Por Paulo Marçaioli

O autor

David Harvey é um geógrafo britânico, professor de universidades norte-americanas. Suas pesquisas são focadas particularmente sobre o estudo das cidades – as análises sobre as implicações econômicas, sobre a arquitetura das cidades e as noções de espaço-tempo discutidas em Condição Pós-Moderna sinalizam o diálogo particular de Harvey com a geografia. Condição Pós-Moderna é o seu terceiro livro, tendo sido lançado no Brasil em 1993[*].

Visão panorâmica da condição pós-moderna

O novo valor atribuído ao transitório, ao fugidio e ao efêmero, a própria celebração do dinamismo, revelam um anseio por um presente estável, imaculado e não corrompido” – Jürgen Habermas, citado por David Harvey.

O livro de Harvey tem seu formato pensado e organizado de maneira a oferecer uma crítica dialética do que é apresentado como “condição pós-moderna”. O significado dialético da análise de Harvey refere-se ao esforço de confrontar as tendências da arte, da arquitetura, da filosofia e da política pós-modernas com as exigências econômicas decorrentes dos ciclos de expansão e crise do capitalismo. É nesse sentido que toda a análise de Harvey acerca da “Condição Pós-Moderna” diz respeito a certa condição histórico-geográfica.

O próprio autor dá uma boa síntese das suas preocupações e objetivos da obra.

“Por meio do primeiro (materialismo histórico), podemos compreender a pós-modernidade como uma condição histórico-geográfica. Com essa base crítica, torna-se possível lançar um contra-ataque da narrativa contra a imagem, da ética contra a estética e de um projeto de Vir-a-Ser em vez de Ser, buscando a unidade no interior da diferença, embora um contexto em que o poder da imagem e da estética, os problemas da compreensão do tempo-espaço e a importância da geopolítica e da alteridade sejam claramente entendidos”. (Pg. 325)

Destacamos a ponderação final do autor: reconhecer a necessidade de ampliar o campo de compreensão da alteridade e o que ele chama de novas relações de “tempo-espaço” também deve ser objeto das análises críticas. Se a intenção geral de Harvey nos pareceu lançar uma crítica sobre a condição pós-moderna, se apropriando da dialética e da ideia do materialismo histórico, sua opção metodológica não implica na mera negação “em bloco” dos questionamentos dos desafios teórico-metodológicos colocados pela “condição pós-moderna”. Muito pelo contrário: há, sim, o esforço de se promover uma “renovação do materialismo histórico-geográfico (que) pode na verdade promover a adesão a uma nova versão de projeto do Iluminismo”.

Outro aspecto interessante da obra, e que igualmente sinaliza a apropriação da dialética como fonte de crítica social, é a própria forma como o ensaio é dividido. As quatro partes do texto complementam e confrontam ideias entre si, de maneira que a parte 4 (Condição Pós-Moderna) corresponde a uma síntese das discussões acerca do significado geral das mudanças culturais, geográficas (ideia de espaço-tempo) e políticas da fase da acumulação flexível.

Breve síntese do ensaio

Na Parte I, “A Passagem da Modernidade à Pós-Modernidade na Cultura Contemporânea”, são apresentados em linhas gerais os elementos que configuram a estética pós-moderna, destacando-se especialmente a arquitetura, de maneira a introduzir o debate, ilustrando a forma como a condição pós-moderna se situa no espaço urbano, na arte, na publicidade, nos meios de comunicação. Há a exposição da forma como o discurso da pós-modernidade incide no cotidiano, sugerindo a atualidade do debate. Neste momento, ainda não identificamos as posições políticas do autor com relação ao problema.

