Por Felipe Corrêa

 

MECANISMOS E PROCESSOS DE BUROCRATIZAÇÃO

Os processos de burocratização

Para tentar identificar os processos de burocratização dos movimentos sociais, creio ser apropriado definir burocracia e burocratização.

“[O termo burocracia é utilizado para] indicar criticamente a proliferação de normas e regulamentos, o ritualismo, a falta de iniciativa, o desperdício de recursos, em suma, a ineficiência das grandes organizações públicas e privadas. […] Uma organização burocrática é caracterizada por relações de autoridade entre posições ordenadas sistematicamente de modo hierárquico, por esferas de competências claramente definidas, por uma elevada divisão do trabalho e por uma precisa separação entre pessoa e cargo no sentido de que os funcionários e os empregados não possuem, a título pessoal, os recursos administrativos, dos quais devem prestar contas, e não podem apoderar-se do cargo. […] Burocratização significa proliferação de organismos sem conexão com as exigências gerais da funcionalidade, acentuação dos aspectos formais e processuais sobre os aspectos substanciais com a conseqüente morosidade das atividades e redução das tarefas desempenhadas, sobrevivência e elefantíase de organismos que não desempenham mais alguma função efetiva e, finalmente, triunfo da organização – a burocracia – sobre suas finalidades.” (Bobbio, 2004, pp. 124-130)

A partir destas definições, é possível afirmar que a burocracia e a burocratização são definidas a partir de dois grandes processos:
1.) Divisão do trabalho e hierarquia;
2.) Falta de eficiência, desperdício de recursos, excesso de processos e de estruturas.

Ambos processos são responsáveis por criar a burocratização dos movimentos sociais. De forma esquemática, podemos visualizar essa afirmação da seguinte maneira:

Tentarei definir mais detalhadamente esses dois processos.

1.) Divisão do trabalho e hierarquia

A divisão do trabalho nos movimentos sociais acontece quando há a separação entre funções, reservando a cada militante somente um limitado conjunto de atividades que, na maioria dos casos, não permite a ele o conhecimento de todo o trabalho que é realizado no movimento. A hierarquia existe quando há distintos níveis de autoridade: superiores e inferiores, uns com maior poder de deliberação do que outros, relação de dominação entre uns e outros.

A divisão do trabalho e a hierarquia podem se dar tanto dentro de um movimento social como entre o movimento e outros agentes/organismos. Juntas, a divisão do trabalho e a hierarquia constituem a separação entre o pensar e o fazer, entre o dirigir e o ser dirigido, entre o trabalho intelectual e o trabalho manual. Por meio desta separação, há aqueles que decidem os assuntos mais importantes do movimento, e que terão um desenvolvimento intelectual mais amplo, e outros que obedecem e que, por razão do excesso de trabalho que envolve baixo nível intelectual, tenderão a permanecer menos intelectualizados. Diferença que tende a manter a divisão do trabalho e a hierarquia, sempre com os mesmos indivíduos/grupos exercendo autoridade, em um círculo vicioso que fortalece cada vez mais quem detém as posições de autoridade e enfraquece o restante, a maior parte do movimento.

2.) Falta de eficiência, desperdício de recursos, excesso de processos e de estruturas

Falar de eficiência no movimento social significa discutir a estratégia do próprio movimento. Envolve, portanto, discutir os objetivos e os caminhos para atingi-los – é, portanto, uma discussão de tática e estratégia. A eficiência envolve a capacidade de atingir os objetivos da maneira mais rápida e menos custosa possível, falando em termos dos mais diferentes tipos de recursos (incluindo humanos). A falta de eficiência ocorre geralmente por alguns motivos: objetivos mal-definidos, escolha de caminhos que levam a outros objetivos, diferentes dos estabelecidos, e/ou a transformação dos meios em fins.

Os recursos em um movimento social são de três tipos: materiais, envolvendo recursos financeiros e infra-estrutura; humanos, envolvendo a militância e os apoiadores; organizativos, com os espaços de coordenação/articulação. O desperdício desses recursos em um movimento implica que ele certamente terá resultados aquém do que poderia estar tendo. Dessa forma, para aumentar permanentemente seus resultados o movimento social deve pensar em como potencializar ao máximo seus recursos e fazer com que se convertam em ferramentas para atingir seus objetivos com eficiência.

