Chicão só pensa em não acabar como muitos que conheceu. Por Rennan Moura Martins
Seis e meia da manhã, o odor fétido do córrego invade as narinas de Chicão, que mesmo acostumado ao cheiro acaba por acordar, pois a água já estava molhando seu surrado colchão e todo o chão do barraco. Indiferente, caminha em seu domicílio e abre o armário da cozinha, um pouco de pó de café e alguns biscoitos de água e sal, sente uma ponta de rancor, fecha.
Vou ver se arrumo uma larica na padoca do seu Dito, dizem seus botões. Veste a bermuda, joga a camiseta por cima do ombro e toma os becos de seu bairro. O cheiro mais forte do esgoto quase lhe dá náuseas, à esquerda alguns cachorros disputam a alimentação no lixo, à direita algumas crianças brincam, sujando-se. Tudo nos conformes. Cruza com Leandro, amigo de infância, mas não o cumprimenta. Tá na nóia, vai pedir dinheiro… Imagina.
Chega à padaria do seu Benedito, dois homens de ar militar que estavam conversando com ele disfarçam e saem.
– E aí moleque, tem nada sobrando não, se adianta.
– Qual é, seu Dito, tô no aperto, só mais essa vez.
– Sou teu pai não.
– Tem nenhum serviço pra eu te adiantar não?
O ar de seu Dito se torna mais pesado com essa pergunta.
– Olha, tu tem ideia do que tá querendo, né?
– Tô ligado Ditão, cansei dessa vida, quero adiantar meu lado.
*
Seis e vinte e sete da manhã, Benedito, dono da padaria e empreendedor em ramos escusos, ouve fortes batidas no portão de seu estabelecimento e residência. Esses vermes de novo, advinha. Acende o cigarro e caminha lentamente, levanta o portão, os senhores entram sem nada dizer. A tensão denuncia a urgência do “pedido”.
– E aí ladrão, tem um serviço novo pra tu…
Dito traga profundamente o cigarro, quase se ouve o silêncio e apreensão.
– Han…
– Tu vai meter uma vagabunda no cativeiro…
– Já disse que só trafico, Morais.
– Quero saber não, se eu levar essa mijada tu vai junto.
– Porra Morais! Quer me foder?
– Segura tua onda aí, quer adiantar teu tranco?
Raiva e remorso invadem seu Benedito, que não as deixa transparecer aos homens da lei presentes.
– É quem?
– Isabela Oliveira.
Dito solta uma risada nervosa, traga.
– Dá nome aos bois Morais, filha de quem?
– Do coronel…
– Tá achando que sou teu faxineiro, caralho?!
– Vai fazer e ponto.
Os passos de Chicão são ouvidos na padaria.
Coronel Oliveira, linha dura da polícia militar. Conhecido pela honestidade, só tão grande quanto sua intolerância.
Na noite anterior chamou alguns de seus homens ao gabinete e os informou que estava ciente dos desvios de armamento do quartel, e que daria o devido procedimento aos fatos apurados.
Veremos, balbuciou Morais ao sair do gabinete.
*
Seu Dito desdobra a folha deixada em seu balcão, lê. Dirige um olhar sério a Chicão.
– Quer se adiantar? É desse jeito não.
– Caguei, bora que eu tô na função.
Benedito expõe o pedido dos senhores que acabaram de sair. Francisco ouve atentamente, medo e expectativa pulsam.
– Ganho o quê com isso?
– Vai ganhar, precisa saber mais que isso não…
*
Meio dia e quarenta e cinco. Da esquina ouve-se o sinal, movimentação na porta do colégio, agitação na mente do meliante. Três jovens caminham despreocupadas em direção à esquina. “Porra, o que eu faço com essas piranha?”
Como se já conhecesse o procedimento, sai do carro, revólver em punho, uma coronhada, um empurrão. Isabela no carona. Acelera ansiosamente pelas ruas, tentando algo difícil. Não parecer suspeito.
– Dá um pio que eu te passo!
