A Resistência iraquiana não se deixa iludir pelas promessas de Obama. E continuará a lutar até à saída do último soldado estadunidense e à justa indemnização do povo iraquiano pelos danos e os crimes dos EUA.

resistiraquephpA convite do Tribunal-Iraque, esteve em Lisboa o Dr. Abu Mohamad, médico iraquiano exilado na Síria, porta-voz oficial da Frente Nacional da Resistência Iraquiana (FNRI). Num encontro informal com activistas da solidariedade com o Iraque, explicou a evolução da situação politica e militar no terreno e o programa político da Resistência. O Dr. Abu Mohamad usou de forma sistemática a palavra colonização para se referir à ocupação do seu país pela coligação dos EUA.

O Passa Palavra, dada a importância da situação no Iraque e da resistência popular daquele país ao invasor-ocupante, limita-se aqui a transcrever os principais aspectos da intervenção e das respostas de Abu Mohamad às questões que lhe foram colocadas, em que sublinhou que a ocupação não é apenas militar.

“A ocupação é uma colonização”

“Não se tratou apenas de uma colonização militar. Se fosse assim, derrubava Saddam Hussein e saía do Iraque. Sabemos que a presença americana era para um projecto mais alargado, no Iraque, na zona e, se calhar, no mundo inteiro. Por isso destruiu o Estado iraquiano e as cidades iraquianas. Destruiu todas as instituições nacionais, para pôr no [seu] lugar instituições americanas.

“Essas instituições, as políticas sociais, os valores sociais fundamentais que os iraquianos sempre aprenderam – foi tudo mudado. Há uma estratégia para colocar novos valores e éticas na sociedade iraquiana. Foi instalado um governo, um parlamento, para realizarem este projecto. Acordos políticos, leis novas, para garantir os interesses americanos no Iraque.

“Uma das primeiras causas para eles estarem lá é controlarem o petróleo. O Iraque está em cima de um lago de petróleo e tem as maiores reservas mundiais, em primeiro lugar antes da Arábia Saudita.

“Mas não tem só riqueza em petróleo. Tem uma grande riqueza histórica, um valor enorme na história e na origem da civilização humana. Com mais de 7 mil anos de história, foi durante muitos séculos a capital do mundo e as primeiras civilizações nasceram lá.

“Hoje, quem tem o controlo do petróleo tem o controlo da energia básica do mundo que é o pilar da economia. Controlar a economia internacional é controlar o bocadinho de pão que vai haver para toda a gente neste momento.

“É este o primeiro objectivo da América com a colonização do Iraque.”

Resistência desde a primeira hora

A resposta do povo iraquiano a esta ocupação-colonização foi desencadeada desde a primeira hora, sem hesitações. Primeiro consistiu em atrasar o processo de colonização, com a resistência ainda organizada numa multitude de pequenos grupos dispersos. Numa segunda fase, com o esforço de unificação politico-militar desses grupos, foi-se definindo um projecto político próprio da Resistência, com as condições para a retirada dos ocupantes e para o período de transição pós-retirada, assim como o tipo de regime (democrático e laico) a vigorar em seguida.

“Os EUA ficaram paralisados, sem solução, graças à Resistência e às baixas que causou. Os números que vou referir são do Pentágono: há mais de 4.500 soldados mortos e 40.800 feridos. Destes, 3.000 morreram depois e 2.000 ficaram com problemas mentais. Mas os números da Resistência ultrapassam estes, porque o Pentágono não conta com os seguranças privados.

“A Resistência já neutralizou mais de um terço das forças armadas americanas, e causou muitos danos na economia americana, que foram uma das razões que levaram à crise económica mundial que está a causar o desemprego em todo o lado. Os relatórios da administração americana dão conta de que os custos desta guerra chegam a 2 triliões de dólares. Cada hora que passa custa 10 milhões de dólares.”

O que é a Resistência iraquiana?

“A Resistência nacional iraquiana tem um papel enorme nisto tudo, porque conseguiu pôr um travão no projecto de colonização global americano.

resistiraque4php“A Resistência representa todo o povo iraquiano. Não está a lutar contra os americanos por serem americanos. Está a lutar contra os americanos por estarem a colonizar o nosso país. Abrange todas as classes e todas as componentes da sociedade. Há árabes, há curdos, há turcomanos; há muçulmanos, há cristãos. Tem o apoio de 90% do povo iraquiano. Estes dados foram anunciados pela CNN e pela USA Today. Perguntaram aos iraquianos – muçulmanos, xiitas, sunitas, curdos, árabes – e chegaram à conclusão de que os que recusam a colonização americana representam 89% do povo iraquiano.

