Por Passa Palavra

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Manifestação em Haymarket, em Chicago, Maio de 1886.

É sabido e consabido que o Primeiro de Maio é o Dia do Trabalhador, não o Dia do Trabalho como consta em nossos calendários de feriados; que a data surgiu do protesto da classe trabalhadora contra o Massacre de Haymarket, acontecido em 1886 em Chigago (EUA), no qual policiais abriram fogo contra uma multidão de manifestantes em resposta a uma bomba lançada contra a polícia; que por supostamente haver lançado a bomba foram condenados à morte Georg Engel, Adolf Fischer, Albert Parsons, Auguste Spies e Louis Lingg, sendo que este último se suicidou para não ser enforcado; que em resposta a estas execuções, os trabalhadores de todo o mundo resolveram paralisar suas atividades todos os anos no dia Primeiro de Maio etc. Mas, como em qualquer dia comemorativo, nem sempre o mito fundador reflete fielmente a história real. Mitos, afinal, são histórias fantasiosas que se contam de geração em geração para registrar um evento marcante ou os feitos de determinada figura histórica, para marcar a passagem do tempo ou explicar fenômenos da natureza, enquanto a história se contenta, mais humildemente, em explicar o que se passou para que não cometamos os mesmos erros do passado.

A história tradicional do Primeiro de Maio, tal como é contada por sucessivas gerações de militantes do movimento operário, mesmo obscurecida pelo tempo e pela ação daqueles que quiseram usar a data para seus próprios fins – desde os nazi-fascistas, que recuperaram o Dia do Trabalhador como Dia do Trabalho para abafar a memória das lutas; até os capitalistas de todas as matrizes, que ou bem mudam a data do Dia do Trabalho para evitar a agitação socialista, ou bem usam o dia para sortear carros, casas, dinheiro e prêmios para os operários-padrão – contém ainda elementos de mito, de lenda, que não contribuem para expor na própria gênese da data comemorativa elementos que depois vieram a ser qualificados como elementos de sua degeneração.

Deixemos, então, a mera narrativa dos fatos e acontecimentos para as Wikipédias. É preciso resgatar alguns elementos menos conhecidos do Primeiro de Maio, levantar hipóteses sobre sua origem para analisarmos melhor seu conteúdo e desenvolvimento histórico. Teremos, para isso, que recuar até muito antes de 1886. Surpreendentemente para um artigo aberto com a crítica das lendas e mitos, nos vemos obrigados a recuar até as origens de uma data comemorativa que os místicos conhecem bem – a Noite de Walpurgis.

I

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Gravura que representa o Maypole, ou dança do mastro.

O primeiro dia de maio, no Hemisfério Norte, cai quase exatamente entre um solstício e um equinócio, marcando a transição entre inverno e primavera; por este motivo, antigas religiões européias, cada uma por seu motivo (celtas homenageavam Beltane, o deus do fogo, enquanto vikings invocavam seus deuses da fertilidade), deixaram marcada na tradição esta data como a da Noite de Walpurgis, na qual se acendiam grandes fogueiras e dançava-se algo semelhante ao que se conhece no Brasil e em Portugal como a Festa do Mastro: um grande mastro com fitas era erguido para que jovens dançassem ao redor dele segurando cada um a ponta de uma das fitas, resultando que ao final da dança, com as fitas já bastante embaraçadas ao redor do poste, poderiam – quem sabe! – arrumar alguém com quem se amarrar…

Apesar de a tradição destas comemorações de maio manter-se viva na Alemanha, na Grécia, na Suécia, na Inglaterra e em alguns outros países do Hemisfério Norte através de fogueiras, da festa da Rainha de Maio, da Morris Dance e da “dança do mastro”, tanto a perseguição oficial – o Parlamento britânico chegou a declarar a festa ilegal em 1644 por força de sua “promiscuidade” – quanto a dessacralização do mundo promovida pelo capitalismo apagaram qualquer vestígio religioso da comemoração, que ficou restrita a um dia de celebração da fertilidade, hoje quase esquecido.

