Por Vavá Oliveira

A respeito da luta anticolonial na África, lia-se no tópico II do manifesto do jornal Combate:

“Por si só, a ‘independência’ não chega para definir o que interessa aos trabalhadores africanos. Esta independência será uma derrota se se limitar a uma transferência de poderes políticos de uma grande burguesia colonialista a uma burguesia nacional africana. Se mudar o grupo dominante, mantendo-se os trabalhadores como espectadores passivos” – Publicado no editorial do Combate nº 6, em 12 de setembro de 1974.

Esse artigo visa, no fundo, recuperar o debate proposto pelo jornal comunista há quatro décadas. Se, à época, no campo da esquerda, pairavam incertezas sobre o caráter dos Estados africanos lusófonos pós-independência, hoje não restam dúvidas. Exploração e opressão dos povos africanos pela elite negra, em conluio com os brancos de ultramar, representam a continuidade do projeto colonialista.

Resta saber: se ao colonialismo opuseram-se os movimentos de liberação nacional, quem confronta, hoje, a elite negra na África lusófona? Serão ainda (apenas) os bandidos [1]?

40 anos de independência, pobreza e medo

MLI Guiné (8)Há 44 anos Amilcar Cabral [2] denunciava na Assembleia Geral das Nações Unidas a exploração e opressão do povo da Guiné Portuguesa. A escassez de alimentos, o racismo, o analfabetismo (90%), a falta de serviços básicos, a exploração do trabalho [3] e uma expectativa de vida em torno dos 35 anos justificavam a luta pela “autodeterminação do povo guineense”. Passados 40 anos desde a independência, a situação da ex-colônia portuguesa na África Ocidental pouco mudou.

Frequentemente, a Guiné-Bissau integra a lista dos dez países mais pobres do mundo. Cerca de 65% da população vive abaixo da linha da pobreza. Mesmo em famílias cujos membros estão empregados, os salários auferidos garantem apenas a compra de alimentos para uma refeição diária [4]. À crise alimentar soma-se a falência da empresa pública de água e eletricidade. Sem acesso à água potável, o quadro sanitário do país é cada vez pior e doenças como febre tifoide e cólera tornaram-se epidêmicas [5]. Os sistemas públicos de saúde e educação [6] passam por uma profunda crise administrativa e financeira. Enquanto nos hospitais o atendimento médico e os remédios são pagos pelos pacientes, nas escolas, mesmo após o pagamento das taxas, os alunos sofrem com o recorrente cancelamento do ano escolar. As consequências não poderiam ser outras: 50% de analfabetismo entre a população e a expectativa de vida não alcança os 50 anos.

No cenário político, o país vive desde a independência sob a hegemonia do PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Como em outros países da África subsaariana, a elite autóctone (pequena burguesia) nacionalista assumiu o controle do Estado e dos recursos naturais após a independência. O “suicídio de classe” da pequena burguesia, recomendado por Cabral, nunca ocorreu. Ao contrário, ela se consolidou como classe dominante e mobilizada pelas oportunidades de enriquecimento fácil, converteu o Estado independente numa cleptocracia. Altamente fragmentada [7], as frações dessa pequena burguesia negra se digladiam pelo controle dos recursos públicos em sucessivos golpes de Estado levados a cabo pelos seus respectivos representantes no interior das Forças Armadas.

Acossada pela repressão a qualquer mobilização, a população se abriga sob a proteção da passividade e do silêncio (djitu ka ten). Na privacidade dos bairros miseráveis de Bissau e das vilas do interior (tabancas), os guineenses criticam duramente políticos e militares. No espaço público, nunca ousaram. Os assassinatos, espancamentos e detenções arbitrárias, sobretudo nos últimos dois anos [8], estão fortes no imaginário popular e ajudam a consolidar a cultura política do medo.

Das ações espontâneas pontuais à auto-organização

Contudo, o agravamento das condições de vida após o último golpe de Estado aumentou o nível de indignação, particularmente entre os jovens. Nota-se que o encarecimento dos alimentos [9], o desemprego juvenil rompante e a falência dos sistemas de educação e saúde impulsionaram ações espontâneas. Em fevereiro de 2014, por exemplo, quatro jovens desafiaram as forças de segurança em um protesto relâmpago em frente ao edifício da ONU, em Bissau. Eles reclamavam da suspensão das aulas nas escolas públicas e da falta de água e luz. Da mesma forma, em alguns bairros, jovens criaram grupos de limpeza e restauração de ruas.

