A extrema-esquerda hoje, tal como no passado, vê-se arrastada entre duas correntes: a crítica ao crescimento econômico e seus efeitos, com o que lançam-se ao isolamento, ou a adesão crítica às políticas de crescimento econômico e distribuição de renda, com o que condena-se a perder relevância política. Por Manolo

O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na economia e na política globais. Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora das fronteiras – desenvolvendo as empresas transnacionais de origem brasileira. Nunca antes a política externa brasileira foi tão independente – com base na exploração dos recursos econômicos da América Latina e na disputa de mercados e de espaços de investimento em África. Nunca antes o Brasil foi tão engajado – ao ponto de grandes capitalistas apoiarem políticas compensatórias “de esquerda”. Na verdade – e é o que queremos investigar com esta série de artigos – nunca antes o Brasil foi tão imperialista.

Leia aqui as demais partes do ensaio: [1][2][3][4][5][6][7][8][9][10]

Chegamos ao fim de nossa jornada através da história da esquerda brasileira nas décadas de 1950 e 1960. As rápidas passagens pela história da formação e composição da classe trabalhadora no Brasil e das organizações políticas que pretenderam representá-la não foram outra coisa além de preparações para voltarmos àquilo que dizíamos na primeira parte e para somarmos algumas outras considerações ao que já foi dito. O debate deste ensaio, aqui, abandona seu caráter meramente “historiográfico”. Tão longo resgate de fatos bem conhecidos – e outros nem tanto – da história brasileira relativamente recente serviu para trazer para o presente questões tão antigas quanto a própria esquerda.

A expressão política dos trabalhadores, como se processa? No capitalismo, a luta em torno do caráter do desenvolvimento econômico não é outra coisa além da luta em torno da instituição das formas de extração da mais-valia relativa e sua articulação com as formas de extração da mais-valia absoluta preexistentes. Esta é uma luta ainda em aberto, travada cotidianamente por cada trabalhador contra aqueles que o exploram. Sua reiteração engendra projetos políticos, imediatos e mediatos, condicionadores de sua “consciência de classe”. Toda discussão sobre o assunto, por esta perspectiva, sai do campo fluido das “ideias” e enraíza-se no próprio processo de produção da vida material.

metalurgicoDa mesma forma, quem diz revolução social fala de uma mudança profunda nas relações constituintes da vida social; mesmo organizações políticas com legitimidade social e política suficientes para canalizar tais mudanças – pela força ou pela modificação paulatina – jamais conseguiriam realizar sozinhas uma revolução com tal caráter, pois trata-se de mudanças a serem feitas por classes inteiras. As organizações políticas, por este ponto de vista, têm relativizado seu papel de sujeitos políticos e passam a compartilhá-lo com seu papel de instrumentos para as classes sociais, que legitimam-nas somente e na medida em que lhes sirvam para articular suas lutas políticas, para veiculá-las, para fortalecê-las. Por isto, as lutas atravessam todas as organizações políticas existentes, tanto no sentido de que, por serem generalizadas, necessariamente exigem tomadas de posição por parte delas, quanto no sentido de que nenhuma organização é monolítica, e suas disputas internas não são outra coisa além de luta entre classes e setores de classe distintos. Sem conhecer e compreender primeiro as lutas travadas entre si pelas classes reciprocamente antagônicas e seus setores – mesmo as pequenas, miúdas, de impacto extremamente reduzido e localizado – jamais se poderá saber a quem estas organizações servem de instrumento. Melhor ainda é quando tal conhecimento e compreensão se dá no seio das próprias lutas enquanto se participa delas, pois aí é onde as interpretações dão lugar à prática viva e cada classe ou setor de classe apresenta suas armas e seus aliados sem chance de escamoteamentos.

prsi0203Isto é o b-a-bá da política, embora algo lhe seja preciso acrescentar: o mesmo processo leva diferentes setores dentro da mesma classe social a desenvolver aspirações diversificadas dentro de um quadro mais amplo de aspirações políticas gerais da classe a que pertencem, de acordo com o lugar que ocupam no processo de trabalho[1]. Estes projetos políticos de classe, em geral, se dão a conhecer mais pela prática das classes em luta que pelas declarações, mesmo as “mais revolucionárias”, das organizações que pretendem representá-las; são tão “mais revolucionários” quanto mais empolgarem um número crescente de pessoas que os compreendam intimamente e lutem por sua implementação como se fossem criações suas – e, em tais circunstâncias, o são de fato.