Tal como o Parlamento britânico muito depois, a Igreja Católica tentou eliminar os festejos sob o argumento de que esta festa seria, na verdade, o “aniversário do diabo” ou algum tipo de sabá; sendo infrutífera a estratégia, a Igreja incorporou a Noite de Walpurgis em seu calendário como celebração do martírio de santos, comemoração da descoberta de relíquias santas ou desculpas semelhantes; o mais curioso é o Dia de Santa Walburga (também conhecida como Walpurga), monja beneditina que teria vivido entre 710 e 779 e dirigido o convento de Heidenheim, na Alemanha. Além da evidente semelhança de nome entre a santa e a data comemorativa, celebrava-se sua memória queimando fogueiras contra os poderes malignos, tal como os “pagãos” acendiam fogueiras em homenagem a seus deuses…

II

Mas deixemos estas velharias para trás. Retornemos a 1886. Entremos brevemente na história da manifestação que desembocou no Massacre de Haymarket.

O Primeiro de Maio resultou de um crescendo nas lutas pela jornada de oito horas nos Estados Unidos. Já em 1829, trabalhadores reivindicaram do legislativo de Nova Iorque a implementação da jornada normal de trabalho. O movimento operário estadunidense estava então dividido em algumas grandes federações sindicais e organizações similares, que disputavam os sindicatos com as piores táticas. Enquanto a National Labor Union (NLU) e os Industrial Congresses eram organizações criadas de cima para baixo por lideranças sindicais, organizações como os Knights of Labor surgiram posteriormente a partir da base como grupos secretos contra as listas negras e dedos-duros [denunciantes e provocadores]. A Federation of Organized Trades and Labor Unions (FOTLU) – organização que viria a se tornar em 1886 a toda-poderosa American Federation of Labor (AFL), e que já era desde 1881 presidida por Samuel Gompers – surgiu a partir da iniciativa de membros dos Knights of Labor descontentes com a organização, e muito breve, após sua transformação em American Federation of Labor, viria a suplantar sua supremacia no movimento operário. A disputa entre organizações não era limitada por qualquer forma de solidariedade de classe: os Knights of Labor, por exemplo, chegavam ao ponto de não apenas proibir seus membros de participar de greves e mobilizações puxadas pela FOTLU, mas também recomendavam-lhes oferecer-se como fura-greves em tais situações.

Em 1884, deliberou-se no quarto congresso da FOTLU por um ultimato: ou bem a jornada de oito horas seria implementada por lei, ou bem os trabalhadores estadunidenses entrariam em greve geral no dia 1.º de maio de 1886. Andrew Johnson, então presidente dos EUA, promulgou ainda em 1886 a Lei Ingersoll implementando a jornada reivindicada, mas como ela não passava de letra morta a FOTLU decidiu manter o ultimato e convocou a greve geral. O primeiro dia da greve contou com a participação de dez mil trabalhadores em Nova Iorque, onze mil em Detroit, cerca de dez mil em Milwaukee e, no país inteiro, entre trezentos a quinhentos mil trabalhadores conseguiram implementar a jornada de oito horas através da greve e de manifestações massivas, ou de sua simples ameaça.

Só em Chicago a situação ficou mais tensa. A greve, que contou com quarenta mil participantes no dia 1º de maio, durou mais dois dias. Fura-greves foram contratados, e os grevistas, cuja paralisação, comícios e passeatas seguiam bastante tranquilos e sem incidentes até o dia 3 de maio, foram atingidos pela fuzilaria da polícia na porta de uma fábrica, evento que resultou em seis mortes. Este fato foi o estopim [rastilho] para a convocação, para a noite de 4 de maio, de um comício gigantesco marcado para a Haymarket Square (“Praça do Mercado do Feno”) – não pela FOTLU, mas por uma organização anarquista chamada International Working People’s Association (IWPA) fundada e liderada por Albert Parsons.

O comício corria bem, e após a fala de diversos oradores não houve qualquer sinal de violência – mesmo o prefeito [presidente da Câmara], que havia parado para ver o comício, voltou para casa mais cedo, talvez acreditando que nada fosse acontecer – até que a polícia decidiu dispersar a multidão às 10h30min; alguém lançou uma bomba contra a formação policial que já marchava contra a multidão, e o que se seguiu foi uma fuzilaria descontrolada que durou cinco minutos e causou a morte de quatro trabalhadores e seis policiais, deixando feridos sessenta policiais e um número desconhecido de trabalhadores – poucos dentre os feridos “civis” buscaram cuidados médicos, pois temiam a prisão.