Mas se as condições socioeconômicas provocavam a indignação dos jovens, o modelo (hierárquico) de associativismo, orientado por púberes carreiristas e atrelado aos limites ideológicos do Estado e da cooperação internacional (ONU, União Europeia, ONGs internacionais), constituía um obstáculo à auto-organização.

Encurralados pela miséria de um lado e pela cultura política conservadora de outro, um grupo de jovens integrantes de associações [10] de bairros de Bissau e de Catió resolveu criar espaços de reflexão sobre o associativismo na Guiné-Bissau.

O objetivo principal era apresentar a um público amplo formas de organização política não partidária que estimulassem a participação em ações comunitárias. Em segundo lugar, buscava-se romper com o modelo de associativismo promovido pela cooperação internacional, que associa “melhoria das condições de vida” à execução de projetos apolíticos por ONGs locais (dirigidas pela mesma elite nacional que controla o Estado). Em suma, tentou-se pensar a política fora dos marcos liberais da democracia representativa e propor uma forma de organização comunitária.

MLI Guiné (7)As pessoas pensam que os políticos podem fazer tudo. Tendo em conta a cultura política e o medo incutido na sociedade desde a independência, as pessoas se sentem incapazes de lidar com problemas que elas mesmas poderiam resolver. Elas pensam que o Estado é tudo. Pouco a pouco, acho que estamos conseguindo discutir esse assunto nas comunidades. Em Bandim Bilá, por exemplo, acho que parte da comunidade ganhou maturidade de classe e agora entende que eles também podem trabalhar para melhorar a comunidade. Não devem ficar à espera dos representantes eleitos, que não fazem nada durante anos” – Ailton J.

No final de junho de 2013, as rádios e canais televisivos repercutiram na Guiné-Bissau as manifestações contra o aumento da tarifa de ônibus em cidades brasileiras. A partir daquele momento, passou a ser comum nos debates perguntas sobre a forma como o Movimento Passe Livre (MPL) [11] se organizava. Por interesse dos seus membros, cinco associações (quatro em Bissau e uma em Cachungo) organizaram formações sobre os princípios organizativos dos “movimentos autônomos”.

Estamos a acompanhar pelos media a revolta do povo brasileiro contra o aumento da tarifa. Isso demonstra que o povo brasileiro tem maturidade política, conhece os seus direitos. Mas por quê que a gente não consegue essas coisas aqui já Guiné-Bissau?” – Zelmar R.

Em setembro de 2013, ao findarem as discussões teóricas, ficou suspenso no ar um último questionamento: “o que nos impede de criar um movimento social autônomo que fortaleça as ações espontâneas da população e promova uma nova cultura política no país?” Os debates deram lugar a atividades de mobilização em bairros da capital. A partir das demandas concretas dos bairros, criar-se-ia um movimento social cujo foco atendesse às principais necessidades do povo. No início de outubro, cerca de trinta jovens de diversas associações criaram o Movimento Luz ku Iagu (Mov. Luz e Água – MLI).

Antes de criarmos o movimento, fizemos uma série de “trabalhos de base” em comunidades de Bissau para identificar as principais necessidades. As pessoas que intervinham sempre enfocavam o problema da falta constante de luz e água. Em paralelo, nós participamos de uma formação organizada pela associação JACAF sobre democracia direta e autogestão. No final dessa formação, que contou 40 jovens de diferentes associações, foi realizado um djumbai [12] para identificar as principais dificuldades vividas pelos jovens nas suas comunidades. E todos os grupos presentes falaram sobre a falta de luz e água. Além disso, sabemos que a água é um bem fundamental para a vida humana. Então, nós resolvemos criar esse movimento para que haja luz e água.” – Ailton J.

Desiludidos com as associações burocratizadas e incentivados pelas vitórias de junho de 2013 no Brasil, os membros conferiram ao movimento uma estrutura interna horizontal. Nesse primeiro ano de existência, as principais decisões são tomadas coletivamente pelos membros reunidos na assembleia geral e baseiam-se em propostas elaboradas por comissões temáticas ou em sugestões individuais.