professoraPor esta perspectiva, a apropriação ou rejeição do programa das organizações da esquerda e da extrema-esquerda pelos trabalhadores assume novos contornos. Não é possível conceber o projeto político de uma classe apenas a partir de sua aproximação com tais ou quais organizações – como se o gestassem de fora e o portassem necessariamente – ou com sua “paciência” ou “impaciência” diante dos “desafios históricos”; daí dizer que aquilo a que chamamos de “esquerda” no campo político se formou a partir das lutas a que incessantemente nos referimos, embora nem sempre suas propostas coincidissem com aquilo que os trabalhadores propuseram a partir de suas lutas. Neste ensaio, mesmo com severas limitações, foi possível avançar algumas hipóteses quanto ao desenvolvimento capitalista no Brasil, e tentou-se minimamente correlacionar a história deste desenvolvimento com a história da esquerda e da extrema-esquerda. É impossível deixar de notar que tanto uma quanto a outra tentaram interpretar a história do Brasil de diferentes maneiras; as interpretações apresentadas, entretanto, não foram outra coisa além de argumentos para a luta, forjados na própria luta, de acordo com o arco de alianças de cada grupo e com a relação mantida com as lutas cotidianas dos trabalhadores, e que tais interpretações, por isto mesmo, correram o risco de representar apenas a “verdade” do setor de classe que representam.

industrializacaoO Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), assim como suas dissidências, herdou uma tradição corporativista com fortes ligações com o fascismo[2], recauchutada com umas doses de trabalhismo britânico e outras de radicalismo retórico, talhada na medida para a burocracia sindical e os “doutores” – Alberto Pasqualini, San Tiago Dantas, Almino Affonso etc. – que, como fração da classe dos gestores, tomaram como seu o projeto industrializante herdado de Getúlio Vargas. Malgrado os pífios resultados, em termos salariais, dos governos que apoiou ou conduziu, o PTB cresceu eleitoralmente durante toda a década de 1950 e chegou à década de 1960 sendo a segunda força política no Congresso, com 136 deputados, atrás apenas do seu quase-irmão, dono de 141 cadeiras no parlamento, o Partido Social Democrático (PSD), instrumento político de profissionais liberais, da burguesia industrial, de setores das oligarquias tradicionais aderentes ao varguismo e da fração dos gestores menos afeita à turbulência sindical. No Ministério do Trabalho, cujos cargos eram talvez o principal objetivo de vida da militância sindical petebista, seu predomínio era absoluto. Para um partido eleitoralista e pragmático, sustentáculo político do nacional-desenvolvimentismo junto com o PSD, criado para instituir medidas concretas de consolidação de um equilíbrio entre classes, centrado tática e estrategicamente na ocupação de postos na máquina do Estado (especialmente no Legislativo e na burocracia do Executivo) sem qualquer pretensão de superação da ordem capitalista, isto tudo era nadar de braçada. Embora o operariado urbano por vezes fugisse ao controle da burocracia sindical a ele filiada – em especial durante a crise política que culminou no suicídio de Vargas e durante a crise de regime aberta pela renúncia de Jânio Quadros em 1961 – não se pode dizer que esta exceção pautasse o comportamento do partido. A regra, na verdade, era a confluência entre acordos de cúpula no campo político e mobilização junto às bases partidárias no campo sindical e social. Os primeiros, embora atendessem a anseios tanto da burocracia partidária quanto das bases em luta, eram voltados para tentar evitar sua radicalização; a segunda demonstra que os trabalhadores, mesmo aqueles que não confiavam totalmente no tipo de política tutelar patrocinada pelo PTB, usavam o partido como instrumento em suas lutas, exigindo mais e mais daqueles que diziam representá-los no campo político e forçando-os, amiúde a contragosto, a radicalizar-se, sob pena de ficarem para trás e tornarem-se incapazes de tutelar e conduzir as lutas. Foi esta radicalização quem transformou o PTB, paulatinamente, de um partido de centro num partido de esquerda, o que justifica sua presença neste ensaio; as aspirações “socialistas” e “ecléticas” de sua intelectualidade – Darcy Ribeiro, Alberto Guerreiro Ramos, Alberto Pasqualini etc. – jamais conseguiriam empurrar seus filiados para a esquerda se não se fizessem presentes as condições objetivas por demais analisadas neste ensaio.

O Partido Socialista Brasileiro (PSB), apesar do reconhecido compromisso com a construção de uma alternativa socialista diferente daquela do bloco soviético, da presença marcante – embora restrita – no movimento sindical e cooperativista, de suas iniciativas de formação de quadros, da aproximação com as Ligas Camponesas através de Francisco Julião e do decidido apoio à esquerda clandestina (inclusive com cessão de legenda para candidaturas), nunca pretendeu ser um “partido operário” como outros mais à esquerda. Apesar de o partido ser cindido internamente entre os “doutores” e os “sindicalistas” – indicando uma preponderância de gestores de médio e alto escalão no campo hegemônico do partido – tanto um quanto outro setor aferraram-se fortemente a táticas eleitoralistas, como demonstra sua aproximação com Jânio Quadros. Foi, ademais, um partido sem grande força política, fadado, durante os anos de radicalização política que precederam o golpe de 1964, a buscar fundir-se a outras correntes próximas ou a dissolver-se dentro do PTB.