Falar de excesso de processos e estruturas envolve também pensar a questão da eficiência. Um movimento social, para ser eficiente, tem de ter processos e estruturas na medida ideal, de maneira que não tornem a organização lenta, complicada demais de administrar ou que tragam dificuldade às tomadas de decisão. Isso não significa defender que os movimentos não devem ter processos e estruturas; estas são ferramentas imprescindíveis, mas não devem existir em excesso, de maneira a atrapalhar. Na realidade, eficiência, desperdício de recursos e excesso de processos e estruturas estão todos ligados; de maneira estratégica, a eficiência será o resultado de uma boa utilização de recursos e de uma adequação dos processos e das estruturas do movimento.

Os mecanismos de burocratização

Esses dois processos de burocratização dos movimentos sociais surgem a partir de mecanismos de burocratização. Agrupados, os mecanismos dão corpo aos processos.

Para definir quais são os mecanismos que se evidenciam na prática, e que levam aos processos de burocratização, é importante levar em conta o método de análise proposto pela Teoria do Confronto. Recordemos que ele é “amplo e dinâmico, sem estabelecer causas e conseqüências fixas, e leis gerais, que funcionariam de maneira ahistórica”. Portanto, esses mecanismos são dinâmicos e, podem, dependendo do contexto, além de ser a causa dos processos de burocratização, ser também sua conseqüência, dando corpo a uma espécie de “círculo vicioso”; eles têm, também, relações com o contexto histórico dentro do qual estão inseridos. Recordemos que esses mecanismos podem ser gerados: pelo reflexo de influências externas (relacionados ao meio), pelas alterações de percepções individuais e coletivas (cognitivos) e pelas relações humanas (relacionais).

Assim, refletindo sobre o primeiro processo de burocratização (Divisão do trabalho e hierarquia), é possível afirmar que ele seja gerado a partir de dois mecanismos fundamentais:
a.) Separação entre a base e a direção do movimento social;
b.) Subordinação do movimento a instrumentos, instituições, e/ou indivíduos externos.

Sobre o segundo processo de burocratização (Falta de eficiência, desperdício de recursos, excesso de processos e de estruturas), é possível afirmar que ele seja gerado a partir de quatro mecanismos fundamentais:
a.) Falta de perspectiva de longo prazo;
b.) Utilização de meios inadequados para os fins que se quer atingir;
c.) Transformação dos meios em fins;
d.) Desperdício de força social.

De maneira esquemática, podemos visualizar essa relação entre os mecanismos e os processos de burocratização da seguinte maneira:

Tentarei, a partir dessa hipótese, definir de maneira mais aprofundada esses seis mecanismos que dão origem aos dois processos de burocratização.

Mecanismos geradores do processo 1.) Divisão do trabalho e hierarquia:

a.) Separação entre base e direção

Nos movimentos sociais, assim como em quaisquer outros espaços da sociedade, é natural que existam pessoas com diferentes características pessoais – isso é, afinal, a diversidade –, e, conseqüentemente, é natural que existam lideranças naturais que possuem maior capacidade de persuasão, de oratória, de iniciativa etc. Assim, com essa diversidade grande entre os indivíduos, é natural que, em espaços coletivos, alguns tenham destaque em relação a outros no que diz respeito à liderança. No entanto, reconhecer isso não significa a mesma coisa que separar o movimento entre base e direção. Na realidade, o que vai determinar se as lideranças naturais atuam para o proveito do movimento ou para seu próprio proveito é a maneira como ela vai trabalhar e a relação que ela vai estabelecer com o movimento social.

A separação entre base e direção dentro de um movimento social pode ocorrer de duas formas: a primeira, quando o movimento escolhe deliberadamente uma estrutura orgânica hierárquica e estabelece níveis diferenciados de militantes, havendo relação de dominação entre eles; a segunda quando as lideranças naturais vão se cristalizando e, geralmente por uma passividade da base, há uma separação, ainda que informal, entre a base e a direção; separação esta que se consolida paulatinamente em um modelo de organização forjado nas relações de dominação, ainda que isso não seja assumido formalmente.

Uma das práticas que reforça esta separação é quando o movimento opta por delegar funções a militantes sem utilizar o mandato imperativo, ou seja, os delegados, ao invés de responderem a uma instância da base, que deveria controlar a delegação, tomam as decisões por conta própria, de acordo com aquilo que acreditam ser melhor e não de acordo com aquilo que foi deliberado pela base. Há, nos casos em que não se utiliza o mandato imperativo, uma autonomia completa dos delegados em relação à base.