O primeiro princípio do movimento é autonomia. O movimento é autônomo na medida em que toma todas as decisões sozinho. Nós somos independentes e não temos nada com os partidos políticos. Assumimos a democracia direta, a igualdade de gênero e autogestão como princípios de base. E no MLI nós não temos líderes. Nós criamos um movimento horizontal no qual as decisões são tomadas em assembleia geral.” – Valdir K.*

Ninguém trabalha em nome do movimento. Para trabalhar para o movimento você precisa ser delegado pela assembleia geral. Quando a assembleia geral toma uma decisão, ela mesmo elege um grupo de pessoas voluntárias para executar o trabalho.” – Luizinho B.

Os membros do movimento, presentes na assembleia geral, interessados num determinado trabalho criam uma comissão específica. Criada a comissão, a sua primeira tarefa será elaborar uma proposta à assembleia geral. Aprovada, caberá à comissão executá-la. É assim que funcionamos.” – Ailton J.

MLI Guiné (1)As discussões sobre autogestão (das lutas e da sociedade), democracia, ação direta e direito à manifestação também foram muito importantes para a escolha dos princípios internos. Por outro lado, mal começou a pô-los em prática, o MLI já foi acusado por um dirigente juvenil de tentar acabar com a “cultura de chefia” na Guiné-Bissau. Numa outra circunstância, o presidente de uma renomada associação recomendou ostensivamente a eleição de um presidente para o MLI, chegando mesmo a ameaçar não mais se reunir com os delegados do movimento caso não fosse eleito um “responsável”.

Essa forma de se organizar é recente na Guiné-Bissau. Decidimos nos organizar assim, de [forma horizontal], porque essa “cultura de representação” que temos há muitos anos não consegue cativar toda a massa. Por exemplo, quando íamos às comunidades para trabalhar, só conseguíamos falar com o presidente ou secretário da [associação] local. Toda a comunidade ficava de fora. Então resolvemos nos organizar assim para trabalhar com o povo, permitindo a participação de todo mundo nesse processo. É verdade também que as pessoas [na comunidade] acham um pouco estranha essa forma de se organizar. Estão habituados à “representação” e por isso somos questionados como podemos funcionar sem presidente. Mas já estamos a trabalhar há quase um ano sem presidente e nunca houve qualquer problema. Porque muitas vezes um presidente decide uma coisa que não é vontade da maioria. E nós nunca fazemos isso. Todos são incluídos para que seja tomada uma decisão certa.” – Ailton J.

Nessa fase inicial, o Movimento Luz ku Iagu tem se concentrado em três tarefas: i) divulgação do manifesto e preparação da Campanha Nacional Luz e Água; ii) Formação política aos membros do movimento na “Escola da democracia direta” e em núcleos nas comunidades; iii) mobilizar as comunidades através de ações diretas e constituição de núcleos de bairro.

Atualmente, o movimento está a trabalhar numa campanha por luz e água nos bairros de Bissau. A finalidade é levar à população o nosso manifesto. Para isso estamos a trabalhar nos bairros e liceus de Bissau. A nossa meta é fazer com que, a curto prazo, a EAGB [empresa pública de luz e água] se submeta ao controle social. A médio prazo, queremos criar dois conselhos nacionais de gestão democrática dos recursos naturais e outro de gestão da luz e água. E a longo prazo queremos que a EAGB seja completamente gerida pelo povo, pois assim nos garante a nossa constituição nos artigos 2 e 3. No art. 2, diz que o povo pode exercer o poder político diretamente ou através de seus representantes. E no art. 3 diz que a cidadã ou cidadão têm o direito de participar na gestão pública. Nós queremos que isso seja respeitado.” – Ailton J.

Outra tarefa nossa é a criação de núcleos nos bairros em que estamos a trabalhar. Através desses núcleos nós fazemos trabalhos de impacto imediato. Por exemplo, se a comunidade tem problemas com o lixo, nós vamos trabalhar junto com ela para resolver esse problema. E também fazer com que a comunidade conheça os seus direitos.” – Zelmar R.