O resto é história: Georg Engel, Adolf Fischer, Albert Parsons, Auguste Spies e Louis Lingg, lideranças do movimento operário local, foram presos sob acusação de haverem planejado e executado o atentado a bomba, depois condenados à morte etc. Basta voltar ao primeiro parágrafo que está tudo lá, e quem quiser pode ir a qualquer fonte atrás de informações. Não obstante Samuel Gompers, presidente da FOTLU e depois da AFL, dizer que “embora os militantes de base mais equilibrados da AFL não concordem com os radicais, eles não podem abandoná-los ao inimigo comum”, ele não hesitava em dizer também que “divergiu por toda a vida com os métodos dos condenados”. Já Terence V. Powderly, líder dos Knights of Labour, diria que “os Knights of Labour não têm filiação, associação, simpatia ou respeito pelo bando de assassinos covardes, degoladores e ladrões conhecidos como anarquistas”.

Observem que coisa curiosa: o Massacre de Haymarket, fato que, segundo o mito fundador, dá origem ao Primeiro de Maio, na verdade aconteceu no dia 4 de maio. Para a posteridade ficou não a data do evento, mas a data determinada pela FOTLU para a paralisação inicial. Pior: nem a AFL – criada 17 dias após o Massacre de Haymarket – nem os Knights of Labour apoiaram os condenados.

III

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Ben Shahn, Desemprego, 1938.

Trairagens [traições] à parte, como o Primeiro de Maio foi transformado na data internacional de luta dos trabalhadores?

Rosa Luxemburgo, no artigo Quais as origens do Primeiro de Maio? (publicado no jornal polonês Sprawa Robotnicza [Causa Operária] em 1894), afirma que a primeira tentativa de criar um “feriado proletário” como parte da luta pela jornada de oito horas surgiu na Austrália, em 1856; a data originalmente prevista pelos australianos não foi o Primeiro de Maio, mas o dia 21 de abril. Resgata que a ideia do “feriado proletário” fermentou mundo afora e que foi bastante discutida em 1889 no congresso de fundação da II Internacional, em julho de 1889:

“(…) o movimento operário na Europa havia se fortalecido e animado. A mais poderosa expressão deste movimento ocorreu no Congresso Internacional de Trabalhadores em 1889. Neste Congresso, assistido por quatrocentos delegados, foi decidido que a jornada de oito horas deveria ser a primeira reivindicação. Foi então que o delegado dos sindicatos franceses, o trabalhador [Raymond] Lavigne de Bordeaux, fez uma moção para que esta reivindicação fosse expressa em todos os países através de uma paralisação universal do trabalho. O delegado dos trabalhadores americanos [Hugh McGregor] chamou a atenção para a decisão de seus camaradas de fazer greve no dia 1.º de maio de 1890, e o Congresso deliberou que esta data seria de celebração proletária universal.”

Mas Rosa resumiu demais as coisas, como seria de se esperar num artigo jornalístico. Na verdade, a mesma American Federation of Labour cujo presidente buscava não se associar com a imagem dos “radicais”, alguns anos depois, já havia adotado o Primeiro de Maio como data oficial para suas manifestações. Ponto para o “golpe de gênio” de Samuel Gompers, que deu ordem direta para que a delegação da AFL ao congresso apresentasse a proposta de data. Nas palavras do próprio:

“Na medida em que os planos para a jornada de oito horas eram desenvolvidos, estávamos constantemente pensando em como alargar nossos objetivos. Como a data de realização do Congresso Internacional de Trabalhadores de Paris se aproximava, me veio a ideia de que poderíamos ajudar nosso movimento com uma moção de simpatia daquele congresso.”

Logo Gompers contatou Hugh McGregor para enviá-lo ao congresso, onde, mesmo enfrentando a oposição da delegação alemã – que incluía Wilhelm Liebknecht e August Bebel, líderes da poderosa social-democracia germânica –, fez aprovar a moção cujo texto original é este:

“Uma grande manifestação internacional deve ser organizada numa data fixa, de modo que os trabalhadores de todos os países e de todas as cidades possam, num dia determinado, dirigir simultaneamente às autoridades públicas uma reivindicação para fixar a jornada de trabalho em oito horas por dia e para colocar em prática as demais resoluções do Congresso Internacional de Paris. Tendo em vista o fato de que tal manifestação já foi deliberada pela American Federation of Labour na sua convenção de dezembro de 1888 em St. Louis para acontecer no dia 1.º de maio de 1890, este dia é aceito como o dia para a manifestação internacional. Os trabalhadores das várias nações devem organizar a demonstração de modo apropriado às condições de seus países.”

