«Nós, zapatistas, não apoiamos o pacifismo que se ergue para que seja outro a colocar a outra face, nem a violência que se alenta quando são outros a colocar os mortos.» Por Alexander M. Hilsenbeck [1]

O Exército Zapatista de Libertação Nacional se caracteriza como antípoda das clássicas experiências guerrilheiras. Com enorme capacidade de autocrítica e de reconstrução, esse movimento foi responsável por uma crítica vigorosa ao sistema dominante vigente e, ao mesmo tempo, por uma revisão – no melhor sentido deste termo – da própria esquerda, de suas práticas e de suas concepções, gerando um intenso debate em relação ao papel ocupado pelo Estado, pela «sociedade civil», pela via armada, pelos partidos políticos, na construção de uma alternativa ao capitalismo a partir de baixo e à esquerda.

Um dos campos de inovação das experiências zapatistas, que suscitou vivo debate, tem sido quanto ao papel da comunicação no conflito.

Seria esta uma guerra feita de papel e bits ou de fuzil?

Na bibliografia referente ao EZLN é comum haver uma polarização entre estes dois aspectos: de um lado, estudiosos defendendo a substituição gradual de uma guerra armada por um conflito eletrônico, de palavras, símbolos e legitimidades; de outro lado, teóricos ressaltando a efemeridade destas práticas e recolocando a pura materialidade bélica do conflito.

A Guerrilha Midiática

Uma das grandes conquistas do zapatismo foi conseguir se impor, em um reduzido período de tempo, como força política de oposição com a qual se fez necessário o diálogo. Fizeram-se ouvir, e em menos de duas semanas o EZLN já havia se colocado como referência indispensável no debate político mexicano e para diversas pessoas e movimentos em grande parte do mundo.

Na busca por credibilidade e legitimidade, logo nos primeiros momentos do conflito, verificou-se que o governo começava a perder a batalha no campo da política de comunicação. As declarações oficiais variavam com o prolongar dos dias. Primeiramente, insistiu-se na idéia de que o zapatismo era dirigido por pessoas «brancas» e «estrangeiras», que manipulavam as populações indígenas, restringindo o movimento a poucos municípios. Em seguida, passou-se pela versão de serem apenas 200 insurgentes indígenas, modificando posteriormente para forças paramilitares que contavam com a cumplicidade da Igreja Católica através da Teologia da Libertação. Depois se informou que era uma organização de mais de dois mil homens e mulheres treinados por conspiradores estrangeiros e profissionais da violência, para, finalmente, chegar-se ao reconhecimento de um exército beligerante de algumas comunidades indígenas de Chiapas.

A forma inesperada do início do conflito não deu tempo suficiente para que os meios de comunicação homogeneizassem as declarações e informações. Acrescente-se, ainda, o fato de os zapatistas, na figura do chefe militar e porta-voz Subcomandante Marcos, escreverem compulsivamente comunicados, e de estes estarem disponíveis na Internet e serem reproduzidos pelos poucos canais alternativos de comunicação, o que favoreceu muito a difusão dos ideais, comunicados e o subseqüente desenrolar da situação chiapaneca, pois neutralizou, em grande medida, a política de contra-informação governamental. Foram diversos os endereços na Internet de grupos de discussão, análise, divulgação e solidariedade ao movimento zapatista.

A situação para o Governo federal se complicou ainda mais quando, pouco após o primeiro cessar-fogo, o presidente “ofereceu” o perdão e a anistia aos insurgentes que depusessem as armas. O que deveria ser passado para a opinião pública como uma atitude de sensibilidade por parte do governo, ante os reclamos indígenas e uma disposição ao diálogo democrático, apenas reforçou os porquês da luta zapatista com a resposta do Subcomandante, em um texto (enviado para diversos jornais e semanários) intitulado ¿De qué nos van a perdonar?. Em cada pergunta-resposta Marcos levava à ruína a figura de sensibilidade e democracia que os assessores de imagem do governo tentavam construir:

“[…] Do que temos de pedir perdão? Do que vão nos perdoar? De não morrer de fome? De não calar diante da nossa miséria? De não ter aceitado humildemente a gigantesca carga histórica de desprezo e abandono? De levantarmos em armas quando encontramos fechados os outros caminhos? […] De ter demonstrado ao resto do país e ao mundo inteiro que a dignidade humana ainda vive e está em seus habitantes mais pobres? De termos consciência da necessidade de uma boa preparação antes de iniciar a luta? De ter ido ao combate armados de fuzis no lugar de arcos e flechas? De ter aprendido a lutar antes de insurgirmo-nos? […] De lutar por liberdade, democracia e justiça? De não seguir os modelos das guerrilhas anteriores? De não nos render? De não nos vender? De não nos trair? Quem tem de pedir perdão e quem pode outorgá-lo? Os que, por longos anos, saciavam sua fome sentados a uma mesa farta enquanto nós sentávamos ao lado da morte, tão quotidiana e tão nossa que aprendemos a não ter medo dela? […] Os nossos mortos, que são a maioria, que morreram, democraticamente, entre os sofrimentos, já que ninguém nunca fez nada, porque todos os mortos, nossos mortos, partiam, de repente, sem que ninguém se desse conta, sem que ninguém dissesse, finalmente, o “basta!”, que devolvesse o sentido a essas mortes, sem que ninguém pedisse aos mortos de sempre, aos nossos mortos, que regressassem para morrer outra vez, mas agora para viver? […] Quem deve pedir perdão e quem pode outorgá-lo?”