O Partido Comunista Brasileiro (PCB), inicialmente um partido de “intelectuais” e sindicalistas intelectualizados, manteve desde a década de 1920 relações amistosas com a pequena-burguesia – ou seja, os gestores em processo de formação no início do século XX; posteriormente, em paralelo à sua expansão e consolidação junto aos trabalhadores, buscou aproximar-se da “burguesia progressista”, tentando obter alguma fatia do bolo nacional-desenvolvimentista. No imediato pós-Segunda Guerra Mundial até o golpe militar de 1964, os “desvios” de “esquerda” e de “direita” cometidos pelo partido foram avaliados não apenas de acordo com a conjuntura internacional, mas também de acordo com sua capacidade de participação na definição dos rumos do desenvolvimento econômico no Brasil dentro de um quadro geral de bipolaridade geopolítica. Os ziguezagues táticos e estratégicos do PCB, entretanto, parecem ter sido condicionados pelo descolamento entre a política de “apertar os cintos” levada adiante pelo partido durante sua curta vida legal entre 1945 e 1947 – talhada para passar uma aura de “respeitabilidade” que os comunistas jamais conseguiriam construir durante a Guerra Fria – e os protestos e greves do imediato pós-guerra, que o partido fez de tudo para “domesticar”[3]. Salvo exceções como a de Caio Prado Jr., as principais interpretações da história brasileira apresentadas por intelectuais filiados ao PCB como Octavio Brandão, Moisés Vinhas, Alberto Passos Guimarães e outros tenderam a reproduzir no campo teórico as alianças feitas no campo político[4]. Para Octavio Brandão, por exemplo, primeiro no partido a tentar uma interpretação das condições específicas da existência do capitalismo no Brasil, o barão do café em São Paulo era um senhor feudal tanto quanto os barões da cana no Nordeste, e seus trabalhadores eram verdadeiros servos a serem libertados pela insurreição capitaneada por Isidoro Dias Lopes em 1924[5]; para Moisés Vinhas, a burguesia nacional apoiaria a reforma agrária para garantir a libertação da força de trabalho e a criação de um mercado consumidor para os produtos industriais[6]; para Alberto Passos Guimarães, o monopólio da terra era pré-condição para a sobrevivência de coerções extra-econômicas como o escravismo ou o servilismo, e a tese do caráter capitalista da agricultura colonial seria “conservadora, reacionária”, pois os restos feudais existentes no campo eram o problema a ser combatido com o apoio da burguesia progressista[7]. Em todos estes casos, a burguesia era o carro-chefe ao qual o partido devia atrelar-se para, com seu peso, orientar-lhe os rumos. Primeiro a revolução democrática, “antifeudal” e anti-imperialista, e depois, alcançada esta etapa, a revolução socialista seria o próximo objetivo; os trabalhadores que tivessem a “paciência histórica” necessária para um projeto de tão longo prazo. Os militantes sindicais do partido, mais hábeis na percepção dos desejos dos trabalhadores que uma cúpula partidária isolada por anos de clandestinidade e confiante apenas nas notícias veiculadas pelos canais do COMINFORM e nos informes conjunturais do governo, perceberam rapidamente o descolamento. Seja por permanecerem nas linhas de produção e nos locais de trabalho, mais próximos das lutas cotidianas dos trabalhadores, seja por estarem encastelados em diretorias sindicais e necessitarem de votos para a continuidade de seus projetos de poder, eram obrigados a levar em conta as necessidades dos trabalhadores. Por isto mesmo, os sindicalistas comunistas foram pioneiros no estabelecimento de uma política de alianças do partido com o PTB e no redirecionamento da política radical instaurada pelo Manifesto de Agosto de 1950, mas era difícil – para não dizer impossível – consolidar tal política de alianças e tal redirecionamento estratégico sem fazer do partido, mesmo involuntariamente, verdadeira “ala esquerda” e conspiratória do trabalhismo.