Lágrimas involuntárias correm o rosto da moça.
Quatro e dezesseis. Senhora Oliveira liga para o coronel.
– Otávio, a Isabela avisou onde ia?
– Não, preciso desligar. Trabalho sério.
Nessa hora Otávio, o pai, liga para sua filha. Fora de área ou desligado. Tenta se acalmar, mas a vontade é sair à procura. O coronel não sabe com quem contar. Desconfiança, arrependimento. Entra em seu gabinete. Torce pra que este fato não tenha nenhuma ligação com sua denúncia.
“Se nada tiver sumido, Isabela também não vai”
Diz uma folha impressa.
*
Francisco, mais novo sequestrador de sua comunidade, não vê outra opção que não seja trancar a jovem em seu domicílio, descarta a possibilidade de sua mãe aparecer e escandalizar, sabe que os sumiços dela costumam demorar não menos de três dias. Estaciona o veículo cedido pelo contratante Dito em local discreto e segue com ela pelas vielas, sob constantes ameaças. Impossível julgar em qual dos dois há mais nervosismo.
-Só quero o dinheiro, tá me entendendo?
-Sim…
Isabela pensa em pedir pra não ser machucada, mas rapidamente chega à conclusão que não lembrá-lo da possibilidade é mais interessante.
*
Vinte e quarenta e um. Depois de muito rodar pela cidade na esperança de encontrar sua filha, imagina quem é o mais indicado a ajudar sem oferecer perigo à sua família, descobre que nenhum de seus colegas é confiável. Entra em casa.
-Cadê a Bela? O que tá acontecendo?
Tenho tudo sob controle, Elisa, afirma o coronel, tentando esquecer que é também o pai. É tamanho o esforço de parecer forte que nem repara em sua mulher tomando o papel de sua mão.
-Vou ligar agora pra polícia, Otávio!
-Eu sou a polícia, os outros são vermes.
-Como assim?
-Não posso contar com nenhum deles…
-Conta pra mim ao menos, é nossa filha… Isso não é uma operação.
Neste momento, o coronel sai de cena, quem fica é somente Otávio, abalado em suas convicções, inseguro perante o que fazer. Expõe toda a sequência de fatos que culminaram neste pesadelo, se tocar da pessoalidade do problema o tornou incapaz de assumir sua patente.
No primeiro momento que se põe a pensar na condição de pai lhe ocorre uma lembrança. O balbuciado de Morais invade sua mente, sente um impulso violento ordenando sua morte. As conjecturas que, a esta altura já não possuem controle, o advertem que antes da vingança é necessário salvar sua filha. Sai de casa outra vez.
*
Mais ou menos no mesmo horário, em um ponto qualquer da cidade, Morais toma cerveja atento ao noticiário, a entrevista que prestou após a polêmica prisão de um ladrão de galinha o perturba, pois, ao ser indagado do motivo da surra que aplicou ao detido desarmado, afirmou com veemência:
-Porque eu quis!
Pensava nas repercussões, pensava principalmente que não podia ser exonerado. Assiste a si próprio na tela da TV do bar, ouvindo sem discernir as palavras de apoio vindas de seu colega. Até que inicia, em seguida à sua aparição, a sessão de opinião da âncora do programa.
“Diante de um judiciário que protege os marginais e agride o cidadão de bem e seus protetores, diante de uma sociedade tomada pela violência à qual o Estado se omite, diante de uma indignação generalizada que clama pela justiça ainda que errônea, a atitude do cabo Morais é no mínimo compreensível. Não podemos confundir a ação de alguém que desesperadamente quer justiça com a de alguém que pratica a violência pura e gratuita. Este exagero da força, se assim pode ser considerado, deve ser creditado não a quem o praticou, mas sim a quem o provocou!”
Soa como música a seus ouvidos, alguns frequentadores o parabenizam, rapidamente muda de humor, sente-se um herói. Após ter certa segurança de que ainda tem emprego e que sua privilegiada posição em relação à lei continuará, se lembra da filha do coronel. Decide então se inteirar do andamento do serviço que contratou, liga para seu Dito que informa, por meio de códigos, que o rapto já ocorreu, desliga dizendo a ele que espere segunda ordem.