Outra prática que reforça a separação acontece quando as delegações, e as próprias funções dentro do movimento, não são rotativas; tende-se assim ao estabelecimento de funções diferenciadas e quem ficar responsável pelos trabalhos que exijam maior capacitação, envolvam contatos, articulações, formação etc. tenderá a capacitar-se cada vez mais e distanciar-se da base.

A principal divisão do trabalho em movimentos sociais hierárquicos é a separação entre a base e a direção. Ou seja, uma separação entre um grupo menor que dirige, planeja, pensa, organiza, comanda e controla e um grupo maior que é dirigido, executa, faz, é organizado, comandado e controlado. É uma divisão semelhante ao que acontece no capitalismo entre trabalho intelectual e trabalho manual.

Outras formas de divisão do trabalho, ainda que não tenham a hierarquia, tendem a criar funções especializadas e manter os militantes sempre nas mesmas funções, impedindo, com freqüência, um conhecimento geral das atividades e das lutas do movimento. Quando isso acontece, não há uma educação que se amplie no fazer cotidiano e a alienação pode ser constante. Cada militante ou grupo executa sempre as mesmas tarefas ou conjuntos de tarefas e deixa de lado aquilo que é realizado pelos outros; perde, portanto, a noção da totalidade do movimento, a visão estratégica.

b.) Subordinação do movimento a instrumentos, instituições e/ou indivíduos externos

O mecanismo descrito como separação entre base e direção se dá dentro do movimento social, mas há um outro mecanismo que contribui para os processos de burocratização, ocorrendo nas relações entre o movimento social e instrumentos, instituições, e/ou indivíduos externos a ele. Se, no primeiro caso, a ameaça está dentro do próprio movimento, neste caso ela está fora dele. Ainda assim, não são mecanismos excludentes e podem ocorrer concomitantemente.

A subordinação do movimento social acontece quando ele se coloca sob relação de hierarquia e dominação. Da mesma forma que na separação entre base e direção, essa relação de subordinação coloca o movimento na posição de subjugado, em relação a agentes/organismos externos a ele.

Um caso muito comum é o da relação entre movimentos sociais e partidos. Sejam esses partidos revolucionários ou reformistas, neste caso, eles colocam-se sobre os movimentos sociais, constituindo, de fato, suas direções. Independente do motivo disso acontecer – pode ser por uma concepção ideológica de que o movimento social só tem capacidade de realizar lutas de curto prazo, e que a consciência lhe deve ser trazida de fora, ou por posições mais pragmáticas, de angariar apoiadores e votos para uma campanha eleitoral, entre outros –, o fato é que o movimento social passa a não ter mais capacidade de autodeterminação; não decide mais sobre aquilo que lhe diz respeito: seus objetivos, seus meios de luta, suas alianças, etc. Nesta relação de subordinação do movimento em relação ao partido, o movimento atua em proveito de interesses alheios, diferentes dos seus.

Não é só em relação aos partidos que os movimentos sociais podem estar subordinados. Isso pode ocorrer na relação com o Estado, ONGs, empresas privadas, igrejas, sindicatos ou mesmo individualidades. São comuns casos em que movimentos sociais aproximam-se de governos de esquerda, que lhe prometem maior espaço dentro da institucionalidade, casos em que movimentos relacionam-se com ONGs e, por questões de formação, financiamento etc., terminam perdendo a autonomia e passam a funcionar em torno do interesse desses terceiros. A mesma coisa acontece em relação às empresas com financiamento de projetos, igrejas buscando fiéis, sindicatos burocratizados em busca de base etc.

Finalmente, não tão comum quanto os outros, é a subordinação de todo um movimento a pessoas, pelos motivos mais diversos – poder alcançado por controle de recursos, capacidade profissional (advogados, por exemplo), ameaça e medo dos outros etc.

Enfim, este mecanismo é similar à separação entre direção e base, com a diferença que, nesse caso, a subjugação é de todo o movimento social em relação a agentes/organismos externos a ele.

Os problemas da divisão do trabalho e da hierarquia

Separação entre base e direção e subordinação do movimento social a agentes/organismos externos são mecanismos que ocasionam um processo de burocratização e têm efeitos perversos. Com a divisão do trabalho e a hierarquia, independente se o movimento é analisado internamente, ou a análise se dá em torno das suas relações com agentes/organismos externos, pode-se afirmar que, em ambos os casos, há uma direção, que pode estar dentro ou fora do movimento, e uma base, que pode estar dentro do movimento ou ser o próprio movimento, como um todo.