Vistas as coisas pelo lado da extrema-esquerda, a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (ORM-POLOP) rompeu com o gradualismo do PCB e apostou desde sempre na ruptura da tese dos “restos feudais”, justificadora da aliança com a “burguesia progressista”, e no caráter socialista da revolução no Brasil; o Partido Operário Revolucionário (POR), coerente com a teoria da revolução permanente, previa igualmente o caráter socialista da revolução no Brasil, embora precisasse fazer malabarismos para conciliá-la com as frequentes alianças com forças nacionalistas características de sua atuação. Apesar do relativo sucesso de suas propostas durante a radicalização política iniciada em 1961 e da confirmação pelos fatos das tendências políticas que anteviam em suas publicações, nem a POLOP nem o POR – que dirá a Liga Socialista Independente (LSI) e o Movimento Comunista Internacionalista (MCI) – conseguiram ultrapassar a condição de grupos minoritários, fadados, como os trotskistas, a fazer “entrismo” em organizações maiores – do PCB às Ligas Camponesas – ou, como os polopeiros, a funcionar apenas como um polo aglutinador de intelectuais e de produção intelectual crítica. Documentos autocríticos do POR são pouco conhecidos do público – ao menos de um público não especializado na curiosa história do trotskismo latino-americano. Já a POLOP, através de militantes e ex-militantes, creditou o insucesso de sua transformação em organização política de massas ora à soma do desnível entre quadros, da composição social da organização (maioria de estudantes e profissionais de classe média) e do descolamento entre os interesses dos trabalhadores e as organizações comunistas promovido pelo PCB desde o pós-guerra[8], ora ao fato de haver privilegiado a atuação exatamente onde o PCB era mais forte, quando tinha grande potencial de crescimento junto a camponeses, estudantes, desempregados e subempregados, em especial fora do eixo Rio-São Paulo[9].

Esta dupla confissão de impotência, da esquerda[10] e da extrema-esquerda, certamente quer dizer algo. De um lado, os comunistas viam-se cercados tanto pelas limitações criadas pelo contexto da Guerra Fria – clandestinidade, perseguição, propaganda ideológica adversa, medo do fantasma do “comunismo” etc. – quanto pelo fato de não disporem de uma política geral para o campesinato pelo menos até o IV Congresso e à fundação da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB) em 1954, dependendo, neste setor, do empirismo de sua militância sindical, envolvida em tantas lutas de trabalhadores rurais quantas houvesse ao seu alcance imediato[11]. Isto indica que a base de sustentação do partido era majoritariamente composta por trabalhadores urbanos, disputada palmo a palmo com os trabalhistas, ajudados estes últimos pela forte presença na burocracia estatal e pela legalidade política. Pode-se dizer, em defesa do PCB, que tratou-se de uma opção consciente pelo proletariado urbano, que a indústria tem – como de fato teve – a tendência histórica a superar a produção agrícola, que o volume da produção industrial já ultrapassara aquele da produção agrícola desde 1933 etc., mas esta opção implicou, por causa de fatores demográficos que vigeram até meados da década de 1960 e dos fatores políticos mais que evidentes discutidos na sexta parte deste ensaio, a falar para poucos e nem sempre ser ouvido até que a virada rumo ao nacional-desenvolvimentismo operada no V Congresso (1960) abrisse um campo de atuação mais amplo para o partido. Para viabilizar-se enquanto instrumento político, o partido precisou, portanto, andar ombro a ombro com aqueles que pretendeu combater, ou do contrário minguaria no gueto até sua possível extinção.

Pelo lado da extrema-esquerda, a afirmação de Ruy Mauro Marini quanto ao potencial de crescimento da POLOP junto a setores fora da influência do PCB, assim como o deslocamento do centro de gravidade do POR para o Nordeste quando seu “entrismo” nas Ligas Camponesas passou a dar bons resultados, pouco explicam além da tentativa até certo grau frustrada de preencher um “vácuo político” deixado pelo PCB e, em parte, pelos trabalhistas. A virada rumo ao campesinato, aos desempregados, aos subempregados etc. era viável apenas por se tratar de classes e setores de classe ainda não enquadrados na institucionalidade, com pouco espaço na máquina sindical dominada pelos trabalhistas e, em parte, pelos comunistas. É verdade que o golpe de 1964 cortou qualquer perspectiva de atuação da extrema-esquerda num contexto em que as lutas já houvessem resultado em algumas conquistas e apresentassem um grau mais complexo de institucionalização, mas, tomando certos fatos da época como indicadores de tendências, na medida em que os camponeses conquistaram direitos trabalhistas básicos e os primeiros sindicatos começaram a instalar-se no campo – não sem luta, evidentemente – as Ligas Camponesas, campo preferencial de atuação da extrema-esquerda, começaram a diminuir sua influência, perdendo espaço para comunistas, trabalhistas e católicos.

construcaocivilApesar de todas as dificuldades analisadas, PCB, POR, LSI, MCI e ORM-POLOP sempre tentaram pautar sua ação numa análise ao máximo precisa – em geral coletiva, expressa em programas, manifestos e outros documentos semelhantes – da sociedade e da economia brasileiras e sua inserção na sociedade e na economia globais. O fato de a vivência militante pautar a produção de intelectuais em cujas interpretações da realidade calcamos até hoje as nossas próprias – Florestan Fernandes e Maurício Tragtenberg[12]; Leôncio Martins Rodrigues e Boris Fausto[13]; Tullo Vigevani, Vito Letizia e Maria Hermínia Tavares de Almeida[14]; Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra[15]; Michael Löwy, Luiz Alberto Moniz Bandeira, Eder e Emir Sader[16] etc. – testemunha como o grau de dedicação à localização precisa dos pontos nevrálgicos do funcionamento do capitalismo, para que soubessem como feri-lo de morte, era central na prática da extrema-esquerda que nos precedeu.