“A resistência começou com facções divididas – como primeira reacção à colonização do exército americano – que já se começaram a unir para formarem duas frentes de luta.

“A Frente Nacional Islâmica do Iraque, com 36 secções militares e representação dos partidos que estão contra a presença americana, representa a maioria da resistência. Fazem parte dela a maioria dos moderados iraquianos, mesmo os sunitas cristãos. A segunda frente, menos de 10% da resistência, é composta por facções islamistas, com tendência para serem fundamentalistas. O que une a Frente Nacional (que represento) e a Frente Islamista é o objectivo comum: libertar o nosso país.”

Um programa político para um Iraque livre

“A Frente Nacional Iraquiana tem um programa político muito claro. Tanto para a luta pela libertação, como para depois da colonização. A cultura geral dos iraquianos é uma cultura humanista moderada. Suponho que, quando houver eleições depois da partida das tropas, quem vai ganhar vai ser a Frente Nacional porque representa melhor a maneira de ver e de pensar dos iraquianos.

“É por isso que o programa da Frente Nacional Islâmica do Iraque, em que a maior força é o Partido Baas nacional iraquiano, tem como base: libertar o Iraque, uma libertação total e completa. Organização do Iraque, o Estado e o povo. Libertação dos reféns e dos prisioneiros das prisões do governo iraquiano e das dos americanos. Anulação de todas as leis e decisões tomadas durante a colonização. Depois, a instalação de um regime iraquiano democrático, com participação dos partidos não comprometidos com a colonização. Terá de haver um período transitório de dois anos, com num governo provisório, para anular as consequências da colonização, instalar os serviços para os cidadãos iraquianos e preparar uma Constituição iraquiana independente da presença americana; bem como estabelecer uma lei que organize a vida dos partidos e as eleições. E, depois, realizar eleições.

“A FNI manterá as melhores relações com os países da zona e garante os interesses internacionais e a amizade com todos os povos da região e do mundo. E mesmo os interesses dos EUA, se aceitarem indemnizar o povo iraquiano e pedir-lhe desculpas por todos os crimes cometidos contra ele.”

Obama pode estar muito enganado

“O novo presidente dos EUA tinha prometido na campanha eleitoral retirar as tropas e acabar com a colonização do Iraque. O texto de Obama diz: “Vou entregar o Iraque ao seu povo”. Se o senhor Obama considerar que o povo do Iraque são o presidente do actual governo e as pessoas que o rodeiam – todos sabem que essas pessoas estão ao serviço da colonização –, então deve estar completamente enganado relativamente à realidade. O povo iraquiano é representado pela resistência iraquiana e por aqueles que a apoiam que, como já disse, são 90% da população.

“Segundo as leis internacionais, neste momento não há nada legítimo no Iraque a não ser a resistência. O artigo 51º da Carta das Nações Unidas diz que, quando um país está colonizado por parte de outro Estado, a resistência é completamente legal e legítima. E tudo o que for feito pela colonização é ilícito.”

Uma invasão baseada em mentiras, uma ocupação ilegal e desumana

resistiraque2php“A colonização americana foi um acto ilegal, baseado em razões que já se provou que eram erradas. Falou-se de armas de destruição massiva e já se provou que não havia essas armas. Quanto à relação entre o regime iraquiano e a Al-Qaida, já está provado que não havia nenhuma. Disse-se que eles foram lá para estabelecer a democracia porque tínhamos um regime ditatorial. Essa democracia transformou-se em crimes e em roubo de receitas públicas, em violações das mulheres e falta de respeito pelos direitos humanos; deslocação de mais de 5.000 iraquianos, a maioria estudiosos, cientistas, levados a sair do país. Mais de 5.000 médicos, engenheiros, professores, assassinados. Mais de um milhão e meio de iraquianos mortos. Mais de três milhões de pessoas perseguidas, com a acusação de pertencerem ao Partido Baas – a maioria delas com nível universitário. Um milhão de viúvas e de órfãos.”

Destruição da economia, dos serviços e do ambiente

“As fábricas foram fechadas, foi desinstalada a maioria das máquinas e ninguém sabe onde estão. A maioria dos médicos e dos engenheiros, pessoas com possibilidade de produzir, estão no desemprego. A percentagem do desemprego é de 62%.