Ocorreu, logo nos primeiros dias do conflito entre o EZLN e o Governo, uma guerra travada não apenas com força militar e com fuzis, mas com palavras e símbolos, em busca dos “corações e mentes” da população, de reconhecimento por legitimidade.

Na cronologia do EZLN se expressa uma característica bastante singular, pois de novembro de 1984 a dezembro de 1993 se deu a implementação da guerrilha em Chiapas e a preparação para o conflito armado; porém, a luta armada direta ocorreu apenas de 1 a 12 de janeiro de 1994; e daí em diante até os dias atuais, com pequenos interstícios, trava-se uma luta política em situação de “paz armada”, ou guerra de baixa intensidade [2]. Nos primeiros dias de conflito a arma mais potente do EZLN foi o poder pessoal comunicativo do Subcomandante Marcos, e na busca de caminhos pacíficos para a solução do conflito, os zapatistas inverteram a máxima de Karl von Clausewitz de que a guerra é a continuação da política por outros meios. Os zapatistas armados exigiram que os escutassem, para o EZLN a política seria a continuação da guerra.

A partir daí, eles utilizarão cada vez mais o espectro midiático como forma de confronto com o Governo. Mas, cabem algumas considerações sobre essa face da política do EZLN.

Concretude da guerra midiática

O fato de ao longo desses 15 anos serem raros os confrontos armados se deve a algumas razões em especial, como, por exemplo, a reação da «sociedade civil» mexicana e internacional, posicionando-se contra uma espiral da violência; as aspirações do então presidente; a incerteza do Exército mexicano no real poder bélico e de mobilização do EZLN em outras partes do país e a própria inferioridade militar dos zapatistas em relação ao Exército federal.

Uma outra razão, que se apresentará a partir do cessar-fogo de 12 de janeiro de 1994, e irá se desenvolver ao longo do tempo como uma forma de ação política do zapatismo, está na concepção do movimento de estratégia de intervenção na sociedade, com vistas a sua auto-organização, e na sua visão de mudança revolucionária, que será o produto de uma combinatória de diversas formas de luta e agentes, em variadas direções, e não de uma maneira unilateral de mudança social – só a via armada ou somente a via pacífica-política –, como afirma o Subcomandante Marcos:

“Nós pensamos que a transformação revolucionária no México não será produto da ação em um único sentido. Isto é, não será, em sentido restrito, uma revolução armada ou uma revolução pacífica. Será, primordialmente, uma revolução que resulte da luta em variadas frentes sociais, com muitos métodos, sob diferentes formas sociais, com graus diversos de compromisso e de participação.”

No caso mexicano as circunstâncias históricas mostravam a fragilidade do Estado, não em sua situação militar, mas no campo político, o que os zapatistas perceberam dias após o início da insurreição. A partir de então, o EZLN passou a considerar a «sociedade civil» e a mídia como interlocutores políticos com papel privilegiado, observando nos meios de comunicação outro caminho a ser seguido, o que leva alguns autores (como Rubim e Castells) a sustentarem a idéia de que, em decorrência da fragilidade militar do EZLN, ele busca constantemente na luta política a destruição político-simbólica da legitimidade estatal.

A instantaneidade na publicização dos conflitos, possibilitada pelas tecnologias midiáticas, transformou-se em uma estratégia e em um importante elemento tático nesta guerra. A desterritorialização inscrita na mídia, por sua vez, permite que o Subcomandante Marcos, com o EZLN cercado nas montanhas de Chiapas, esteja presente no Zócalo, no centro da Cidade do México, em um imenso telão, rompendo, assim, o cerco militar efetuado pelo Exército, transformando o espaço virtual em uma das arenas essenciais da luta política na atualidade.

Mas o diálogo entre a «sociedade civil» e o EZLN não deve ser entendido simplesmente como ação de pressão contra o governo. Ainda que este elemento seja verdadeiro, esta relação com a «sociedade civil» se constitui mais como forma de ação política do movimento relacionada com suas propostas e valores, iniciada após os primeiros dias do conflito e que passará a ser, cada vez mais, uma das marcas do seu vasto campo de atuação política, como consultas, diálogos, marchas, encontros, manifestações, convocatórias, para conscientizar, mobilizar e fazer participar a população com vistas à constituição de uma força social anti-sistêmica.

A preocupação de ocupar um espaço nos meios de informação para difundir as causas, os ideais, as denúncias e as mensagens do movimento zapatista para o resto do mundo esteve presente desde o início do conflito [3] . O Comitê Clandestino Revolucionário Indígena – Comando Geral (CCRI-CG), órgão máximo de deliberação zapatista, encarregou o Subcomandante Marcos de escrever os comunicados [4] , pois, em sua concepção, é preciso «[…] que digamos nossa palavra e que os outros a escutem. Se não o fizermos já, outros tomarão nossa voz e a mentira, sem a gente querer, sairá da nossa boca».