De uma mesa de canto, coronel Otávio, que ali chegou há poucos minutos, bebe água aparentando paciência, lançando seu olhar sobre o cabo Morais que, mesmo sob o efeito do álcool, consegue sentir a forte energia emitida. Se vira procurando de onde ela vem, avista seu superior. Tomado pela confiança transmitida pela relevante opinião proferida pela mídia, se senta ao lado de Otávio.
-Fala coronel, posso dispensar a formalidade militar nesta situação, né?
-Filho da puta, você vai me falar e vai ser agora cadê minha filha.
-Do que você tá falando? Por acaso isso é uma acusação?
-Quem está falando de lei aqui? Nós dois resolveremos isso é aqui mesmo.
-Tava vendo o jornal? Fiquei influente, melhor segurar sua onda…
-É o seguinte, Morais, já tenho cópias das auditorias distribuídas a alguns sob ordem de entregar à imprensa diante de qualquer fato estranho.
-Hum… Será?
-Nosso herói vai pagar pra ver?
A sensação do poder, da imunidade já o tinham apaixonado. Só de imaginar ser caguetado, sua postura já se afeta. -Que garantia eu tenho, coronel? Você vai me foder com ou sem família… Minha mãe vai chorar antes da sua.
-Olha só, Morais, estou pouco me fodendo pra tuas merda, só me leva até ela que eu calo a boca, e outra, a única certeza que você tem é que tá fodido se algo acontecer. Sabe que não terei nenhum motivo pra não fazer da sua vida um inferno ou pior.
Morais se cala, medita na óbvia constatação que sua pretensão não permitiu enxergar. Neste instante, um turbilhão de pensamentos o invade, repara em volta, seu colega sumiu, esperando assim não se comprometer. Imagina sua morte, imagina sua exoneração, sua prisão, e segura o impulso de acabar com Otávio ali mesmo.
-Vamo no teu carro buscar ela.
Otávio levanta sem reflexão, sob a força da paternidade. Tomam o caminho. Morais decide que é melhor descobrir o local do cativeiro pessoalmente. Somente avisa a Benedito que se encontra no portão pelo celular. Dito sai de sua casa, cambaleante de sono e cachaça.
-To te vendo muito esses tempos, Morais, gosto disso não.
-Vai perder tempo algum, só me diz onde o encarregado guardou o malote.
Benedito indica a eles como chegar no local, sente uma pontada de remorso em envolver Chicão neste lamaçal, o sono porém o vence e então volta a dormir.
Morais e Otávio, em alta tensão e dispostos às últimas consequências em nome de seus interesses conflitantes, seguem quase como parceiros pelos escuros caminhos da favela. Chegam onde parece ser o local indicado.
É aí então que Otávio é tomado pela sede de vingança, com uma voz dissimuladamente tranquila chama por Isabela, que solta um grito abafado em resposta, numa questão de segundos, ouve-se um disparo. Morais cai sem vida.
Adentra o cativeiro de sua unigênita, enxerga um rapaz tomado pelo medo, de pistola colada no ouvido da sequestrada. Cálculos então são feitos por todos os participantes. Chicão só pensa em não acabar como muitos que conheceu. Isabela só pensa em se desvencilhar de quem a usa como escudo.
Otávio então tem certeza, em um instante impossível de ser medido, que isolou Chicão em sua mira. Disparo.
Morre Chicão. Morre Isabela.
Uma história forte, retratando o cotidiano das relações espúrias entre a polícia moldada aos interesses do poder capitalista e os delinquentes comuns, passada em um bairro pobre de alguma grande cidade brasileira. Mas que, certamente, pode ocorrer, e ocorre, não apenas do Brasil, mas também em todo o mundo capitalista, especialmente nos países da periferia desse sistema.
Eu gostei.