IV

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Max Beckmann, A Noite, 1918-1919.

Há quem pergunte a esta altura: “que diabos têm a ver Primeiro de Maio, uma festa pagã perdida no tempo e essa trairagem toda?” Não pensem que a Igreja Católica é a única a fixar suas datas comemorativas com base em festas populares; o movimento operário, ou ao menos suas organizações mais ostensivas, também faz das suas. É tanta coincidência que não parece que esta data haja sido escolhida inocentemente pelo movimento operário para grandes paralisações.

É difícil saber, hoje, o que realmente se passou pela cabeça dos delegados aos congressos da FOTLU de 1884 e da AFL de 1888, mas é razoável supor que, no congresso de 1884, uma vez que os Estados Unidos são um dos países onde, ao menos no século XIX, a tradição das festas populares do Primeiro de Maio se mantinha, estes delegados hajam escolhido como dia de paralisação justamente um dia de festas populares para unir a propaganda e a ação militantes aos festejos – ou seja, unir o útil ao agradável. Em 1888, se esta hipótese estiver correta, o que a AFL fez foi ligar o Massacre de Haymarket ao Primeiro de Maio ao invés de rememorá-lo em sua data correta, pois assim, mais uma vez, a agitação poderia ser feita durante os festejos populares.

A hipótese é arriscada, mas não surge à-toa. Já em 1894 o poeta Walter Crane escrevera um poema chamado The Worker’s Maypole (O Mastro de Maio dos Trabalhadores), que ligou diretamente o Primeiro de Maio com a dança do mastro remanescente da antiga Noite de Walpurgis. (Maypole, que se traduz diretamente para o português como “mastro de maio”, é o nome inglês para o mastro usado na dança de mesmo nome, típica das festas de Primeiro de Maio no mundo anglo-saxão.) Além disso, não faltam registros de que, apesar de a Noite de Wapulrgis ser uma festa eminentemente anglo-saxã, germânica e nórdica, no início do século XX o Primeiro de Maio celebrava-se em regiões do mundo não afetadas por estas culturas não apenas com grandes comícios, mobilizações e paralisações – que invariavelmente encontravam violenta oposição das autoridades, especialmente da polícia e das forças armadas –, mas também com festas, piqueniques e outras atividades aparentemente menos “militantes”.

Se esta hipótese estiver correta, o duplo caráter do Primeiro de Maio – dia de festa e luta – não parece ser invenção recente, mas sim elemento constitutivo seu desde o princípio, embora tudo indique que, postos seus dois aspectos na balança, nesta época o prato da luta pesasse mais.

V

Apesar das trairagens de suas origens, o Primeiro de Maio foi vigorosamente adotado pelos trabalhadores de todo o mundo como seu dia de luta – e de festa. Não foram poucos os trabalhadores, nestes primeiros anos do Primeiro de Maio, a ter sua consciência social despertada a partir da história dos Mártires de Chicago e das ações militantes de todos os anos.

A simbologia do Primeiro de Maio, a bem da tranquilidade da exploração capitalista, precisava ser extinta, morta, soterrada por cem mentiras contadas pelo menos cem vezes. Vimos que tanto a AFL quanto os Knights of Labour já haviam tentado lançar uma pá de terra sobre a memória dos condenados; esta segunda pá de terra pretendia ser definitiva, pois não era lançada apenas sobre a memória dos condenados, mas sobre o caráter combativo do Primeiro de Maio. Surgiu, assim, uma longa fila de indivíduos, grupos e classes sociais dispostas a mistificar o significado do Primeiro de Maio e aproveitar a mobilização social provocada pela data em seu próprio favor.