Uma questão relevante é que a difusão de comunicados e análises da situação de conflito em Chiapas, pela Internet, se deu por simpatizantes do zapatismo que procuravam informações e quiseram denunciar as atitudes do Exército mexicano, além de divulgar as idéias do EZLN, numa época em que a rede mundial de computadores começava a ser utilizada pela população civil. Sobre este ponto é interessante constatar que não são os zapatistas no interior da floresta, com um computador na mão, que constroem e alimentam os sites na Internet. Na verdade são «mensageiros» do EZLN, indígenas que conhecem muito bem a região, que levam os comunicados e discursos através das trilhas, para burlar o cerco do Exército, para jornais, centros de mídia, revistas e outros canais independentes de comunicação. Ainda que estejam proliferando centros de comunicação nos Caracóis zapatistas. Neste sentido, é importante perceber que a luta midiática se baseia numa infra-estrutura clandestina de contatos humanos e políticos, até ser convertida em bits eletrônicos na rede mundial de computadores.

Temos então uma característica bastante acentuada do movimento e talvez um dos traços fundamentais de sua experiência política, que é o fato de utilizar os avanços tecnológicos dos meios de comunicação para realizar um «conflito comunicativo e midiático», ultrapassando fronteiras e estendendo seu alcance político ao redor do globo. Conseguiram, com isso, atuar de forma eficiente contra o capitalismo, agindo no local, no nacional e no transnacional, sendo que essas escalas se inter-relacionam, articulando os distintos objetivos de luta, como, por exemplo, a busca por autonomia e direitos indígenas, a libertação nacional e o fim do capitalismo.

A utilização da Internet e o volume de informações produzidas e transmitidas são também responsáveis por fazer o EZLN escapar à tradicional (e muitas vezes velada) censura dos meios de comunicação, favorecendo o elemento surpresa e a escolha do momento para sua ação política (como a data definida para o início do conflito). A partir dos recursos tecnológicos comunicacionais, foram criadas redes de difusão e solidariedade que são tecidas e alimentadas constantemente por ativistas, movimentos sociais alternativos e simpatizantes do EZLN em todo o mundo, que, como sustenta Ortiz, cumprem «[…] um papel fundamental na guerra contra a desinformação e articulam agora muitos outros movimentos sociais ao redor do mundo numa espécie de Rede Intercontinental de Comunicação Alternativa».

A estética, a linguagem e a literatura como opção política

Porém, como salienta Rubim, «A atuação midiática não convencional também tem sua responsabilidade pelo acesso e presença deles nas imagens, sons e páginas da mídia». Dentre estas atuações mais marcantes estão os contatos diretos com personalidades e intelectuais, a forma de linguagem e as criações literárias e, obviamente, a sua expressão estética, como os passamontanhas e os paliacates e mesmo a controvertida e polêmica figura do Subcomandante.

Outras criações ainda fazem parte do repertório imaginário e simbólico zapatista, como sua particular e nada ortodoxa forma de comunicação e escrita dos comunicados. Neles se mesclam, numa forma de escrita bastante singular, elementos da linguagem e cultura indígenas, da tradição socialista clássica, das atuais demandas por direitos humanos, democracia e direito à diferença. Combinam-se narrações do cotidiano das comunidades, citações de Shakespeare, Pablo Neruda, García Lorca e vários estilos literários e formas lingüísticas, variando conforme o objetivo e o interlocutor [5] . Também são diversas as criações de personagens literárias nos comunicados escritos por Marcos, que têm por propósito a decodificação de uma determinada linguagem e uma determinada realidade para outra. Tal fato não apenas resgata e ressignifica aspectos da cultura secular de resistência indígena, mas, principalmente, auxilia na compreensão das táticas e estratégias desenvolvidas pelos zapatistas na condução de suas lutas. Isso permite a publicização de sua política, e ainda realiza algo como uma ponte em que se encontram dois mundos de matriz civilizatória distintas – o ocidental capitalista e o indígena –, mas muito iguais na exploração e na miséria impostas pelo capital.

Esse processo de decodificação de linguagens teve seu início no momento em que os guerrilheiros marxistas urbanos tiveram que se comunicar com as comunidades indígenas, explicar-lhes análises políticas, conceitos como «luta de classes», «ditadura do proletariado», «sistema produtivo», de uma maneira que fosse compreensível para eles e não se tornasse um novo dogmatismo ou uma nova catequese. Os indígenas passaram então a depurar essas informações a partir de outros referenciais e símbolos, as transformaram, as enriqueceram com outros elementos, construindo uma rica síntese dialética entre essas duas vertentes.

Desta mescla criativa, recorreu-se a contos e personagens literários para produzir o processo inverso, de tradução do mundo indígena para o Ocidente, visando «[…] explicar através do coração as idéias que eram destinadas à cabeça», sem cair nos mesmos erros, fazendo com que a teoria fosse intuída e refletida a partir das experiências vivenciadas.

Esta linguagem sincrética, prenhe de tradição, tem por intuito reforçar a auto-estima indígena e legitimar a guerrilha através da criação de uma cultura política zapatista e da reinvenção da história mexicana. Essa linguagem torna-se nova ao romper com as tradições referentes a uma esquerda «estadista», distinguindo o zapatismo também da retórica política tradicional. Desta maneira, lemas como «para todos tudo, nada para nós» e «mandar obedecendo» atingem o cerne de problemas ético-político atuais, como a representação e a corrupção. Logo, através dessa «pluralidade» no discurso, os zapatistas «rompem» com uma linguagem de esquerda mais «sisuda» e rígida, e a transformam em um discurso recheado de mitos e lendas, de histórias e poesia.