A partir destes mecanismos, é comum identificar a independência e a autonomia da direção, em relação às tomadas de decisão, sendo as bases cada vez menos envolvidas. A direção delibera e passa as orientações, ainda que em assembléia, para a base, que somente executa essas deliberações.

As assembléias, dessa forma, não são espaços privilegiados em que todo o movimento expõe suas posições e toma suas decisões; tornam-se espaços de informes, daquilo que a direção (a minoria) deliberou, e que será executado pela base (a maioria). Neste modelo, as decisões são tomadas “de cima para baixo”, e uma minoria decide em nome da maioria, muitas vezes a partir de interesses distintos.

Ambos os mecanismos, neste caso, criam dependência e subserviência da base, minam sua iniciativa e sufocam sua espontaneidade natural. Ocasionam prejuízos para a base, que é criada para obedecer e executar. Num círculo vicioso, a passividade gera passividade, tendendo a afastar cada vez mais a base dos processos do movimento e do próprio movimento: é comum, em algum tempo, o movimento passar a ser constituído praticamente só pela direção, com a base contando em número, mas não em participação efetiva. A passividade disseminada na base faz com que ela não se interesse pelos assuntos do movimento, não possua iniciativa e nem capacidade crítica, incluindo a criação de mecanismos de controle da direção.

Separada da base, a direção se cristaliza e gosta cada vez mais dos privilégios que a posição oferece: autoridade moral, benefícios financeiros, poder em relação a outros etc. Com o tempo, não quer mais perdê-los, passando a atuar mais para a manutenção desses privilégios obtidos, do que para os objetivos do movimento. Um problema que se agrava ainda mais quando o emprego do militante é a militância no movimento, ou seja, quando sua fonte única/principal de renda vem da realização de atividades no movimento.

Além disso, a direção, envolvida cada vez mais freqüentemente com gestores de empresas, membros da burocracia do Estado, direções partidárias etc. – em processos de negociação, por exemplo – tem contato com uma vida diferente, convive com pessoas diferentes, membros de outras classes, e é natural que tenda a se sentir cada mais afastada da base e, assim também, do movimento. É freqüente que não queira mais o trabalho de base do dia-a-dia e prefira as discussões burocráticas, os almoços de negociações, a gestão de amplos recursos, a convivência com uma realidade distante daquela que lhe deu origem. Com algum tempo nesta posição, a realidade do movimento, fundamentalmente a da base, não lhe pertence mais. A direção, enfim, pertence à outra classe, diferente daquela da base do movimento e, portanto, possui aspirações, valores e interesses distintos, sendo natural que reproduza dentro do movimento um processo de dominação, que passa a ser de classe. Os privilégios passam progressivamente a ser fonte de um medo cada vez maior da direção, que teme processos que os ameacem e a retire dessa posição.

Mecanismos geradores do processo 2.) Falta de eficiência, desperdício de recursos, excesso de processos e de estruturas

a.) Falta de perspectiva de longo prazo

Este mecanismo implica a discussão de objetivos dos movimentos sociais. De maneira simples, poderíamos dividir os objetivos naqueles de curto e de longo prazo. Os objetivos de curto prazo são aqueles que o movimento deve buscar em um pequeno espaço de tempo e os de longo aquilo que devem ter como horizonte, como projeto para ser atingido em um grande espaço de tempo.

Nos movimentos sociais, é natural que existam os objetivos de curto prazo, pois geralmente é em torno da luta por esses objetivos que se forma o movimento. Objetivos de curto prazo envolvem: a conquista de moradia, para um movimento de sem-teto; a ocupação de uma terra sem função social e o estabelecimento de um assentamento, para um movimento de sem-terra; a conquista de planos assistenciais e de emprego para um movimento de desempregados; a conquista de melhorias para o bairro, para um movimento comunitário; o aumento das bolsas para alunos pobres em universidades, para o movimento estudantil. A lista é interminável.

Para o movimento sindical, especificamente, o objetivo de curto prazo fundamental é a defesa dos trabalhadores, naquilo que diz respeito à manutenção de seus direitos conquistados e da ampliação desses direitos. Ou pelo menos o objetivo deveria ser este.