Face ao interesse geral em continuar os debates sobre democracia direta, autogestão e história das lutas sociais, o MLI resolveu criar uma escola permanente de formação para os seus membros. A escola, que é autogerida por (35) alunos e professores, ocupa atualmente as instalações do Liceu Nacional Kwame N’Krumah, no centro de Bissau. Desde março de 2014, são oferecidas três disciplinas: Inglês, Ciência Política e História da Guiné-Bissau – excluída do programa das redes pública e privada de ensino. As aulas são ministradas em português.

No início de 2014, alunos da escola, juntos a outros estudantes não integrantes do MLI, fundaram o Coletivo Autônomo de Estudantes (CAE) – uma organização também horizontal. Em oposição à burocracia da confederação nacional de estudantes (CONEAGUIB), e sem temer as ameaças de repressão do Estado, em maio de 2014, o CAE organizou assembleias de estudantes da rede pública e os primeiros protestos estudantis em anos. Como consequência, o Estado e os dois sindicatos de professores foram obrigados a ceder às exigências dos estudantes: retomada imediata das aulas e recuperação do ano letivo 2013/14.

Uma escola libertária em Bissau

Dentre as atividades desenvolvidas, as ações diretas realizadas pelo MLI e pelos moradores são as que mais estimulam a auto-organização das comunidades. Exemplo ilustrativo da relação entre ação direta e autogestão no movimento é a Escola Comunitária de Bandim Bilá. Ex-escola pública, após ser abandonada pelo Estado, Bandim Bilá tornou-se um aterro de lixo. Anos se passaram desde o abandono, as crianças perderam a sua escola, o número de casos de malária e cólera aumentou na comunidade por conta dos dejetos, mas a Câmara de Bissau (Prefeitura) não retirou sequer um saco plástico do lixão.

Queremos reabilitar a escola para autogerí-la junto com os moradores. E tivemos que tirar montes de lixo para dar início à obra de reabilitação da escola.” – Valdir K.

Gostaria de dizer que defendemos a autogestão pois acreditamos na capacidade dos trabalhadores e estudantes de autogerirem os seus problemas.” – Ailton J.

MLI Guiné (4)Cartas e mais cartas, abaixo-assinados enviados… e nenhuma resposta. Nem mesmo o Ministério da Educação se prestou a atuar. Nada surpreendente, uma vez que todos os filhos de políticos e burocratas do Estado estudam na Europa ou no Brasil. Coube aos moradores mais ativos na comunidade e ao MLI organizarem uma série de assembleias no bairro para discutir o problema. Não havia mais tempo para esperar pelo Estado; a proposta do MLI era que a comunidade encontrasse uma solução.

O Presidente da Câmara de Bissau (prefeito) veio dizer que eles não tinham dinheiro. Mas onde que está o dinheiro dos nossos impostos? Então, sugerimos à comunidade fazer uma espécie de “ação direta” para pressionar a câmara a retirar o lixo.” – Ailton J.

Mas e a apatia política dos guineenses? Uma comunidade pobre e constantemente ameaçada pela repressão ousaria agir por conta própria? A comunidade não quis assumir o risco. Preferiu a destruição total da escola e a vida em meio ao lixo a protestar nas ruas ou mesmo assumir, sem “autorização estatal expressa”, a responsabilidade pela limpeza do bairro e a educação das suas crianças.

Dado o conformismo da maior parte dos moradores de Bandim Bilá, restou ao movimento e aos poucos moradores ativos arregaçarem as mangas e com as ferramentas arranjadas realizar, ao menos, a limpeza da parte interior de duas salas da ex-escola.

Se você vai falar sobre política numa comunidade, ela se fecha. Ela demora a entender as nossas ideias. Isso é natural, pois nem todos participaram das formações que deram origem ao movimento ou frequentam a Escola da Democracia Direta [13]Por isso nós temos feito sobretudo atividades práticas nas comunidades. E eu penso que essa tática seja correta.” – Zelmar R.

MLI-Guiné-5Pois bem, a essa primeira ação de limpeza sucederam outras, e progressivamente novos membros da comunidade vieram a participar. E não parou por aí. Ao perceberem a possibilidade de recuperar a escola com os próprios esforços e recursos, os moradores hoje animadamente discutem a gestão da futura escola; uma escola de excelência que não será estatal nem privada, será comunitária e autogestionada por alunos, professores e moradores. Com a ação direta (retirada do lixo) mobilizou-se a comunidade e abriu-se o caminho à autogestão. Nos bairros, muito mais do que as palavras de “agitação e propaganda”, são as ações simples e concretas o elemento determinante para superação da apatia e início da auto-organização.