Certas expressões utilizadas pelos zapatistas funcionam como forte elemento de unificação e criam valores. O EZLN parece perceber que há uma diferença de grau entre o discurso clássico da teoria comunista, socialista e/ou anarquista e os «sentimentos coletivos» atuais. Parece-nos que os zapatistas conseguem se apropriar de uma linguagem comum e popular, alicerçada nas experiências de vida, e ressignificá-la, dando-lhe um conteúdo mais radical. É a partir desse prisma, a partir de sua utilização prática no cotidiano, que devem ser lidas certas expressões do EZLN, que podem chegar mais eficazmente aos «corações» e «mentes» da população e dar a estas categorias uma radicalidade que está ausente em sua apropriação pelas classes dominantes. Dessa forma, democracia, sociedade civil, dignidade, liberdade e justiça ganham um novo significado. O zapatismo abre a disputa sobre conteúdos e definições de conceitos universais a partir da perspectiva de quem define e para quem se define; assim, as «mesmas» representações podem ser percebidas de forma distinta: da perspectiva «de cima», das classes dominantes, e da de «baixo», o que transforma esses conteúdos e representações em lugares de luta social dentro da hegemonia dominante [6] . Em sua linguagem e discurso, eles realizam uma reinterpretação da história, de figuras e símbolos, bem como a destruição de uma determinada definição ideológica, com vistas a traduzi-las em outros códigos e símbolos políticos, mais eficientes e condizentes com sua proposta e que podem ser mais bem interpretados no sentido de uma mobilização e organização almejada. Ou seja, eles realizam uma reconstrução histórica conceitual a partir de sua palavra e de seu discurso, que estão vinculados intimamente com suas práticas.

Ao dizer que o EZLN é um movimento voltado mais à ação do que à teorização, e que as declarações e comunicados do zapatismo estão orientados à ação, não pretendemos afirmar que a teoria e a prática se separam na concepção e ação zapatistas, mas sim salientar que os insurgentes chiapanecos privilegiam o segundo elemento, pondo a teoria a serviço da prática. Na verdade, melhor seria dizer que para o zapatismo o decisivo se encontra não tanto no discurso, mas na própria práxis política concreta, que entra em concordância com o discurso. Isso denota uma dimensão ética de verdade que contrasta imediatamente com os discursos e os atos do poder político institucional, identificados cada vez mais com a mentira ou com a «política do possível». Logo, suas declarações e seus comunicados só obtêm o real relevo e significado quando colocados em sintonia com as próprias ações a que se referem e com a conjuntura histórica em que foram construídos.

Através dessas práticas o zapatismo inventa formas de participação que fazem com que suas ações midiáticas não se esgotem enquanto meros efeitos de mídia momentâneos, mas desencadeiem processos sócio-políticos mais duradouros, que perpassam a sociabilidade dos sujeitos envolvidos. Neste sentido, deve-se entender o aspecto simbólico das «ações midiáticas» do EZLN a partir do contexto que lhes deu origem, para que sejamos capazes de compreender seus objetivos em determinada conjuntura e para que desmistifiquemos alguns elementos típicos da comunicação.

Trata-se de uma linguagem que rompe com as tradições de uma esquerda que esquecia, ou relegava a uma posição secundária, as liberdades sociais. O EZLN enfatiza e remete, em seu discurso, aos homossexuais, à liberdade das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos trabalhadores, enfim, a «todos aqueles que têm a pobreza como presente e a dignidade como futuro», ou seja, as «minorias subordinadas» que enchem os porões do mundo e que na verdade se constituem como a maioria de oprimidos e explorados desse sistema social. Neste quesito, os zapatistas parecem apreender a heterogeneidade e as particularidades nas quais se constitui a classe trabalhadora, isto é, as diferentes naturezas com que o capital divide e subdivide a exploração da classe trabalhadora. A partir disso, se torna possível a reapropriação do conceito de identidade, não significando fragmentação e mantendo a centralidade classista.

Essa linguagem sincrética, ao mesmo tempo em que procura uma identificação nas figuras políticas revolucionárias do México como Emiliano Zapata, deita raízes na mitologia da cultura Maia; não se limita ao ato de comunicar, mas busca a construção de algo mais. Cria novos mecanismos de participação popular para a tomada de decisões políticas, invoca relações dialógicas nas políticas comunicacionais, entendendo os indivíduos não como meros receptores de informação, mas como sujeitos políticos, resultando na criação de uma extensa e atuante rede internacional de solidariedade, articulada principalmente pela Internet, mas não apenas nela, com capacidade de mobilizar diversas organizações ao redor do globo e milhares de pessoas, primordialmente nos momentos mais críticos do conflito. O EZLN realiza um manejo moderno da comunicação, em sua substância (texto e imagem) bem como em seus vetores (imprensa, vídeo, Internet), inaugurando uma disputa pelo discurso dentro e por meio do próprio discurso, diferenciando-se da lógica puramente militar e também da forma de propaganda tradicional das esquerdas.

Eles inovam, portanto, na linguagem e mesmo no silêncio, mas também nos métodos e nos objetivos da luta, buscando novas formas de se fazer política, mais orgânicas e ativas. Não nos esqueçamos de que em Chiapas (e no México), potencializado pelo conflito comunicacional, há concomitantemente um conflito de sentidos, que abarca o nível cultural e a própria concepção da sociedade de uma maneira simbólica.