Em primeiro lugar na fila dos mistificadores vieram os capitalistas. Os Knights of Labor, conhecidos por sua postura colaboracionista frente aos empresários com quem negociavam, inauguraram a tradição de um “dia do trabalho” fazendo passeatas e manifestações na primeira segunda-feira de setembro a partir de 1882; esta data foi decretada Dia do Trabalho nos EUA pelo presidente Grover Cleveland, que pretendia, explicitamente, evitar qualquer forma de agitação socialista fundada no Massacre de Haymarket. Em 1958, no auge da Guerra Fria, o Congresso estadunidense decretou que o 1º de maio seria não o Dia do Trabalhador ou do Trabalho, mas sim o Dia da Lealdade: um dia “dedicado à reafirmação da lealdade aos EUA e ao reconhecimento da herança da liberdade americana”, segundo o texto da lei que o instituiu. Mais modestamente, Pio XII tentaria em 1955 enfiar pela goela dos católicos um certo “Dia de São José Operário” para substituir o Primeiro de Maio, com menos sucesso.

Em segundo lugar na fila dos mistificadores vieram os burocratas da União Soviética. Já em 1918 o 1º de maio havia sido transformado em assunto de Estado; segundo um decreto de 12 de abril de 1918, as estátuas em homenagem aos czares e seus servos já deveriam ter sido retiradas nesta data, e outras novas, criadas por uma comissão da diretoria do Departamento de Belas-Artes do Comissariado para a Educação, deveriam ser inauguradas durante o evento. A mesma comissão teria o dever de “organizar a decoração da cidade para o 1º de maio e substituir inscrições, emblemas, nomes de ruas, brasões etc. por outros novos que reflitam as ideias e o sentimento da Rússia revolucionária e operária”. Anatoly Lunacharsky, um dos signatários deste decreto, registraria em seu diário a respeito do 1º de maio em Petrogrado:

“Sim, a celebração do Primeiro de Maio foi tornada oficial. Foi celebrada pelo Estado. A força do Estado ficou evidente de várias maneiras. Mas não é inebriante pensar que o Estado, até recentemente nosso pior inimigo, agora nos pertence e celebrou o Primeiro de Maio como seu grande festival? Ainda assim, (…), se este festival fosse meramente oficial, não teria produzido nada além de frieza e vacuidade. Mas não, as massas do povo, a Marinha, o Exército Vermelho, todos os trabalhadores sinceros direcionaram seus esforços para ele. Podemos dizer, portanto, que este festival do trabalho nunca foi tão bonito.”

Daí para as grandes paradas e marchas sob Stalin não faltou muito.

Em terceiro lugar na fila dos mistificadores vieram os fascistas italianos. As massivas paradas fascistas tinham como modelo nada mais, nada menos que as comemorações do 1º de maio na União Soviética sob o stalinismo. O dia foi incorporado às comemorações fascistas, dada a origem sindicalista de sua militância.

Em quarto lugar na fila dos mistificadores vieram os nazistas. O Primeiro de Maio na Alemanha sob o nazismo foi transformado, como outros eventos, num palanque para os inflamados discursos de Adolf Hitler perante milhares de nazistas enfileirados sob gigantescas suásticas desfraldadas. Além disso, os responsáveis pela propaganda e arquitetura nazistas trataram de resgatar a tradição nórdica da Noite de Walpurgis – era comum encontrar “Mastros de Maio” em meio às torres com suásticas, tal como no bombástico festival do 1º de maio de 1934 testemunhado por James D. Mooney – executivo da General Motors que, mesmerizado, entraria no gabinete de Hitler no dia seguinte ensaiando um desajeitado sieg heil e facilitaria as relações entre a Opel (subsidiária da GM) e o governo alemão – ou no 1º de maio de 1936, realizado no Lustgarten berlinense.

Estas quatro formas de mistificação do caráter de luta do Primeiro de Maio frutificaram mundo afora, a leste e a oeste, em países capitalistas ou “socialistas”. Nâo é à-toa que Getúlio Vargas cooptou a data durante o Estado Novo e transformou-a em Dia do Trabalho, uma festa repleta do culto à personalidade de “Gegê, o pai dos pobres” na qual os dirigentes sindicais que contavam com a aprovação do Ministério do Trabalho eram chamados a bajulá-lo. Salazar, ditador de menos sorte neste aspecto, bem que tentou seguir o caminho americano e transformar o Primeiro de Maio no dia de São José Operário – coisa tão estapafúrdia que a proibição pura e simples de qualquer comemoração do Primeiro de Maio pareceu-lhe mais adequada.