Atualmente, duas comissões trabalham para a fundação da escola comunitária. Uma comissão é responsável por organizar a formação pedagógica dos futuros professores; e a outra está encarregada de organizar a reabilitação da estrutura da escola (telhado, portas, pintura das paredes etc). Ambas são constituídas por moradores e membros do MLI. A cada novo trabalho das comissões no bairro, mais moradores aderem à iniciativa. O objetivo também é fazer da escola de Bandim Bilá um centro comunitário no qual moradores possam organizar a luta por água e luz em parceria com outros bairros.

Estamos agora a procura de financiamento para reabilitar a escola. A escola que passará a ser comunitária. A comunidade é que vai ser a dona da escola e não o Estado.” – Luizinho K.

Queremos também que a escola seja comunitária para que ela tenha um nível de ensino elevado. Para isso estamos trabalhando para formação dos professores e temos feito contatos com organizações nacionais e internacionais para formação de professores.” – Zelmar R.

Contudo, se a escassa participação inicial deixou de ser uma preocupação, a falta de recursos ainda os deixa apreensivos.

É urgente a necessidade de dinheiro para avançar com a reabilitação da estrutura física e a compra de materiais didáticos. O MLI pretende iniciar o ano letivo escolar em setembro. Para isso, precisa de FCFA 1.300.000 (cerca de dois mil e seiscentos dólares) para a reabilitação básica. Uma campanha de arrecadação de fundos está sendo organizada aqui.

Quem quiser contribuir de alguma forma com a iniciativa da Escola Comunitária Bandim Bilá, favor entrar em contato através dos endereços eletrônicos: [email protected]; [email protected] .

Solidariedade internacional

O aspecto simbólico do surgimento do MLI na África Lusófona é marcante. Após tantos anos de dominação ideológica nacionalista – nos últimos tempos, em aliança com o discurso liberal dos direitos humanos –, o nascimento de um movimento autônomo de estudantes e trabalhadores nos anima.

Mas o que importa hoje e sempre é a análise dos resultados concretos e da auto-organização nos bairros e vilas do interior. O MLI está numa fase inicial. Erros, superestimações, ilusões e derrotas também fazem parte do roteiro. Atentemos aos seus desafios, contradições e sinais de burocratização. É esse o sentido da melhor solidariedade internacional que podemos votar ao Movimento Luz ku Iagu.

* A intervenção de Valdir K. foi feita em crioulo guineense e traduzida para o português pelo autor do artigo.

MLI Guiné (3)

Notas

[1] “A organização do banditismo é, neste momento, a grande esperança da revolução angolana. Por isso, quando os nossos doutos universitários ‘de esquerda’, tecnocratas candidatos a novos exploradores, nos perguntam, de sorriso nos lábios e com a terrível cegueira que os impede de ver a pujança dos fenômenos sociais – ‘então, se vocês são contra o colonialismo e contra os movimentos de libertação, quem é que apoiam?’, nós respondemos: Apoiamos os bandidos.” – Editorial do jornal Combate nº13, de 20 de dezembro de 1974.

[2] Amílcar Cabral (1924-1973) foi fundador e líder do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo-Verde (PAIGC). Cabral exerceu forte influência no seio das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) durante a guerra de libertação nacional (1963-1974) contra o julgo colonial português.

[3] A capital do país, Bissau, foi construída em 1941 com mão-de-obra local. Em geral, quando remunerados, os trabalhadores locais recebiam 3 ou 4 vezes menos do que um português a exercer a mesma função. Os postos de chefia estavam vetados aos nacionais da Guiné.

[4] Normalmente, a refeição diária do guineense se resume a uma porção de 300g de arroz branco e peixe seco.

[5] Face à fragilidade do sistema de saúde nacional, a epidemia do vírus ebola que assola a Guiné-Conacri – país fronteiriço – representa uma grave ameaça para a Guiné-Bissau.