O EZLN conseguiu transformar ações puramente locais em fatos globais, obtendo um poder de resposta supranacional em face do modelo capitalista, que também atua de forma global e em rede. Por meio dessas experiências, tem crescido sistematicamente, nos últimos anos, o número de movimentos sociais de contestação que utilizam os avanços tecnológicos dos meios de comunicação, como as redes eletrônicas, para compartilhar informações, discutir estratégias, táticas e como meio de organização (geralmente descentralizado) para mobilizações políticas globais. Talvez essa forma de política esteja ainda em sua fase embrionária, porém, já aponta alguns elementos a serem pensados pelos movimentos de esquerda com vias à organização da luta, como o demonstrado em Oaxaca pela APPO.

A política no mundo encantado da mídia e da comunicação

Por todos esses motivos, o zapatismo tem uma presença na mídia em patamares tais que não encontra paralelo com outros movimentos armados na América Latina nos últimos tempos. Da experiência de realizar esta política comunicativa e midiática derivou uma característica atribuída por diversos autores ao zapatismo: a de ser o primeiro movimento de “guerrilha informacional”, por incorporar a utilização dos avanços tecnológicos dos meios de comunicação em sua estratégia e forma de fazer política.

Porém, esta peculiaridade ou inovação implementada pelos zapatistas tem levado a interpretações um tanto quanto exageradas, dando ênfase não a relação material da guerrilha, mas a certa relação fetichizada de uma estratégia do EZLN. Em outros termos, passou-se a minimizar, e mesmo a esquecer, a luta armada, real, travada pelo EZLN nas montanhas de Chiapas, substituindo-a por uma «guerra de papel», por uma guerra puramente informacional e comunicativa ou, pelo contrário, levando a uma negação das potencialidades propiciadas por esses recursos, relegando a certo ostracismo essas experiências. Nas palavras de Manuel Castells: «[…] a guerra real não fazia parte de sua estratégia». Para Mássimo Di Felice , esta «deslocação» se daria na mudança do conflito armado para o comunicativo: «Uma vez que o objetivo não é mais a tomada do poder, a confrontação desloca-se para outros níveis recusando o conflito direto e armado e buscando novas formas de ação inéditas e comunicativas» que se dariam através de «[…] uma nova forma de conflitualidade transnacional através dos fluxos comunicativos». Esta nova forma de conflitualidade social, baseando-se numa leitura das Zonas Autônomas Temporárias de Hakim Bey, poderia se deslocar no espaço, variando as formas de atuação em que «atores e sujeitos novos multiplicam-se intervindo diretamente no conflito». Di Felice e Brige se referem à atuação direta por parte da «sociedade civil» que passa a se sentir e a fazer, de certa forma, parte do movimento. Para eles:

«Nesse sentido, os zapatistas configuram-se como uma força transnacional, sem representantes nem porta-vozes, sem líderes nem hierarquias. As armas e as ‘áreas libertadas’ substituem a comunicação eletrônica e o ‘conflito sem lugares’. Transferindo o conflito para o ambiente dos bits eletrônicos, lugar privilegiado da reprodução do capital internacional, os zapatistas fazem da linguagem sincrética e das “palavras eletrônicas andantes” as suas armas principais.»

Parecem-nos um tanto excessivas certas afirmações que, além de darem ênfase à parte comunicacional, correm o risco de «desterritorializar» o movimento, obscurecendo o seu trabalho organizacional. Em primeiro lugar, acaba ocorrendo uma visão fetichizada da política do EZLN, na medida em que o capital e as relações sociais não se reproduzem no ambiente eletrônico, dando-se então grande importância às relações informacionais em detrimento das relações das forças produtivas, dos meios de produção. Vide o artigo O neozapatismo e os velhos meios de produção .

Também é preciso considerar que houve a compreensão, em um primeiro momento, por parte da guerrilha urbana, e sobretudo das comunidades indígenas, da necessidade do levante armado como uma maneira de colocarem suas demandas e exigências – visto que, segundo eles, encontraram fechadas todas as outras alternativas – e de resistirem à pressão militar e de grupos paramilitares, financiados, principalmente, pelos grandes latifundiários e pelo próprio governo.

Se em determinado momento o movimento zapatista definiu como estratégia o não confronto militar direto com o Exército, isto se deve a certas peculiaridades e desenvolvimentos no decorrer da luta, como a correlação desigual de forças no campo militar e a abertura de novas possibilidades graças ao contato e ao diálogo com a «sociedade civil». Dificilmente se pode escolher o tipo de guerra ou confronto a travar (a não ser que sua superioridade seja incomensurável) e devemos reconhecer que o tipo de conflito travado em Chiapas é «imposto», também, em decorrência das relações gerais de forças sociais em oposição (políticas e militares). Portanto, a atual configuração do estágio do conflito não foi uma escolha deliberada e plenamente consciente do governo ou dos zapatistas, mas (co)responde antes a uma série de fatores e circunstâncias.

A palavra armada

Em nenhum momento o EZLN realmente abandonou suas armas – nem o nome de Exército –, sendo elas de fundamental importância para a resistência do movimento, pois, como ressaltamos, vive-se em Chiapas uma situação de «paz armada», ou «guerra de baixa intensidade». Não obstante, compreende-se que a luta armada não é um fim em si mesmo, mas um dos elementos que constituem o complexo movimento zapatista. A não predominância da atuação militar nesse momento segue uma linha estratégica do movimento, conforme sublinhou Marcos nos anos iniciais do conflito:

“[…] o EZLN é uma organização política, político-militar, mas, antes de mais nada, política. Neste sentido, o EZLN se expandiu muito além do que eles [o exército] pensam e se não faz ações militares não é porque não tenha força e sim porque não é a sua aposta atual. O momento militar já aconteceu, agora é o momento da política, e estamos nele. Não podemos brincar com a vida de companheiros para alardear que temos força militar sim. Seria uma irresponsabilidade muito grande.”