Tamanha dependência, embora preste homenagem aos esforços daqueles que nos precederam, não se dá sem problemas. Diferentemente de 1949, quando a agricultura respondia por 77,3% dos postos de trabalho, a indústria por 11,1% e os serviços por 11,6%; diferentemente de 1959, quando a agricultura respondia por 72% dos postos de trabalho, a indústria por 13% e os serviços por 15%; diferentemente de 1970, quando a agricultura empregava 65,7% da mão-de-obra, a indústria 17,7% e os serviços 17,3%; hoje, os serviços empregam 62,1% da mão-de-obra, a indústria 21,3% e a agricultura 16,6%[17]. O avassalador aumento da produtividade no campo, associado à inserção mais profunda dos latifundiários brasileiros nas redes globais de produção e ao esmagamento paulatino da produção agrícola camponesa; a expansão desenfreada da terceirização, com consequente fragmentação de setores inteiros da classe trabalhadora; o que isto significa, no que diz respeito às lutas travadas pelos trabalhadores – em especial quando a reforma agrária não avança? A alta rotatividade nos mais variados postos de trabalho num curtíssimo tempo, em que afeta a formação de relações sociais entre trabalhadores? Qual o grau de solidariedade, ou de repulsão, que se verifica na prática entre trabalhadores de carteira assinada e terceirizados num mesmo local de trabalho, e a que formas políticas correspondem? A expansão da participação das mulheres no mercado de trabalho, com salários menores relativamente a homens no mesmo posto, que consequências políticas gera? Semelhantemente, a inserção desigual de brancos, negros e índios na estrutura produtiva brasileira, e as diferenças salariais entre si quando nos mesmos postos exercendo as mesmas tarefas, no que resulta em termos políticos? São estas análises, impossíveis de serem feitas por nossos velhos companheiros, o que anda faltando à esquerda e à extrema-esquerda brasileiras. Minto; não é a análise o que falta, pois estas há de sobra; talvez o que falte seja tentar integrá-las para compreender como lutam, hoje, os trabalhadores, e para fortalecer seus instrumentos de luta. O capitalismo continua sendo capitalismo, certamente, mas os processos de produção, as formas de acumulação, os meios de exploração, as técnicas de organização da força de trabalho etc. não são mais os mesmos de há sessenta anos.

trabalhoescravonacanaDaí perguntar, à luz destas conclusões: a expressão dos trabalhadores sob o desenvolvimentismo dos últimos quatro anos, como se processa? No debate sobre o assunto, as posições das diferentes organizações da esquerda, aparentemente, expressam as alianças táticas (eleitorais) e estratégicas (programáticas) de cada uma, mas, tal como se viu nas organizações analisadas, expressam posições políticas de classe ou de setores de classe. Partido Democrático Trabalhista (PDT), Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido Comunista do Brasil (PCdoB) pela esquerda; Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Partido Comunista Brasileiro (PCB), Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), Partido da Causa Operária (PCO), Consulta Popular, todas as organizações trotskistas (LER-QI, LBI, POR etc.) e todas as organizações anarquistas (Resistência Popular, Fórum do Anarquismo Organizado, as várias federações anarquistas etc.), pela extrema-esquerda; nenhuma destas organizações está livre de se prestar a tal representação, que devemos compreender não apenas pela leitura de seus programas, mas também pela sua prática, pela sua política de alianças e pela sua relação com as lutas dos trabalhadores. Pode ser cedo demais para obter as respostas para fazer certas perguntas, ou talvez sequer disponhamos das informações suficientes para respondê-las, mas não se pode deixar de fazê-las.