Na Parte II, “A Transformação Político-Econômica do Capitalismo do Final do séc. XX”, as atenções do autor voltam-se para as relações econômicas, e particularmente o momento de transição das formas de organização do trabalho. A transição do modelo fordista ao modelo da “acumulação flexível” passa a subsidiar o entendimento materialista histórico-geográfico da condição pós-moderna. A definição de acumulação flexível parece ser do próprio autor (não conhecemos a origem da expressão) e é amplamente descrita, a partir de gráficos e tabelas, como momento da reestruturação produtiva do capitalismo a partir dos anos 1970.

“A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional”.

«Será que chegou a hora de olhar para além do capitalismo, em direcção a uma nova ordem social que nos permita viver num sistema responsável, justo e humano?»

Evidentemente, as mudanças econômicas exigem transformações nos discursos que dão sustentação à natureza ideológica do trabalho. Harvey identifica autores que falam em “fim do trabalho”, particularmente Gorz, com distorções que têm a ver com a condição pós-moderna.

Na Parte III, na nossa opinião o momento mais complexo e difícil do texto, Harvey discute as experiências do espaço-tempo ao longo da história: do começo da modernidade, referindo-se às mudanças das noções de espaço e tempo decorrentes das transformações tecnológicas, políticas e sociais do início da modernidade, o sentido de tempo e espaço dentro do projeto iluminista e, talvez o capítulo mais interessante do livro, a discussão do tempo e espaço no cinema pós-moderno a partir de análises dos filmes “Blade Runner”, de Ridley Scott, e “Asas do Desejo”, do cineasta alemão Wim Wenders.

O que há de comum nas duas películas é a forma como  é retratado o espaço-tempo na pós-modernidade. A tese de Harvey é a de que, ao contrário do momento iluminista em que a noção do “Vir-a-Ser” tem importância central na percepção social do tempo e do espaço – remetendo, na nossa interpretação, a uma história dotada de sentidos – a condição pós-moderna, ao afastar o “Vir-a-Ser” e instaurar a hegemonia do “Ser”, implica numa crise de representatividade do tempo e do espaço, dinamizada pela lógica da acumulação flexível. No Caso de “Blade Runner”, a crise diz respeito às experiências dos “Replicantes”, espécies de robôs fabricados à imagem e semelhança dos homens, que têm sentimentos, mas não têm história de vida: são simulacros de pessoas que, ao final do filme, pouco se diferenciam dos homens enquanto sujeitos sociais e históricos. As diferentes noções de tempo e espaço, vivenciadas por personagens que convivem e interagem, também aparecem em “Asas do Desejo”, estabelecendo relações entre homens e anjos, mortais e imortais, pouco se podendo diferenciar passado, presente e futuro.

Tais exemplos sinalizam aquilo que se chama de crise da representatividade do Tempo e Espaço. Mais uma vez, o desafio aqui é identificar tais crises não enquanto inevitabilidades que corroboram uma visão irracionalista da vida – aquilo que Carlos Nelson Coutinho diria ser a “Miséria da Razão”.

O desafio é transpor os discursos ideológicos identificando as crises de representação enquanto partes de um determinado desenvolvimento histórico pautado por exigências econômicas e pelos conflitos de classe. Este é o termo a que se chega na Parte IV. Há aqui uma proposta de síntese, sinalizando, dentre outros, os desafios colocados pela Condição Pós-Moderna àqueles que lutam por uma sociedade que, nas palavras de Harvey, equipare as potencialidades econômicas às necessidades humanas, o que quer dizer socialismo.

O materialismo histórico frente à crise da representação do espaço-tempo

O sentido e as implicações gerais da Condição Pós-Moderna podem não ter sido bem captadas pela esquerda, de maneira a não contrapor as críticas acerca da “insuficiência” ou “reducionismo” do materialismo histórico e dialético frente às esferas culturais e políticas da era da acumulação flexível. Particularmente, a reflexão acerca da crise das representações de tempo-espaço deve ser objeto de atenção, até para se considerar em que medida formas de organização e intervenção política anticapitalistas podem estar desgastadas frente às circunstâncias tecnológicas e sociais que viabilizam trocas de experiência e de ideias em curto espaço de tempo. Ações diretas, lutas espontâneas, intervenções lúdicas e poéticas podem somar-se às tradicionais formas de resistência e mobilização, contrapondo a crise de representação de tempo-espaço a uma percepção humanista e dotada de sentidos acerca do tempo e do espaço. Capacitar estudantes e trabalhadores a serem protagonistas históricos significa também combater os discursos de fragmentação ou eliminação da história, decorrentes daquela crise de representação.