O EZLN não nega seu caráter militar, substituindo-o por uma pura «guerra de papel». Em uma carta ao menino Miguel A. Vazquez Valtierra, datada de 06 de março de 1994, Marcos tenta explicar o motivo de os zapatistas pegarem em armas, após o governo os acusar de «profissionais da violência»:

“É verdade, somos profissionais. Mas a nossa profissão é a esperança. Um belo dia decidimos virar soldados para que noutro dia os soldados não sejam mais necessários. […] Por isso somos soldados que querem deixar de ser soldados. Mas para que os soldados não sejam mais necessários é preciso virar soldado e disparar uma certa quantidade de chumbo quente, escrevendo liberdade e justiça para todos, não para alguns, mas para todos, todos os mortos de ontem e de amanhã, os vivos de hoje e de sempre, por todos aqueles que chamamos de povo e pátria, os excluídos, os que nasceram para perder, os sem nome, os sem rosto.

É inegável a estrutura militar do EZLN [7]; entretanto, trata-se de um exército que se propõe deixar de ser exército, que parece acreditar mais «na arma da crítica do que na crítica das armas», isto é, ele não almeja chegar ao poder central do Estado (em sua concepção clássica) e se instaurar como um exército revolucionário. Isso, no seu entender, seria o fracasso do movimento como opção de idéias, de organização e concepção social, que deve conter desde seu primórdio a real participação da comunidade como ator nas tomadas de decisões. Esse é um exército que luta pela autodissolução, pelo seu próprio fim, mas somente quando estiverem postas as condições para uma real modificação social de forma pacífica. Apenas com uma imaginação muito fértil e ademais acrítica, distante da realidade concreta, podemos acreditar que estas condições estão postas atualmente.

É interessante reparar que tanto o governo utiliza o discurso de uma «guerra de papel», como diversos intelectuais localizados no campo progressista definem o zapatismo também a partir de uma guerra de palavras andantes, uma guerrilha puramente informacional, que trava seus conflitos através das redes eletrônicas da Internet.

Em Chiapas não ocorre uma substituição do conflito armado por um conflito eletrônico. A primazia do diálogo e a busca por uma alternativa pacífica para a resolução do conflito atende a uma série de fatores e circunstâncias objetivas, programáticas (e mesmo pragmáticas), próprias do movimento, mas de nenhuma forma exclui, ainda, a resistência armada que mantém o EZLN. Atualmente a força maior dos zapatistas não está depositada em suas armas, em seu poder bélico, mas muito mais em seu poder político e comunicativo e, sobretudo, na capacidade de levar adiante, de maneira autônoma, transformações sociais anti-sistêmicas, em aberta rebeldia contra a ordem instituída, através da retomada dos meios de produção e construção de outra forma de organização social. Por isso a lógica militar adotada pelo governo não surtiu o efeito desejado por ele, de infligir uma derrota decisiva ao EZLN. A superioridade governamental se restringe, pois, em relação à (in)capacidade e poder bélico do zapatistas.

Mas a expressão material armada dos insurgentes não pode ser negligenciada. Apesar do «conflito eletrônico», do «conflito sem lugares», um terço do efetivo militar do Exército mexicano se encontra cercando as comunidades zapatistas em Chiapas (259 posições militares em 2001), pronto para uma possível escalada da repressão e da violência – física e material e não apenas de papel, comunicativa. A miséria, os refugiados, a reprodução da vida nas mais duras condições em face dos helicópteros, tanques e comboios do Exército e dos grupos paramilitares ameaçando ostensivamente as comunidades não podem ser esquecidos ou considerados apenas em seus aspectos poéticos de resistência – por mais poesia que haja em tentar levar adiante a construção de uma vida em moldes outros que o capitalista.

Permanece bastante atual, ainda, as palavras de Marcos, num comunicado, logo nas primeiras semanas do conflito: «Se acharmos uma paz digna, seguiremos o caminho da paz digna. Se acharmos uma guerra digna, empunharemos nossas armas e iremos ao seu encontro. Se acharmos uma vida digna, continuaremos a viver. Se, ao contrário, a dignidade significa morte, então iremos ao seu encontro sem hesitações».

Neste sentido, claramente, nem no México, nem no mundo, há realmente vias abertas para uma paz digna. Assim a “arma da crítica” não pode substituir puramente a «crítica das armas». Não podemos ser ingênuos quanto às reais intenções e formas de resposta do poder governamental, empresarial, dos latifundiários, isto é, das classes dominantes. As modificações sociais, a luta por um mundo mais justo e digno, como querem os zapatistas, não se dará no campo da «racionalidade comunicativa», ainda mais que esse conflito se trava a partir do complexo militar-empresarial-governamental que há séculos utiliza todos os meios – particularmente os mais violentos e atrozes – para perpetuar-se enquanto grupo dominante. Os zapatistas não podem se dar ao luxo de ter como norte somente as ações midiáticas, espetaculares; têm que cotidianamente atentar para a reprodução das próprias condições de vida, nas formas mais duras, dentro das comunidades autônomas em rebeldia. A ausência declarada do conflito não é garantia de paz, e a guerra declarada pelo EZLN não terminou, pois as causas que a provocaram permanecem vigentes.