Discutir objetivos de curto prazo já traz um problema: ainda que diversos movimentos tenham objetivos concretos de curto prazo, e saibam, portanto, para onde caminhar, no que diz respeito ao imediato, tratar especificamente do movimento sindical possibilita afirmar que a maior parte dele, ainda que na retórica afirme esses objetivos, na prática já os abandonou. Nestes casos, que constituem maioria, nem mesmo existem os objetivos de curto prazo, já que diversos sindicatos e centrais estão completamente comprometidos com os patrões, com o Estado e com os partidos políticos, obviamente em detrimento dos trabalhadores.

O problema se aprofunda na discussão dos objetivos de longo prazo. Ou seja, finalmente, onde querem chegar os movimentos? Se a maior parte dos movimentos sociais, excluindo os sindicatos, está formada a partir dos objetivos de curto prazo, também é verdade que a maioria não possui objetivos ou perspectiva de longo prazo. Para essa maioria, a conquista imediata é o fim: conquistando a moradia termina a luta, conquistando terra termina a luta, e assim por diante.

Isso permite considerar esses movimentos reformistas, já que seu fim último encontra-se com a realização dos objetivos de curto prazo dentro do capitalismo. No caso do sindicalismo, se a grande maioria não tem sequer objetivos de curto prazo, o que dizer da perspectiva de longo prazo…

Sem a perspectiva de longo prazo, os movimentos não possuem um “norte”, que os permita caminhar com certa unidade. E a falta deste “norte” faz com que o movimento torne-se um verdadeiro barco sem bússola que, com freqüência, gira em torno de si mesmo sem conseguir avançar. A falta de perspectiva de longo prazo faz com que os movimentos girem em torno de si mesmos, contribuindo com os processos de burocratização.

b.) Utilização de meios inadequados para os fins que se quer atingir

Pensando de maneira estratégica, é possível afirmar que são os meios que conduzem aos fins. Utilizando uma metáfora, pode-se afirmar que se queremos ir para o Rio de Janeiro, saindo de São Paulo, não adianta pegarmos uma estrada que vá para Curitiba. Se pegarmos a estrada para Curitiba, chegaremos em Curitiba e não no Rio de Janeiro.

O raciocínio pode parecer ingênuo, mas não é. Ele aponta conceitos básicos em torno da discussão de estratégia e tática: os objetivos estratégicos devem determinar a estratégia e esta deve determinar as táticas. Portanto, a realização das táticas deve contribuir com o avanço da estratégia e com a aproximação dos objetivos. Um movimento social que não consegue atingir seus objetivos, como já colocado, é um movimento que não possui eficiência.

Diversos equívocos nas escolhas dos meios utilizados pelos movimentos sociais os têm conduzido a fins distintos daqueles que haviam sido planejados ou daqueles que deveriam, de fato, ser os seus fins.

Muitas dessas escolhas equivocadas de meios ocorrem por razão de uma concepção que entende que é possível organizar um movimento social utilizando todos os meios disponíveis e forjados pela sociedade presente – ela própria geradora de contradições que deram origem aos movimentos. Dessa maneira, muitos movimentos vêm incorporando meios da atual sociedade, tais como instrumentos, práticas, valores, imaginando que, com a sua utilização, seja possível chegar a uma nova sociedade.

O Estado talvez seja um dos aspectos mais evidentes. O atrelamento dos movimentos sociais ao Estado – aconteça ele vindo de cima, com leis que façam essa vinculação, como no caso do movimento sindical, ou sendo buscado pelo próprio movimento – significa juntar-se a um instrumento que faz parte do capitalismo. O Estado não é uma estrutura política independente e neutra em relação à economia capitalista e suas relações. Ele faz parte do capitalismo e, junto com outros elementos que constituem a esfera política (militares, jurídicos), a esfera cultural e ideológica e a esfera econômica, dá corpo à sociedade presente.

Atrelando-se ao Estado, os movimentos sociais atrelam-se a um dos instrumentos que é causa do surgimento do próprio movimento social; portanto, é uma aliança com o inimigo. Nesse processo de atrelamento do movimento ao Estado, é comum que o movimento passe a oferecer quadros para a gestão do aparelho burocrático do Estado, afastando-se da luta e fazendo o movimento funcionar em razão das demandas burocráticas do Estado, e não mais das suas próprias demandas. Processo semelhante ao que se dá quando o movimento adota uma estratégia eleitoral, visando eleger candidatos para o Estado para, daí, empreender a luta, de dentro da institucionalidade do Estado. É comum que tanto nos momentos de eleição como em outros, o movimento vire uma máquina para conseguir quadros, fazer propaganda, disputar votos, afastando-se das suas lutas, que terminam virando bandeiras secundárias, atrás dos interesses político-eleitorais.