“Não há agricultura. Tudo é importado do Irão, da Síria, da Jordânia – mesmo bens de base como tomates, cebolas. Não há serviços. Não há electricidade há seis anos. Os geradores, básicos para ter electricidade, não podem funcionar porque não há energia. É irónico dizer-se que o Iraque está em cima de um lago de petróleo e nem sequer termos uma gotinha de combustível em casa para termos energia. Todas as fábricas de acessórios foram destruídas.

“Estão a roubar o petróleo bruto sem darem conta a ninguém; não há registo das quantidades de petróleo que estão a sair do Iraque.

“Em 1989, o Iraque recebeu o prémio para o melhor sistema de saúde no Médio Oriente, dado pela Organização Mundial de Saúde, em função do número de médicos, do rendimento, dos diplomas, tendo em conta o número de hospitais existentes e os serviços oferecidos aos cidadãos. Já não havia doenças contagiosas no Iraque há muito tempo. Hoje, por causa das águas mal tratadas, começamos a ter epidemias, problemas do fígado, e outras doenças que já não tínhamos há muito tempo. O nível dos serviços médicos no Iraque está numa decadência total, e continua porque já não temos médicos, já foram mortos ou perseguidos mais de 7.000 médicos, a maioria deles estão fora do Iraque, nem temos meios básicos para prestar serviços médicos adequados às pessoas.

“O ambiente está completamente poluído por causa do urânio e do fósforo branco usado pelos americanos na invasão. Há muitos casos de pessoas com cancro ou com problemas genéticos.

“Como é que é possível, depois disto tudo, continuarem a dizer que estão lá para instalar a democracia? O próprio George Bush admitiu que as informações que tinha para desencadear esta guerra eram informações erradas.”

O governo de Obama não está interessado em acabar com a colonização do Iraque

“Então, não seria justo, não seria o mínimo, o actual presidente admitir que esta guerra foi errada e pedir desculpa ao povo iraquiano? A um país que foi completamente destruído? Não é um direito do Iraque e dos iraquianos, segundo as leis internacionais, não é um direito da humanidade ver os responsáveis por estes crimes serem julgados? E que o povo seja indemnizado por tudo o que sofreu?

“O senhor Obama não admitiu o erro cometido com esta guerra no seu discurso, quando falou da situação no Iraque. Mas disse que vai deixar 50.000 soldados até ao fim de 2011. O ministro da Defesa americano disse que é possível ficarem para além de 2011.

“O senhor Obama não falou dos mais de 200.000 soldados que não pertencem às forças armadas e que estão a actuar no Iraque. Vão também sair até 2011? Participam em todos os combates ao lado das forças armadas. Têm armas, tanques, aviões, capacidade para ferir as pessoas e garantir a segurança das cidades onde estão. Qual é o interesse de retirar 100.000 soldados e deixar mais de 200.000 – cuja morte não é anunciada nas fontes oficiais, porque não têm nacionalidade americana, mas são pagos pelas forças americanas para garantir a sua presença lá?

“Esta é a posição da resistência perante o último discurso do senhor Obama. Não falou do destino de 50 bases aéreas que estão no Iraque – três delas consideradas das maiores no mundo. Helicópteros e aviões militares. Milhares de soldados, conselheiros, responsáveis americanos colocados nos ministérios e nas instituições políticas do actual governo iraquiano. Que será feito desses? Vão continuar no Iraque?

“Não é isto suficiente para concluir que a administração Obama não está interessada em acabar com a colonização do Iraque? E que vão continuar esta colonização sangrenta? Então? Acham que nós já não temos razão para continuar a nossa luta, a nossa resistência?”

A Resistência continua

resistiraque3php“O povo iraquiano vai continuar a luta, sejam quais forem os sacrifícios e as perdas. Até à saída do último soldado americano. Este é o único caminho para nos salvarmos.

“Os americanos estão a retirar os soldados das ruas, porque têm medo da resistência, mas passaram a utilizar aviões para se deslocarem dentro do território iraquiano. Ainda ontem houve um ataque a uma cidade e foram presos muitos cidadãos, com a explicação de que estavam ali responsáveis da resistência, informações que têm através de pessoas que trabalham para as forças armadas americanas.

“Se a nova administração americana respeita a legislação internacional, se está mesmo interessada em respeitar os valores humanos e as exigências dos conflitos internacionais – tal como o senhor Obama disse na rádio, que ‘vai difundir os verdadeiros valores americanos’ –, então será uma prova de coragem assumir a responsabilidade desta guerra que o senhor Bush iniciou. E que respeite realmente os direitos do povo iraquiano. E que o Iraque e o seu povo sejam indemnizados pelos danos que sofreram. E que se afastem completamente do povo iraquiano. E que tenham negociações com a resistência nacional iraquiana. Para que possamos instalar um novo regime iraquiano democrático. Para que possamos evitar a presença iraniana e o terrorismo no nosso território.