[6] Durante as décadas de 80 e 90, o governo guineense implementou o Programa de Ajustamento Estrutural recomendado pelo Banco Mundial e FMI, o que levou à privatização das empresas estatais e à cobrança de taxas pelos serviços públicos de saúde e educação.

[7] Prova disso é a existência de 40 partidos políticos num país com apenas 1,5 milhão de habitantes. Não obstante o elevado número, os partidos não se diferenciam ideologicamente. Seus programas são um amontoado de frases feitas e senso comum liberal.

[8] Em abril de 2012, os militares executaram mais um golpe de Estado e empossaram um governo civil fantoche que levou a cabo as duas únicas tarefas exequíveis pela pequena burguesia guineense: a rapina dos recursos públicos e a repressão sistemática contra qualquer voz discordante. Em julho de 2014, foram empossados um novo presidente da República e um primeiro ministro eleitos num escrutínio considerado “democrático e transparente” por observadores internacionais.

[9] Atualmente, um quilo de carne custa, em média, FCFA 4.000 (cerca de dezanove reais).

[10] CAMBIS (Confederação das Associações de Moradores de Bairros de Bissau) e as associações de jovens dos Bairros de Reno, Luanda, Hafia, Sintra, Bandim, Empantcha e Enterramento.

[11] Movimento Passe Livre – movimento social autônomo, horizontal, que luta no Brasil por um transporte público, gratuito e gerido por trabalhadores e usuários. O MPL foi a principal organização política nas manifestações de junho de 2013 contra o aumento da tarifa de ônibus.

[12] Termo em crioulo guineense para debate, conversa ou discussões em grupo.

[13] Escola de formação política fundada pelo MLI.

10 COMENTÁRIOS

  1. Saber que nossa luta animou e provocou companheiros a agir em terras tão distantes daqui, impulsionando uma luta dos trabalhadores como essa, renova nossas forças pra lutar no Brasil.

    Lembrei de uma experiência mexicana que talvez merecesse ser conhecida pelos compas de Guiné-Bissau. A Rede Nacional de Resistência Civil contra as Altas Tarifas de Energia Elétrica surgiu a partir da articulação de diversas comunidades que, em muitos casos, resistiam isoladas há anos recusando-se a pagar pela eletricidade. Os preços altos estão diretamente ligados à crescente privatização do sistema elétrico mexicano e atingiram níveis simplesmente impossíveis de pagar para famílias rurais. Assim, em diversos lugares, de forma mais ou menos organizada, as pessoas simplesmente deixaram de pagar a conta a partir dos anos 90. Quando funcionários vinham cortar a luz, a comunidade se juntava e os botava pra correr.

    Em meados da década de 2000, o EZLN (Exército Zapatista de Liberação Nacional), que percorria o país com a chamada Outra Campanha, deu um ponta pé na articulação dessas lutas, presentes em várias regiões, e nasceu a Rede de Resistência. As comunidades ganharam força para combater a repressão estatal contra sua recusa a pagar pela luz e passaram a trocar experiências. Foram organizados cursos de eletricistas, capacitando responsáveis escolhidos em cada comunidade para fazer as ligações elétricas entre cada casa e, o mais complexo, com a rede de alta tensão.

    Hoje, existem pequenos sistemas elétricos (parciais) autogeridos. As assembleias locais e regionais do movimento definem uma tarifa mínima que é paga por cada usuário para cobrir as despesas com manutenção e deslocamentos para jornadas nacionais de protestos por um sistema elétrico público. Os transformadores, grandes e caros, que permitem ligar a rede das casas ao sistema de distribuição são a principal dificuldade – no estado de Chiapas, houve alguns expropriados de instalações militares pelo povo! E já se está começando a discutir a possibilidade de gerar eletricidade autonomamente…

    Enfim segue abaixo um artigo (que encontrei agora, então ainda não pude ler) sobre o assunto e um comunicado do movimento. Parece que no estado de Oaxaca estão começando a ser instaladas redes de celulares autônomas, que tornam possível tarifas irrisórias (inclusive para os EUA, onde muitos tem parentes, utilizando provedores de chamadas pela internet), em comunidades cuja cobertura não é lucrativa para as grandes operadoras… mas isso já é outra história.