David Harvey

Harvey elenca quatro itens que, no nosso entendimento, bem corresponderiam a quatro novas exigências de estudo por parte da esquerda diante da era da acumulação flexível. Vale a pena citar os quatro desafios, a título de conclusão.

1. O tratamento da diferença e da “alteridade” não como uma coisa a ser acrescentada a categorias marxistas mais fundamentais (como classe e forças produtivas), mas como algo que deveria estar onipresente desde o início em toda tentativa de apreensão da dialética da mudança social. A importância da recuperação de aspectos da organização social como raça, gênero, religião, no âmbito do quadro geral da investigação materialista histórica (com a sua ênfase no poder do dinheiro e na circulação do capital) e da política de classe (com sua ênfase na unidade da luta emancipatória) não pode ser superestimada”.

2. Um reconhecimento de que a produção de imagens e discursos é uma faceta importante de atividade que tem que ser analisada como parte integrante da reprodução e transformação de toda ordem simbólica. As práticas estéticas e culturais devem ser levadas em conta, merecendo as condições de sua produção cuidadosa atenção.

3. Um reconhecimento de que as dimensões do espaço e do tempo são relevantes, e de que há geografias reais de ação social, territórios e espaços de poder reais e metafóricos que se tornam vitais como forças organizadoras na geopolítica do capitalismo, ao mesmo tempo em que são sede de inúmeras diferenças e alteridades que têm de ser compreendidas tanto por si mesmas quanto no âmbito da lógica global do desenvolvimento capitalista. O materialismo histórico finalmente começa a levar a sério sua geografia.

4. O materialismo histórico-geográfico é um modo de pesquisa aberto e dialético, em vez de um corpo fixo e fechado de compreensões. A metateoria não é uma afirmação de verdade total, e sim uma tentativa de chegar a um acordo com as verdades históricas e geográficas que caracterizam o capitalismo, tanto em geral como em sua fase presente”.

Nota

[*] Resenha dedicada ao Rodrigo Araújo, que me indicou a leitura deste livro há um tempo atrás. A obra foi publicada pela Editora Loyola.

4 COMENTÁRIOS

  1. Li o Condição Pós Moderna, atualmente é uma de minhas bases para reflexão da sobre planejamento urbano. Ontem mesmo fiz uma conferência sobre o tema no curso de Arquitetura e Urbanismo da Unicamp, onde abordei as questões da proletarização do profissional de arquitetura e urbanismo, sob o modo de produção flexível, que conjugado aos novos meios digitais, poderia conduzir o profissional a essa situação deletéria (Pedro Arantes,2010). Mas, escrevi particularmente, para fazer uma observação sobre a origem do termo acumulação flexível, que se opõe à acumulação fordista, e designam modos de acumulação capitalista, provindo das questões de produção, ou seja: ao reconhecido método de produção fordista, equivale uma acumulação fordista, e assim por diante; a questão da produção flexível, em verdade, origina-se de uma noção de engenharia de produção mecânica que concebe a célula flexível de produção, e se opõem à tradicional linha de produção, – automobilística, por exemplo, que imperou desde o fordismo. No caso das células flexíveis, a idéia era justamente solucionar problemas originários da rigidez das linhas de montagem, que tem de ser paralisadas sempre que elementos especiais na produção do produto, nelas são introduzidas, de tal forma que, com elas nunca era possível viabilizar variedades de uma produção personalizada, hoje tão comum entre os produtos industriais.

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