Mas não é somente quando o movimento considera o Estado como um meio que esse mecanismo toma corpo. Há diversas outras práticas que utilizam como meio elementos da atual sociedade: quando o movimento herda do capitalismo sua forma de organização, utilizando a divisão do trabalho e a hierarquia (gerando direção e base com as implicações já comentadas); quando o movimento estimula internamente as práticas individualistas, em que cada um é responsável somente pelas suas coisas, quando há competição entre militantes, não há espaços coletivos de interação; quando o movimento passa a obter formas de financiamento que lhe atrelam a outros interesses e lhe tiram a autonomia; quando o movimento perde-se na gestão de altas somas de dinheiro, tornando-se a gestão da máquina do movimento mais importante que o movimento (fundamentalmente no movimento sindical); quando se perde a capacidade de crítica e autocrítica e, portanto, não se reflete sobre os problemas e sua superação para avançar; quando comportamentos e relações da sociedade presente se instalam dentro dos movimentos, pela valorização da produtividade, a falta de solidariedade, as listas de presença, os sistemas “meritocráticos” de pontuação etc.

Todos estes meios, que pertencem à lógica da sociedade presente, impulsionam os movimentos para fins que não condizem com seus objetivos. Se os movimentos sociais são gerados pelas contradições dessa sociedade, a utilização de seus meios não conduzirá o movimento à resolução de seus problemas, e muito menos dessas contradições. Meios que são gerados e sustentados para dar continuidade à forma existente da atual sociedade, ao serem utilizados pelos movimentos, levam a fins que, longe de resolver seus problemas, tenderão a acentuá-los.

c.) Transformação dos meios em fins

Diferente do mecanismo anterior, em que determinados meios conduzem a fins inadequados, a transformação dos meios em fins constitui um outro mecanismo que se evidencia quando os meios escolhidos pelo movimento social, que deveriam constituir os caminhos para levar a um fim determinado, transformam-se nos próprios fins.

Quando este mecanismo evidencia-se na prática, o movimento social não atinge nem mesmo seus objetivos de curto prazo, pois anda em círculos. As atividades realizadas, que deveriam reunir os recursos adequados e escolher os melhores caminhos para a luta, na realidade, passam a ter por objetivo sua própria manutenção, afastando a militância da busca pelos objetivos e, nos casos mais graves, da própria luta do movimento.

Há, na realidade, uma série de meios que os movimentos utilizam para atingir seus fins, dentre eles os recursos – materiais (financeiros e infra), humanos (militância e apoio) e organizativos (espaços de coordenação/articulação) – e os próprios caminhos escolhidos para a luta.

Meios transformam-se em fins em um movimento social quando diversas atividades passam a ter prioridade sobre a luta e a mobilização pelas reivindicações, em torno das quais se organizou o movimento: o esforço para conseguir/manter/aumentar os recursos materiais do movimento (dinheiro e infra); militantes sustentados por cargos remunerados e, como empregados, seu interesse em manter os empregos; a manutenção de processos e estruturas do movimento; a gestão dos recursos e dos espaços organizativos; as trocas de favores para conseguir maiores recursos etc.

Além desses fatores, que possuem relação com os recursos, este mecanismo também diz respeito aos caminhos escolhidos pelo movimento social. Quando o movimento aproxima-se do Estado, muitas vezes incorporando-se nele e acreditando que sua função é a gestão do aparelho do Estado; a participação nos processos político-eleitorais, envolvendo a maior parte do esforço do movimento na organização e na realização de campanhas para candidatos; os projetos de construção político-partidária e mesmo a utilização do movimento tão-somente como fonte de votos ou quadros para partidos; acordos com capitalistas que muitas vezes beneficiam quem negocia em detrimento dos outros; projetos de poder (conquista/manutenção) que dão privilégios a alguns poucos em detrimento da maioria. Há certamente muitos outros exemplos.