“A resistência nacional, quando estiver no poder, vai lutar contra o extremismo iraniano e o terrorismo, para que o Iraque possa ter a sua serenidade. E toda a zona também. Para que possamos garantir todos os interesses dos países nesta região com um valor enorme para todos. Se acontecer o contrário, os conflitos vão continuar nesta zona. E toda a gente vai perder os interesses que tem naquela zona.”

O aliciamento de chefes de tribo para o lado dos EUA

Para tentarem suprir as enormes dificuldades que os impedem de controlar grandes regiões do país, os ocupantes lançaram em 2007 uma campanha de aliciamento de chefes tribais para, a troco de dinheiro, se encarregarem de organizar o enfrentamento e o policiamento locais contra a resistência. É o chamado Movimento Despertar. Baseia-se numa estrutura tradicional das tribos, com costumes e chefes próprios, que o regime do Baas conseguira secundarizar num primeiro tempo, com a laicização do Estado e a democratização dos serviços e dos sistemas de educação, transportes e saúde pública. Todavia, durante os 12 anos de embargo imposto ao país, entre 1991 e 2003, o próprio Saddam recuperou essa estrutura do tecido social como forma de compensar o deperecimento do Estado central.

Questionado sobre o Movimento Despertar, Abu Mohamad disse que “os americanos não estão a conseguir resolver os problemas de maneira militar. Já não conseguem deter a resistência. Sendo assim, têm de procurar outras soluções. Pagam milhares de dólares aos chefes de tribos iraquianas para conseguirem apoio. Distribuem armas e fazem alianças, a que chamam “Sahwat” [Despertar], com o objectivo de dividir o povo e fomentar a guerra civil. Incentivam estes chefes para que sejam eles a perseguir a resistência nacional iraquiana. E usam o termo de sempre: “terroristas”. Antes da colonização não se falava de terrorismo, não tínhamos nada a ver com as redes terroristas. O terrorismo veio com a colonização, com as tropas americanas. A resistência nacional não tem nada a ver com o terrorismo. Está contra o terrorismo e luta com todos meios contra o terrorismo e os terroristas. Foram os americanos que implantaram o terrorismo no Iraque para tentarem destruir os primeiros movimentos da resistência. Agora lançaram este movimento que se chama Sahwat, comprando os acordos com milhares de dólares, dizendo aos iraquianos que devem lutar contra o terrorismo. Infelizmente algumas tribos iraquianas integraram-se nesta união porque nas suas regiões não há trabalho, não há nada para fazer. Como já foi dito, mais de 60% dos iraquianos estão desempregados.

“Nós já sabíamos que os americanos estavam a jogar esta carta para dividir o povo iraquiano. A maioria dos que fizeram parte desta organização Sahwat, já deixou de trabalhar a favor das forças americanas. O resto são pessoas que são mesmo compradas pelo dinheiro americano.”

Os sindicatos iraquianos

Questionado acerca da situação dos trabalhadores e do papel dos sindicatos no Iraque actual, Abu Mohamad respondeu: “Segundo a lei internacional, todas as organizações – políticas, desportivas, etc. – criadas pela colonização são ilegais e não têm legitimidade para funcionar. Com a colonização, todos os sindicatos iraquianos deixaram de existir. Não existem por causa de tudo o que aconteceu, a deslocação, a morte das pessoas, as condições complicadas que se estão a viver. E todos os partidos que vieram com a colonização ajudaram a dividir estas associações segundo os interesses de cada partido, independentemente do interesse geral. Chegaram a usar armas entre essas instituições, segundo o interesse dos partidos. Sendo assim, todas as instituições sindicais já estão destruídas.

“Além disso, os iraquianos não precisam de sindicatos, sobretudo ao nível dos funcionários, dos trabalhadores e dos agricultores. Agora, para trabalhar, a única hipótese é fazer parte do corpo de polícia ou das forças armadas. Todas as fábricas foram destruídas. E o desemprego representa mais de 60%. Então qual é a nossa necessidade de ter sindicatos?

“A função principal dos sindicatos é defender os interesses dos trabalhadores e dos agricultores perante um regime político. No Iraque, não temos o nosso regime, não temos o nosso Estado, e não temos trabalhadores nem agricultores. Esta é a nossa realidade no Iraque.”

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