    http://www.cetri.be/spip.php?article1000&lang=fr

    http://www.cetri.be/spip.php?article1001&lang=fr

    http://zapateando.wordpress.com/2011/11/08/nos-manifestamos-en-contra-de-todas-las-formas-de-privatizacion-de-la-energia-electrica-encuentro-de-la-red-nacional-de-resistencia-civil-contra-las-altas-tarifas-de-la-energia-electrica/

  2. Olá o pessoal sou elemento de movimento luz ku iagu agradeço a colaboração de todas as pessoas no sentido de nos apoiar nas meio financeiro e não só como também em termo de ideias para nos encorajar,pois precisamos de contribuição de todas em qualquer que seja.

  3. Muito frequentemente, o Brasil tem sido um bom exemplo para coisas ruins e um mau exemplo para coisas boas. É claro, no entanto, que nem sempre é assim – e nem sempre foi assim. Já lá se vão quase quarenta anos desde que Paulo Freire publicou, em livro, as suas “Cartas à Guiné-Bissau”, dando testemunho de sua intensa relação com aquele então jovem país, onde ele atuou nos anos 1970 (a propósito: me pergunto se não teria sido interessante e justo mencionar Paulo Freire, ainda que de passagem, na seção “Uma escola libertária em Bissau”).

    No que se refere às Jornadas de Junho brasileiras, o artigo parece ilustrar o fato de que mesmo um movimento ou onda de protestos com evidentes contradições pode, em sentido emancipatório, influenciar e inspirar outras realidades. É claro que, olhando à nossa volta, várias “lições de casa” ainda estão para ser adequadamente feitas, e aquilo de positivo que se pode extrair do que aqui ocorreu e vem ocorrendo possui sérios limites. Mas é muito bom ver que, para além do interesse chapa-branca em coisas como “orçamento participativo” e “Estatuto da Cidade”, também alguns aspectos das lutas urbanas anticapitalistas despertam genuína curiosidade em outros lugares.

  4. Caro Leonardo,
    Vou imprimir o seu comentário e entregá-lo aos membros do MLI para discussão. As sugestões chegam num momento oportuno. Quecuto, que tal me ajudar nessa tarefa? Falamo-nos amanhã.

    Caro Marcelo,
    O seu comentário me leva a complementar o artigo com o seguinte: as lutas do Brasil serviram realmente como estímulo inicial. Porém, as atividades de formação teórica foram fundamentais. A possibilidade de mudança da própria realidade sem recorrer aos concorridíssimos editais da cooperação internacional, sem elaborar projetos (!), e sem pedir doações a políticos, os motiva muito. Para mim, o MLI tem mostrado a importância de encetar, desde a etapa inicial da organização, o debate sobre autogestão, democracia direta, ação direta e autonomia. Sim, as atividades práticas e de resultado imediato são importantes para mobilizar as comunidades, mas se o MLI não promover essas mesmas reflexões teóricas sobre os modelos de organização nos “núcleos de bairros”, esses vão se tornar rapidamente em associações de três pessoas: presidente, vice-presidente e tesoureiro. E a comunidade volta para casa. Nesses dois anos e meio que estou por aqui, vi isso acontecer algumas vezes. E não é diferente do Brasil, não é verdade?

    Pensei em fazer referência à experiência de Paulo Freire na Guiné-Bissau. Mas não quis ser superficial nem estender muito um artigo sobre um movimento por luz e água. A experiência de Freire foi complexa e, a meu ver, profundamente contraditória com o ideal de “emancipação” apregoado pela sua pedagogia. Estou refletindo sobre a estrutura de um texto que possa expor essa crítica. Adianto-lhe que Paulo Freire é completamente desconhecido na Guiné e nunca viveu aqui. Esteve em missões esporádicas (entre 1975-77) a convite do Comissariado de Educação da Guiné-Bissau. Durante este período, ele trabalhou perfilado ao ideal nacionalista imposto pelo autoritário Estado-partido guineense. E o pior, sem esboço de crítica à ideologia oficial do Estado, que servia exclusivamente à ascensão de uma nova elite sob o véu da “reconstrução nacional”. A narrativa da sua experiência, e até mesmo o vocabulário usado por Freire, denotam um idealismo em relação ao PAIGC e ao seu “projeto de nação” não justificável face ao crescente autoritarismo do Estado-partido. Além disso, era de se esperar que um pedagogo marxista problematizasse a complexa estrutura social guineense e as implicações da ascensão da pequena burguesia no pós-independência. Paulo Freire, entretanto, em lugar da análise, recorre ao discurso laudatório aos líderes da “liberação nacional”. Não reconheço o Paulo Freire das “Cartas à Guiné-Bissau”. Caberia escrever um “Cartas à Paulo Freire”.