O que quero evidenciar, ao tratar deste mecanismo, é a escolha de meios que, pela sua própria dinâmica, tendem a perpetuarem-se como fins em si mesmos, a partir da reprodução das tarefas do dia-a-dia, que se sobrepõem à luta e à mobilização do movimento. O objetivo do movimento torna-se conseguir ou gerir recursos, defender o próprio emprego (no movimento), gerir o Estado (e conseqüentemente intermediar o processo de luta de classes), eleger políticos, fortalecer partidos, conquistar e manter-se no poder etc. Em suma, faz-se de tudo, menos aquilo que o movimento social se dispôs a fazer: buscar conquistas reais para problemas reais.

d.) Desperdício de força social

Pode-se afirmar que um movimento social precisa aproveitar seus recursos da melhor forma e ter processos e estruturas que condigam com as suas necessidades reais, visando aumentar permanentemente sua força social, ou seja, sua capacidade de, no jogo de forças da sociedade, conseguir atingir seus objetivos.

O desperdício de força social acontece quando os recursos não são utilizados da melhor maneira possível: quando a base é subjugada pela direção e tem todo o seu potencial perdido; quando o movimento opta somente pela quantidade e não pela qualidade da militância; quando o movimento é sectário, e não consegue se relacionar com um conjunto amplo de indivíduos, grupos ou outros movimentos, privando-se das alianças; quando tem gastos desnecessários e/ou corrupção; quando estruturas organizativas são subutilizadas; quando há excesso de processos e estruturas, pessoas fazendo o que não é necessário, pouca gente envolvida com atividades importantes (trabalho de base, por exemplo) etc. Com esses desperdícios, o movimento social limita seu acúmulo de força social e perde em capacidade de atingir seus objetivos.

No entanto, evitar o desperdício de força social não significa pensar no movimento como uma empresa e utilizar meios que aparentemente aumentam sua força social (estrutura hierárquica, divisão do trabalho, etc.). As estruturas de movimentos sociais que se baseiam em empresas privadas (como alguns movimentos sociais dos EUA, por exemplo) vêm mostrando que a “racionalidade capitalista” aplicada nas lutas conduz muito mais à perda, do que ao ganho de força social dos movimentos, e, portanto, deve ser descartada. Afinal, buscar potencializar a força do movimento envolve uma preocupação necessariamente com o que se colocou em termos de meios e fins.

Os problemas que envolvem meios, fins e desperdício de força social

Na realidade, todos os apontamentos feitos partem de algumas premissas: que os movimentos sociais são constituídos a partir de situações que envolvem disputa de poder e dominação de uns setores por outros; que esses movimentos, assim, têm por objetivo de curto prazo conquistas que podem se dar nas diferentes esferas (econômica, política e ideológica-cultural), acabando ou ao menos minimizando os efeitos dessa dominação; que esses movimentos, enquanto não superarem a lógica da sociedade presente, continuarão a existir em maior ou menor medida; que, portanto, os movimentos devem apontar para uma transformação da sociedade presente e que, por isso, constituem em si mesmos o germe da sociedade futura.

A partir destas premissas é possível afirmar a necessidade de determinas condições teóricas e práticas dos movimentos sociais, que consigam dar a eles a capacidade de realizar esta dupla função: a luta de curto prazo para a solução das situações mais evidentes que lhes deram origem e que tem por objetivo as conquistas imediatas e, em um segundo momento, a continuidade da luta, as alianças e uma radicalização que aponte para uma transformação social radical e a superação da ordem atual das coisas na atual sociedade – ou seja, um processo revolucionário.

Os processos de burocratização constituem um entrave para o desenvolvimento de um projeto revolucionário.

Os mecanismos de burocratização que envolvem meios, fins e desperdício de força social contribuem significativamente com a burocratização. Como coloquei, a questão dos objetivos dos movimentos é central para o desenvolvimento de suas atividades e a situação atual é complicada. Se por um lado a falta da perspectiva de longo prazo na grande maioria dos movimentos prejudica um processo de transformação mais amplo, nem mesmo os objetivos de curto prazo existem, para além da retórica, em vários desses movimentos.

Sem objetivo não há estratégia e tática e, por conseqüência, não há condições de avanço do movimento social. Se não há objetivos, não há conquistas e o movimento perde sua razão de existir. Ainda assim, se existem objetivos de curto prazo, mas não existe uma perspectiva de longo prazo, os movimentos caem inevitavelmente em uma lógica de reformismo e corporativismo que impede uma transformação social que ataque mais diretamente as raízes do sistema que origina as diferentes dominações.

Juntamente com a reflexão sobre os objetivos, é necessária uma discussão sobre meios e fins. Os meios escolhidos apontam para os fins desejados? Aspectos que deveriam ser os meios do movimento estão se tornando fins em si mesmos?