cameloApesar de PDT, PSB, PT e PCdoB comporem um só bloco, a quem cada um destes representa neste bloco, e como sustenta sua representação? Vistas as coisas pelo lado da extrema-esquerda, o que significou, em termos de representação de classe, a frente eleitoral entre PCB, PSTU e PSOL em 2006, que não se reeditou em 2010 mas suscitou uma tentativa de aproximação via debate eleitoral entre PCB, PSTU e PCO? Em nome de que classes ou setores de classe falaram naquele momento, realmente quando os trabalhadores, a julgar pelos resultados eleitorais, pouco interesse demonstraram em suas propostas? Fora do campo eleitoral, o que significaram, em termos da prática de tal ou qual classe, a fragmentação da Central Única dos Trabalhadores em diversas outras centrais sindicais (CTB, CSP-CONLUTAS, Intersindical etc.) e as posteriores alianças e divisões entre elas, especialmente numa conjuntura em que tanto a legislação sindical quanto a prática cotidiana do sindicalismo no Brasil esfumam as fronteiras entre sindicatos e balcões de negócios[18]? O que significa a responsabilização de um partido – o PT – por todas as mazelas da esquerda num determinado período? Se este partido representa projetos de uma classe, ou de setores de uma classe, a quem se está a responsabilizar, realmente, quando se critica suas opções políticas recentes? Que projetos políticos o atravessam? Seja através da surrada hipótese personalista da “traição”, resgatada por trotskistas contra toda e qualquer organização de esquerda cuja política pretendam influenciar de fora; seja através da teoria do “ciclo petista” que se encerra, como alguns na Consulta Popular quiseram justificar transportando o personalismo do nível individual para o coletivo (ou seja, das lideranças “traidoras” para a organização “viciada”); qualquer que seja a interpretação apresentada, sem enraizamento numa análise da composição da classe trabalhadora e sua relação tanto com o PT quanto com quem o critica, nada se conseguirá além de manter-se ao nível da auto-proclamação – ou seja, ao invés de fortalecer-se por seus próprios méritos, desqualificar o adversário para melhorar sua própria situação – e do ocultamento de sua própria base de sustentação.

Num momento de “aceleração do crescimento”, compreender as relações entre estas organizações da esquerda e da extrema-esquerda com as lutas dos trabalhadores – não apenas dos brasileiros, mas da classe trabalhadora globalmente considerada – é fundamental. Mas o legado de nossos velhos companheiros traz consigo certos problemas que põem a esquerda e parte da extrema-esquerda a reboque do “crescimento econômico”, tal como no passado. A crítica feita ao desenvolvimentismo nas décadas de 1950 e 1960 foi atravessada por um nacionalismo que não poderia ser outra coisa além de reativo e tático. Numa conjuntura de efetivo domínio da economia por um bloco formado por burgueses e gestores integrados em nível internacional, ou bem a burguesia e os gestores brasileiros encontravam alguma forma de inserir-se nestas redes produtivas assim constituídas, ou seriam arrostados das melhores posições na repartição global da mais-valia. Não foi outro o sentido das lutas internas entre frações da burguesia e dos gestores nas décadas de 1950 e 1960. Uma vez que a inserção através de um capitalismo de estado havia mostrado seus limites, os investimentos externos diretos foram o caminho encontrado para prosseguir nesta integração. A instalação e ampliação de empresas estadunidenses, alemãs, francesas, canadenses, italianas, suíças etc., detentoras de técnicas de produção mais eficientes, chocou-se com setores do empresariado nacional incapazes de fazer-lhes frente devido à baixa produtividade com que exploravam seus trabalhadores.

serralheiroIsto, por si só, seria motivo suficiente para uma gritaria nacionalista, mas naqueles tempos tumultuosos a partilha geopolítica do mundo em dois blocos antagônicos era um elemento nem um pouco desprezível. Um deles era representado internamente pelo PCB, cunha do bloco soviético na política nacional; o nacionalismo dos comunistas, ao mesmo tempo em que enquadrava-se numa tática internacional de fortalecimento incondicional do bloco soviético, era respaldado internamente pela agitação nacionalista de burgueses e gestores com pouca inserção da repartição global da mais-valia. Já os socialistas do PSB divergiam completamente do modelo socialista implementado segundo o modelo da URSS e de outros países deste bloco; em sua retórica e programas, seu socialismo pretendia ser uma “invenção nacional”, construído a partir das tradições de luta locais[19], e este localismo não poderia deixar de ser, até certa medida, nacionalista. Na extrema-esquerda, já vimos que o POR entendia o nacionalismo como um elemento legítimo dentro das lutas dos trabalhadores; a ORM-POLOP, embora fosse acerbamente crítica ao nacionalismo até sua dissolução, não deixou de flertar com ele[20], em especial quando de sua aproximação com as Ligas Camponesas e o movimento de militares de baixa patente; a LSI parece ter sido a organização mais consequente em sua crítica ao nacionalismo, e por isto mesmo condenou-se ao total isolamento político.

