos fatos, e das forças envolvidas na luta, em todas as dimensões, conta de maneira muito mais honesta a história do que minimizá-la a uma ou outra liderança, um ou outro movimento.

    O movimento está maduro o suficiente pra, ao herdar a trajetória da esquerda, reescrevê-la. Força ao MST!

  6. Parabéns por toda a cobertura. O Passa Palavra foi o único local que se pode ver as notícias de uma forma mais ampla, seja pelos muitos videos, seja pelos textos que abordaram o cotidiano vinculando-o com questões maiores.
    Quanto a última pergunta do último dia, se os movimentos urbanos irão se somar ao MST, essa questão poderia também ser invertida. O MST está pronto para se somar com certos setores populares, urbanos e de esquerda, sem reproduzir as mesmas tentativas de hegemonização e práticas de uma esquerda vinculada a organização do Partidão?
    Infelizmente a Jornada de Lutas e o último dia de atos do MST se deu na Av. Paulista, com centrais sindicais como CUT e Força Sindical. Poderia ter sido mais proveitoso e desse mais concretude as aspirações do MST de se somar e organizar a periferia um ato em Paraisópolis ou em outra quebrada em São Paulo. Porque as tradicionais centrais sindicais e os velhos partidos ao invés da população mais autônoma? Porque a Paulista e não a periferia? Os atos e ocupações do MST em São Paulo contaram com outros aliados?

    Solidariedade e reflexões

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