O Exército Zapatista tem convocado, desde os primeiros meses da insurreição, um movimento nacional democrático, civil e pacífico para que se tornem inúteis suas armas, bem como o próprio Exército Zapatista, mas o espaço democrático mexicano não está consolidado a tal ponto e os ventos «de cima», por diversos motivos – como os recursos naturais e estratégicos de Chiapas, ou a “impertinência” e rebeldia que significam o zapatismo – podem soprar em outro sentido. Até porque do lado do governo nunca houve uma verdadeira opção pelo diálogo, como afirmou recentemente o Comandante David, pela comemoração dos 15 anos do movimento, que desde que se insurgiram para lutar por um mundo melhor e mais humano, os povos indígenas zapatistas começaram a ser mais perseguidos e golpeados em todos os aspectos, pelos governantes, pelos poderosos, pelos partidos políticos e seus aliados, ainda que estes sejam pessoas pobres.

Marcos em sua primeira participação no Festival Mundial da Digna Raiva, convocado pelo EZLN no final de 2008, adverte que seria ingenuidade pensar que tudo o que os zapatistas têm feito teria sido possível sem considerar que o EZLN se deu a conhecer como exército, isto é, com armas. «Na guerra nos conheceram. Em guerra temos nos mantido nestes 15 anos. Em guerra continuaremos até que este canto do mundo chamado México faça seu o seu próprio destino sem armadilhas, sem usurpações, sem simulações».

É certo pois que o zapatismo conduziu sua luta pela via armada, num momento em que, para ele, todas as outras portas se encontravam fechadas. A partir do momento em que se construiu um espaço de diálogo e um mínimo de democracia, os insurgentes preferiram trilhar a via das palavras, numa demonstração de sua intenção pacífica. Desse modo, as formas atuais de luta do zapatismo se centram nas «armas das palavras» bem como na «palavra armada». Certamente houve, no decorrer dos anos e das experiências acumuladas do EZLN, uma reorganização da guerrilha – em relação à luta armada e política – em decorrência de diversos fatores, como a própria mudança de lugares, modalidades e formas de luta. Implica dizer que o EZLN, paulatinamente, vem passando por um processo de mudanças organizativas importantes, que coloca o aspecto militar subordinado ao político e ao democrático. Sem menosprezar o componente militar, à

diferença de uma série de movimentos guerrilheiros anteriores, no zapatismo a luta armada não é um paradigma, um método único, e sim, mais uma entre outras formas tático-estratégicas como o manejo da linguagem e do discurso. Esta forma de luta armada responde a elementos concretos da realidade mexicana, elementos esses que podem se constituir de outra maneira em momentos e realidades distintas; afinal, o próprio zapatismo não pretende totalizar as suas práticas, como apressadamente fazem alguns analistas. O EZLN trava um conflito físico, material, político, simbólico e discursivo e nenhum desses múltiplos espaços de disputa, dentro e fora do México, pode ser enaltecido em detrimento dos outros, sob o risco de não compreendermos o zapatismo em toda a sua complexidade. Às vezes a ação é substituída pela palavra, outras vezes a palavra tem que se calar para dar lugar à ação, mas isso é um movimento dialético do próprio processo histórico. A guerra pela palavra, isto é, pela memória e contra o esquecimento para se tornarem sujeitos ativos de sua história, é diferente de uma guerra de palavras.

Notas:

[1] Este artigo é uma retomada e desenvolvimento, ainda que numa versão revisada e condensada, de tópicos de minha dissertação e de um capítulo de livro intitulado «O Poder da Palavra e a Palavra do Poder: A guerrilha informacional entre o papel e o fuzil» a ser publicado brevemente pela editora da Universidade Estadual de Maringá no livro Teoria e Pesquisa em Ciências Sociais.

[2] Atualmente, segundo os comunicados dos próprios zapatistas e testemunhos de observadores internacionais, vive-se em Chiapas uma situação de «guerra de baixa intensidade», ou seja, o governo ao mesmo tempo em que declara uma situação de paz, envia para o território chiapaneco praticamente um terço do efetivo militar buscando, por um lado, desgastar a imagem do EZLN, minar o apoio das comunidades ao movimento através de uma guerra psicológica, e por outro lado, fazer um cerco à guerrilha. São muitos os casos relatados pela população de invasões do exército às comunidades, com saques, destruição das plantações, prisões e estupros, sempre com a desculpa de estarem ali em decorrência de «treinamento», à procura de grupos paramilitares, plantações de drogas etc. Além disso, o governo busca cooptar as comunidades com diversos programas assistenciais e afirma Gennari que «Além das barreiras da polícia e do Exército, dos interrogatórios, das prisões arbitrárias, das ameaças, das provocações e dos ataques às comunidades, os soldados têm se dedicado a abrir estradas na selva, destruir colheitas, derrubar casas, centros comunitários, postos de saúde, escolas, bibliotecas, enfim, a aniquilar todo o trabalho que o EZLN havia implantado em várias regiões do Estado. Por estes meios, o Exército federal procura sufocar as relações das comunidades com o mundo externo, dificultar ao máximo a vida no seu interior, debilitar e esgotar as bases de apoio zapatistas e criar uma barreira de contenção à possível expansão do EZLN». No comunicado Sentir o vermelho: O calendário e a geografia da guerra, de dezembro de 2007 e disponível em português no livro Nem o centro e nem a periferia – sobre cores, calendários e geografias, Marcos nos fala sobre as possibilidades de uma nova espiral da violência que é sentida pelos zapatistas, através de atos governamentais e paramilitares.