Essas questões não podem ser evitadas, já que a escolha de meios equivocados levará, necessariamente, a fins equivocados, ou mesmo a nenhum fim. A utilização de instrumentos, práticas e valores da sociedade presente, o atrelamento ao Estado, a priorização das eleições, a transformação das tarefas do dia-a-dia em fins são fatores que levam o movimento a não conseguir suas conquistas. E mais: impedem-no de conseguir desenvolver um projeto de longo prazo de construção de uma nova sociedade.

O desperdício de recursos necessariamente significa perda de força social e, quanto mais ele ocorre, menos o movimento tem capacidade de luta. Portanto, também é um fator importante no processo de burocratização que se coloca como entrave para as lutas de curto e longo prazo dos movimentos.

Finalmente, é necessário colocar que a reflexão dos movimentos sociais, levando em conta essa dupla função colocada, deve considerar, criticamente, a relação entre meios e fins e a necessidade permanente de aumento de força social do movimento social.

Bibliografia completa ao final do 5º artigo da série.

Pode ler aqui os outros artigos desta série:
1) Os movimentos sociais na história
2) Um método de análise para os movimentos sociais
4) Programa antiburocrático e poder popular
5) Uma discussão entre teoria e prática

2 COMENTÁRIOS

  1. Queria me focar em somente uma parte ,apesar do texto todo ser muito interessante.

    “Um caso muito comum é o da relação entre movimentos sociais e partidos. Sejam esses partidos revolucionários ou reformistas, neste caso, eles colocam-se sobre os movimentos sociais, constituindo, de fato, suas direções. Independente do motivo disso acontecer – pode ser por uma concepção ideológica de que o movimento social só tem capacidade de realizar lutas de curto prazo, e que a consciência lhe deve ser trazida de fora, ou por posições mais pragmáticas, de angariar apoiadores e votos para uma campanha eleitoral, entre outros –, o fato é que o movimento social passa a não ter mais capacidade de autodeterminação; não decide mais sobre aquilo que lhe diz respeito: seus objetivos, seus meios de luta, suas alianças, etc. Nesta relação de subordinação do movimento em relação ao partido, o movimento atua em proveito de interesses alheios, diferentes dos seus.”

    Concordo que a maioria,senão todas, organizações partidárias constroem suas direções a partir da intervenção nos sindicatos.

    “Sejam esses partidos revolucionários ou reformistas, neste caso, eles colocam-se sobre os movimentos sociais, constituindo, de fato, suas direções”

    Não concordo com a parte que diz que:

    “independente do motivo disso acontecer…o fato é que o movimento social passa a não ter mais capacidade de autodeterminação; não decide mais sobre aquilo que lhe diz respeito: seus objetivos, seus meios de luta, suas alianças, etc.”

    Aqui identifico uma postura hostil a partidos nos movimentos. O Homem-partido é um ser como qualquer outro, esta inserido num conjunto de relações politicas-sociais-econômicas como qualquer outra pessoa, seja partidária ou não, dos movimentos.

    Então não vejo como definir quem,naquela diversidade de subjetividades, esteja mais “afinado” com os objetivos do movimento…até porque não existe um objetivo fixo e imutável que normalize um critério para se avaliar quem esta de acordo com os objetivos e quem não esta…

    os objetivos gerais de um movimento pode mudar em um determinado momento por influencia de qualquer um de seus membros, inclusive os partidários, e querer to a participação de partidários no movimento é uma forma de demarcar um feudo para qualquer outra subjetividade, não partidária, que se expresse no movimento.

    Quando concordo que geralmente os partidos se apropriam do movimento para construir suas direções, é num aspecto mais fisiológico do termo.

    E isso vale principalmente para os partidos ditos “revolucionários”.

    Para criar uma estrutura leninista, profissional, que dispute o poder do estado, é necessário ter homens e mulheres que dediquem 100% de seu tempo para o partido, os chamados funcionários de partido.

    Por razões históricas que não vou comentar aqui, no brasil, uma forma que essas organizações encontraram de manter esses “profissionais partidários” e ,portanto,construir sua coluna de “quadros” dirigentes,foi a de utilizar a estrutura dos sindicatos para colocar seus militantes, via liberados sindicais, jornalistas,advogados,etc..que passam a trabalhar nos sindicatos.

    E trabalhar nos sindicatos para essas pessoas significa ter ,senão 100 %, 95 % do tempo livre para se dedicar a estruturação do partido.

    na minha percepção essa é a forma concreta com que os partidos se apropriam do movimento.

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