Hoje, empresas brasileiras lançam-se sobre a África e sobre a América Latina, ampliando um processo iniciado ainda nas décadas de 1960 e 1970. Embora crises econômicas abalem esta expansão – afinal, a transnacionalização é uma operação de risco para empresas ainda nas fases iniciais da disputa por postos privilegiados na repartição global da mais-valia – não apenas as tendências econômicas como também as lutas de base contra empresas brasileiras em processo de transnacionalização atestam a continuidade deste processo – que o digam não apenas os atingidos pela Vale, reunidos já algumas vezes em busca da articulação de suas lutas, mas também os atingidos pela Petrobras, pela Odebrecth, pela Camargo Corrêa, pela Mendes Júnior, pela Queiroz Galvão, pela OAS…[21] Encontramo-nos hoje diante de uma mudança profunda na inserção geopolítica e econômica do Brasil, e agimos – à esquerda e à extrema-esquerda – como se tais mudanças não houvessem acontecido. Alguns na esquerda e na extrema-esquerda – como Rui Mauro Marini no passado e Virgínia Fontes[22] no presente – têm sabido apontar claramente uma contradição: a saída do Brasil do rol dos países “subdesenvolvidos”, sonho dos que insistem na erradicação da miséria fundada no “crescimento econômico conjugado com distribuição de renda”, tem sido a principal causa dos violentíssimos processos de acumulação capitalista promovidos pelas empresas de origem brasileira no exterior.

incraO nacionalismo mostra, aqui, sua face perversa; para quem se deixa afetar por ele, o crescimento econômico brasileiro, o fim da miséria no país, é o que importa, e danem-se aqueles que empresas transnacionais de origem brasileira exploram para garantir o crescimento econômico. Enquanto a esquerda dá apoio – expresso ou tácito – a todas as políticas de sustentação ao crescimento econômico do país, divergindo delas um ou noutro ponto específico como que para resguardar-se de seu próprio adesismo, companheiros de outros países e continentes lutam contra os efeitos perversos da expansão econômica brasileira. A extrema-esquerda hoje, tal como no passado, vê-se arrastada entre duas correntes: a crítica ao crescimento econômico e seus efeitos, com o que lançam-se ao isolamento, ou a adesão crítica às políticas de crescimento econômico e distribuição de renda, com o que condena-se a perder relevância política. Saberemos nós, da extrema-esquerda, criar alternativas a isto sem cair em qualquer destes extremos? Ou nos condenaremos, mais uma vez, à impotência política?

Notas

[1]O debate sobre a relação sobre a “consciência de classe” e sua relação com o processo de trabalho é tão antigo quanto a primeira publicação de A Ideologia Alemã em 1932, mas segue, por exemplo, em Georg Lukács (História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003), Edward Palmer Thompson (A formação da classe trabalhadora inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987), Mario Tronti (Operários e capital. Porto: Afrontamento, 1976), Sergio Bologna (“A composição de classe e a teoria do partido na origem do movimento dos conselhos de trabalhadores”. Em: TRONTI, Mario e outros. Processo de trabalho e estratégias de classe. Rio de Janeiro: Zahar, 1982), Paul Mattick (“Divisão do trabalho e consciência de classe”. Em Integração capitalista e ruptura operária. Porto: A Regra do Jogo, 1977), João Bernardo (Labirintos do fascismo: na encruzilhada da ordem e da revolta. Porto: Afrontamento, 2003; Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Cortez, 1991) etc.

[2]“Em determinado momento, Getúlio Vargas e seus companheiros estadonovistas pensaram seriamente em criar o partido único, típico das ditaduras fascistas. Testemunha Afonso Arinos de Melo Franco: ‘Para isso empreenderam, em 1938, debaixo de grande propaganda, a fundação de um organismo denominado Legião Cívica Brasileira, núcleo do futuro partido totalitário. Mas as Forças Armadas, co-responsáveis pelo golpe de 10 de novembro, viram nessa manobra uma clara ameaça à sua autonomia e se opuseram – em boa hora, devemos reconhecê-lo – ao prosseguimento do plano que, se executado, viria colocá-las na situação subordinada em que se encontravam nos países verdadeiramente fascistas’. Edgard Carone também registra a resistência das oligarquias locais ao projeto. Um dirigente do PCB em São Paulo, Alberto da Rocha Barros, chegou a revelar, em carta a Paulo Duarte datada de 27 de fevereiro de 1937, às vésperas portanto do golpe estadonovista, que Getúlio Vargas estava tentando organizar um Partido Trabalhista. Propósito remontando desde logo após o levante armado da Aliança Nacional Libertadora, quando prometera a anistia, em troca da adesão ou benevolência para com algo idêntico” (CHACON, Vamireh. História dos partidos brasileiros: discurso e práxis dos seus programas. Brasília: EdUnB, 1985, pp. 139-140).

[3]Francisco Weffort indica claramente o que significou o “aperto de cintos” no imediato pós-guerra: apertar um buraco em nome da constituinte, depois mais outro em nome das eleições, depois ainda outro pela criação de uma central sindical (a Confederação Geral dos Trabalhadores Brasileiros – CGTB), e ainda um último pela abolição da Constituição de 1937. “Se os operários foram chamados a apertarem o cinto para que viesse a democracia, deveriam apertá-lo ainda mais para consolidá-la” (Sindicatos e política. Tese de livre-docência. São Paulo: USP, 1972).