Mas há um porém. O que fazem estes mistificadores além de tomar em mãos a balança onde fragilmente se equilibram os aspectos combativo e festivo do Primeiro de Maio e lançar mais pesos no prato das festividades? O dia de São José Operário e o Dia da Lealdade são, sim, artificialidades, mas por acaso os soviéticos inventaram alguma coisa nas comemorações do Primeiro de Maio além da gigantesca ornamentação para a festa? Os fascistas italianos, o que fizeram além de amplificar à exaustão as comemorações sindicais já existentes e submetê-las a seu controle direto? Os nazistas inventaram, sim, a mise en scène e a parafernália propagandística por trás dos discursos hitlerianos, mas por acaso inventaram Walpurgis ou o mastro de maio?

Daí a provocação: o que fazem os sindicatos de hoje com seus mega-espetáculos, seus sorteios de carros e casas, suas comemorações anódinas, o que fazem eles além de seguir a mesma trilha de seus antecessores no esforço hercúleo de ressaltar o caráter festivo do Primeiro de Maio em detrimento de seu caráter combativo?

VI

Um corte abrupto – e, convenhamos, estranho – para as Olimpíadas de 1984. Vinte minutos após a primeira colocada, Gabriela Andersen-Schiess, 39 anos, maratonista suíça, entra no estádio, para o horror da platéia. A insolação e a desidratação faziam dela a mais pálida imagem de uma atleta, ou mesmo de um ser humano. Semi-desmaiada, o tronco recurvado e a força da gravidade a empurrá-la para a frente, quase desabando a cada passo, tentava evitar a desclassificação afastando todas as equipes médicas que vinham atendê-la; ocasionalmente, parava e segurava a cabeça com o braço direito – o esquerdo pendulava desorientadamente, rijo de cãibra – enquanto os quatrocentos metros da reta final pareciam-lhe cada vez mais longos. Quase seis torturantes minutos após sua entrada, cruzou a linha de chegada e desmaiou, exausta, nos braços dos médicos. Apesar de seu fracasso competitivo, seu tempo de 2h48min45s teria-lhe valido a medalha de ouro nas cinco primeiras maratonas olímpicas. Por que não abandonou a prova antes? Quis terminar o percurso porque, segundo contou a jornalistas, devido a sua idade aquela talvez fosse sua primeira e última chance de concorrer numa Olimpíada – e seguiu seu objetivo até muito além do limite de suas forças.

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Primeiro de Maio na Coreia do Norte

O Primeiro de Maio vem quase no mesmo passo. Apropriado para os fins mais diversos por capitalistas, nazistas, fascistas, burocratas e toda escroqueria correlata; amplamente superado como dia de luta por eventos como os Dias de Ação Global, o Grito dos Excluídos, a Outra Campanha, o Abril Vermelho e outras datas menos vetustas; solidamente incorporado aos calendários oficiais de diversos países como feriado; sua origem de luta resta hoje drástica e irremediavelmente desfigurada; seu aspecto festivo serve apenas para engordar o bolso dos artistas que cobram altos cachês nos shows organizados por sindicatos e para alimentar a ilusão dos trabalhadores que a eles comparecem sonhando com o carro cujo sorteio em tais eventos é tão certo quanto a mais-valia nossa de cada dia. Por que dar-lhe ainda crédito como data de mobilizações, cento e treze anos após sua controversa origem?

Mesmo sob os regimes mais autoritários, mesmo sob a mistificação mais cerrada, a celebração do Primeiro de Maio é tradição tão arraigada que não há data mais propícia para mobilizações massivas, ou mesmo atos isolados de resistência – os eventos de 1962 em Portugal e de 1968 no Brasil bem o testemunham. Além disso, não há movimento social autônomo que não o recupere em suas atividades de formação política – que o digam o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), o Movimento de Sem-Teto da Bahia (MSTB), o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento de Trabalhadores Desempregados (MTD), a Liga de Camponeses Pobres (LCP) e tantos outros – ou em suas ações militantes – que o digam os autonomen alemães, os piqueteros argentinos, os ativistas que participam do MayDay e tantos outros.