  5. Caro Vavá:

    Pelo pouco que conheço sobre o tema “Paulo Freire/Guiné-Bissau”, tendo a concordar com o seu segundo comentário (inclusive acho válido o argumento de não querer se expressar superficialmente sobre um assunto e não poder desenvolvê-lo, se bem que este é um risco que muito frequentemente somos obrigados a correr, e que estimula o nosso poder de síntese). Do livro de Paulo (publicado, no Brasil, pela Paz e Terra, mas disponível na Internet), ficou-me uma dupla impressão: 1) um entusiasmo (e um vocabulário) típicos dele e da época, e compreensíveis (e parcialmente desculpáveis) nesse contexto – note-se o tom respeitoso, fraternal e “camarada” das cartas aos líderes do país; 2) uma personalidade sempre amorosa, quase sempre suave e sensível, que, na ânsia sobretudo de entender, tentava professar uma humildade de quem procura colaborar sem julgar. Mesmo assim, a última das cartas, em particular, já demonstra certas preocupações, que ele, no estilo muito cordial que lhe era característico, tentou externar de modo muito diplomático.

    Sem dúvida, é possível, de um ponto de vista libertário, ver “fraquezas” no personagem em questão, desde a sua ligação com o catolicismo (ainda que “de esquerda”) até o “terceiro-mundismo” (que, nos anos 60 e 70, era mais desculpável que hoje, sobretudo a partir de uma perspectiva do “Sul”, que às vezes se arriscava a fechar um dos olhos – caso de Paulo – ou os dois olhos ao surgimento de novas elites etc.). No entanto, e a despeito dessas contradições, creio que se trata, ainda, de um pensador que deixou um legado humanístico e emancipatório muito importante. Tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente e de almoçar em sua casa, alguns anos antes de ele morrer. Era uma pessoa humilde, apesar de suas ideias e convicções fortes; e não parecia esforçar-se para não viver em contradição com o que defendia: me pareceu e parece que, de fato, havia, em sua vida, muita coerência. Contudo, as escolhas que fez e as cooperações que estabeleceu, sem dúvida podem incomodar (em alguns casos mais que em outros). Mas talvez até isso sirva como lição, vale dizer, como algo de que se extrair ensinamentos. Algo me diz que Paulo Freire seria o primeiro a aceitar conversar construtivamente (e como ouvinte atento e humilde) sobre nossas ressalvas.

  6. Caro Marcelo,

    Em geral, concordo com as suas colocações e ressalvas, sobretudo no que dizem respeito ao “legado humanístico e emancipatório” deixado por P. Freire. Abraço

  7. Moro Dabo membro de movimento luz ku iagu em Guine Bissau agradeço a todos companheiros da luta no Brasil pelo gesto de apoio que estão dados peço desculpa há muito tempo não escrevemos por falta de meios de acesso a intermete. Estamos com braços abertos a receber quais queres apoios a reabilitação da escola seja financeiro ou técnico. Ontem na assembleia do movimento agradecemos ao passa palavra pelo grande apoio .

  8. Estou sem palavra, vocês são verdadeiros Combatentes que luta para que vida do homem seja melhor no mundo. Que estou longe, eu lembro da primeira assembléia quando estava em Bissau. Estamos juntos. Força, coragem e determinação.

  9. Que trabalho esse de vocês!!!! Parabéns!!!! Sou brasileiro e estou fazendo o mestrado. Como amo África e o povo africano, resolvi pesquisar a literatura da Guiné-Bissau. Estive em Bissau em janeiro/2016 e tudo o que vocês relatam no Passa Palavra é verdade. Vi e vivenciei isso aí. Vamos em frente, segundo a garra, a força e a meta de A. Cabral!!!!!!

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