[3] Como a ocupação, nas primeiras horas do levante, dos estúdios da rádio XEOCH, a principal da região, e desde 2003 os zapatistas colocam no ar a Rádio Insurgente, que pode ser acessada por ondas curtas e também via Internet http://www.radioinsurgente.org. A preocupação por uma comunicação democrática esteve presente desde os primeiros contatos de negociação do governo com a guerrilha, através, por exemplo, de uma mesa de diálogo que discutia exatamente a livre comunicação.

[4] Os comunicados do EZLN, segundo Marcos, têm que ser aprovados pelo CCRI-CG, às vezes por sua totalidade, outras vezes por representantes, cabendo ao Subcomandante a redação dos textos, provavelmente pelo fato de falar espanhol e pela sua excepcional qualidade literária. Estes comunicados seguem dois princípios básicos. Um refere-se à percepção do comitê de que é necessário falar sobre algum assunto; então após a discussão dos pontos principais e retirados alguns apontamentos gerais, Marcos redige um comunicado, que é revisado pelo Comitê que tem o direito de tirar ou acrescentar coisas, aprovar ou não o texto. Outro princípio é que com a chegada de informações de distintas partes, ou algum fato em especial, o próprio Marcos escreve um comunicado e o apresenta para o CCRI-CG que discutirá se irá aprová-lo ou rechaçá-lo. Assim, segundo Marcos, «[…] ainda que as circunstâncias contribuam com a aparência de que o Subcomandante Marcos é o ‘cabeça’ ou ‘líder’ da rebelião, e que o CCRI é só ‘cenário’, a autoridade do Comitê é indiscutível nas comunidades e é impossível sustentar uma posição sem o respaldo deste organismo indígena de direção». Atualmente tem sido bastante recorrente a assinatura de comunicados por outros comandantes zapatistas.

[5] Esta forma literária trata-se de um prolongamento da literatura que nasceu no México com o Pedro Páramo, de Juan Rulfo, como reação ao colonialismo cultural, ainda que, usando técnicas européias, mas as fundindo com elementos dos movimentos indígenas, resultando numa fusão do surrealismo e do indigenismo, e que inspirou a borá de Gabriel Garcia Márquez, Augusto Roa Bastos, entre outros. O Subcomandante Marcos soube muito bem retirar efeitos políticos dessa literatura, buscando integrar o moderno e o indígena para além das instituições. Demonstrando que a opção política pode nascer também da literatura, neste sentido, cabe verificar o impacto e potencial das obras literárias-políticas de Marcos numa geração que o está a ler.

[6] Conceitos ou terminologias como democracia, justiça e liberdade na linguagem zapatista não devem ser entend idas como regresso ao séc. XVIII, e sim como um «renascimento» da linguagem política da esquerda, radicalizando esses conceitos e simultaneamente aproximando-os da maioria da população. Essa destruição e recomposição de valores éticos objetivos ou enunciados valorativos (como paz, liberdade e justiça) não se efetuam somente no âmbito temporal; igual mudança sucede conforme sejam utilizados por interlocutores localizados em campos distintos. Logo, paz para os zapatistas significa não apenas a não realização de confronto bélico-militar, mas a conformação de uma sociedade com outros parâmetros de equidade social, acesso à saúde, à alimentação. Ao contrário, no discurso ideológico do governo, paz pode se limitar a não subversão dos «de baixo», à manutenção, sem maiores sobressaltos, da ordem social vigente, mesmo que isso signifique a desnutrição e morte cotidiana de milhares de pessoas. A linguagem (principalmente ideológica) é, pois, extremamente ambígua, por isso a reflexão sobre ela deve se ater sempre às práticas evocadas. Um exemplo da tergiversação de conceitos, símbolos e palavras, convertendo-os em seu contrário, a partir da lógica dos grupos dominantes se dá na aplicação da palavra solidariedade entre os governos dos EUA e da Inglaterra a fim de justificar suas alianças militares.

[7] Na construção de autogovernos democráticos nas comunidades autônomas, desde 2005, segundo o EZLN com o propósito de não se tornar empecilho nesse processo (em decorrência de sua estrutura hierárquica e antidemocrática, típica dos exércitos), ficou a cargo exclusivo da população civil o exercício dos governos.

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8 COMENTÁRIOS

  1. só hoje li o texto com atenção. muito legal alex. já guardei nos meus favoritos pra repassar! gostaria de ler a dissertação toda quanto estiver pronta! ( )s caracolicos,

  2. Karo Amiko,

    Muito bom o texto, foi muito gostoso de ler, me trouxe uma certa memoria de esperança.

    Sorte e força, seguimos na luta.

  3. “Não enganamos ninguém de baixo. Não escondemos que somos um exército, com sua estrutura piramidal, seu centro de comando, suas decisões de cima até em baixo. Não por insinuarmo-nos libertários ou por moda negamos o que somos. Mas qualquer um pode ver agora se o nosso é um exército que suplanta ou impõe. E devo dizer isto, que já pedi autorização do companheiro Subcomandante Insurgente Moisés para fazê-lo: nada do que temos feito, para bem ou para mal, teria sido possível sem um exército armado, o Zapatista de Libertação Nacional, não teríamos nos levantado contra o mal governo exercendo o direito à violência legítima. A violência dos de baixo frente a violência dos de cima”
    Subcomandante Insurgente Galeano, 2014.

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