Combalido, enxovalhado, trôpego, o Primeiro de Maio chegou até nós, que vivemos num mar de trabalhadores cada vez mais precarizados a cercar ilhas de hiper-qualificação laboral praticamente inatingíveis e também postos de trabalho formal, com direitos garantidos, que se disputam a unhas e dentes. A instabilidade e a fragmentação são traços marcantes deste momento vivido pela classe trabalhadora. Será possível pormos mais peso na balança do aspecto combativo do Primeiro de Maio para reequilibrá-lo com seu aspecto festivo? Como fazê-lo? Com quem? E para quando? Ou tentá-lo servirá, hoje, apenas para recolocar aos olhos do público o mesmo espetáculo da maratonista suíça de vinte e cinco anos atrás – uma demonstração de esforço sobre-humano, de gana e perseverança, fadada, entretanto, ao mais absoluto fracasso?

FONTES (classificadas por ano)

Terence. V. Powderly. (1890) Anarchy and the Knights.

Eleanor Marx. (1890) Speech at First May Day at Hyde Park.

Rosa Luxemburg. (1894) What are the origins of May Day?

Samuel Gompers. (1925) Seventy years of labor.

Victor Serge. (1930) O ano I da Revolução Russa.

Alexander Trachtenberg. (1932) The history of May Day.

Edward Hallett Carr. (1950-1978) Historia de la Rusia Soviética.

Aziz Simão. (1966) Sindicato e Estado: suas relações na formação do proletariado de São Paulo.

Boris Koval. (1968) História do proletariado brasileiro.

Francisco Foot Hardman. (1983) Nem pátria, nem patrão! Memória operária, cultura e literatura no Brasil.

Eduardo Colombo e outros. (2004) História do movimento operário revolucionário.

Arquivo Marxista na Internet. Dossiê Primeiro de Maio. (http://www.marxists.org/subject/mayday/index.htm)

5 COMENTÁRIOS

  1. De minha parte já não vejo significado algum no primeiro de maio e considero o grito dos excluídos e os dias de ação global muito mais propícios.

  2. Ressalvando as fontes e citações históricas, pelo interesse informativo que revestem, as melhores respostas às mistificadoras interrogações finais do autor – tal como para o autor do comentário anterior – foram dadas pela dimensão das comemorações deste ano em Portugal (como ocorreu noutros países), comemorações de luta, reunindo dezenas de milhares de trabalhadores, lutando contra a exploração e a degradação das suas condições de vida, defendendo direitos conquistados ao longo de décadas.
    Não obstante as opiniões e atitudes que visam induzir a passividade e a resignação, a luta da classe operária e dos assalariados vai continuar. Sempre!
    Saudações sindicais, de classe.

  3. Lendo o comentário de Júlio Filipe, pensei comigo mesmo porque será que a CGTP consegue mobilizar um número tão grande de trabalhadores para desfilar nas ruas e não consegue mobilizá-los para resistirem dentro das empresas? Desde 1974 que os trabalhadores portugueses têm vindo a fazer grandiosos desfiles no Primeiro de Maio, e têm vindo a perder direitos. Lembrei-me de outra coisa ainda. A França é o país da Europa ocidental com mais baixa taxa de sindicalização, inferior a 9%, e no entanto é em França e não nos países com maior percentagem de sindicalizados que têm ocorrido as lutas mais radicais contra o neoliberalismo, nalguns casos vitoriosas. Será que existe aqui uma relação de causa a efeito?

  4. Gostaria que o Júlio Felipe apontasse as lutas operárias nascidas em consequência das massivas manifestações do Primeiro de Maio de 2009 em Portugal e em outros países. Nos casos em que tais lutas existam, ou bem o caráter radical e massivo das manifestações Primeiro de Maio resulta de um processo anterior de lutas já em curso, ou bem o Primeiro de Maio foi escolhido como estopim para lutas sociais resultantes de processos de mobilização existentes antes do Primeiro de Maio por motivos que o artigo apresenta bem. Do contrário, é pão e circo mesmo, com a anuência e patrocínio de sindicatos já cooptados à ordem social vigente, do tipo que aceita sem resmungar e mesmo dá razão de ser para o papel de “regulador do preço da mão-de-obra” que os economistas burgueses lhes dão. E quem quiser que demonstre o contrário.

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