[4]As crítica de Moisés Vinhas divulgadas em O partidão – a luta por um partido de massas (1922/1974) (São Paulo: HUCITEC, 1982) são muito posteriores ao período analisado, quando Vinhas era um dos principais ideólogos do partido; resultam, principalmente, da desilusão com a capacidade do partido de lidar com a ditadura.

[5]Agrarismo e industrialismo: ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e a guerra de classes no Brasil – 1924. São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2006. Publicado pela primeira vez em 1925 na Argentina sob o pseudônimo de Fritz Mayer.

[6]Problemas agrário-camponeses do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

[7]Quatro séculos de latifúndio. São Paulo: Fulgor, 1963.

[8]SACHS, Eric. “Aonde vamos?” Em: Qual a herança da Revolução Russa? E outros textos. Belo Horizonte: Sociedade Editora e Gráfica de Ação Comunitária (SEGRAC), 1994, pp. 126-163.

[9]MARINI, Ruy Mauro. “El movimiento revolucionario brasileño”. Em: Subdesarrollo y revolución. 5ª ed. México: Siglo Veintiuno, 1974, pp. 154-169.

[10]Daqui em diante, trato como “esquerda” o PSB e o PCB. Note-se, mais uma vez, que o PTB só foi considerado “esquerda” na medida em que os trabalhadores o empurraram para este lugar, e não por um projeto político calcado nas tradições da esquerda.

[11]PRIORI, Angelo. “O PCB e a questão agrária: os manifestos e o debate político acerca de seus temas”. Em: MAZZEO, Antonio Carlos e LAGOA, Maria Isabel (orgs.). Corações vermelhos: os comunistas brasileiros no século XX. São Paulo: Cortez, 2003, pp. 61-81. Um excelente relato em primeira mão da militância sindical do PCB em São Paulo é o de Eduardo Dias (Um imigrante e a revolução: memórias de um militante operário. São Paulo: Brasiliense, 1983); na Bahia, a dissertação de mestrado de Joaci de Souza Cunha (Amargo açúcar: aspectos da história do trabalho e do capital no Recôncavo açucareiro da Bahia 1945-1964) retrata os ziguezagues da política sindical rural do PCB e seus efeitos nas lutas sociais em que o partido esteve envolvido.

[12]Hermínio Sacchetta recomendou a Florestan Fernandes sair da militância no Partido Socialista Revolucionário (PSR) – precursor direto do Partido Operário Revolucionário (POR) – para dedicar-se integralmente à carreira acadêmica; por influência dele (e de sua própria história de vida), dedicou-se a um estudo aprofundado da sociedade brasileira, sempre na perspectiva de compreender as condições políticas e sociais para que “os de baixo” chegassem ao poder. Já Maurício Tragtenberg, que também teve passagem pelo PSR e pela Liga Socialista Independente (LSI) luxemburguista, foi, ate certo momento de sua vida, “discípulo intelectual” tanto de Sacchetta quanto de Florestan Fernandes.

[13]Apesar de haver abandonado a militância em prol da academia por sugestão de Fernando Henrique Cardoso e Ruth Cardoso, Leôncio Martins Rodrigues construiu carreira como cientista político na USP e na UNICAMP, dando ênfase ao papel dos sindicatos na vida política do país. Já Boris Fausto, outro a abandonar a militância, sobreviveu profissionalmente como advogado, mas é um dos mais originais historiadores das últimas décadas no Brasil. Ambos pertenceram à primeira geração de militantes do POR.

[14]Tullo Vigevani seguiu prolífica carreira acadêmica nas áreas de Relações Internacionais e Ciência Política, abordando não poucas vezes o papel dos sindicatos nas relações internacionais latino-americanas; Maria Hermínia Tavares de Almeida, professora de Ciência Política da USP, até meados da década de 1990 dedicou boa parte de sua produção acadêmica à análise do movimento sindical, focando sua atenção logo depois na análise de políticas públicas; Vito Letizia, professor aposentado da PUC-SP, segue publicando artigos sobre marxismo. Todos foram da segunda geração de militantes do POR.

[15]Ex-militante da Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (ORM-POLOP), Marini declara sem problema algum que seu primeiro artigo escrito no exílio “se baseava, numa ampla medida, no relatório sobre a situação política brasileira que eu apresentara na última reunião do Comitê Central da POLOP de que eu participara, realizada em março de 1965” (“Memória”. Em: TRASPADINI, Roberta e STEDILE, João Pedro (orgs.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005, p. 70). Da síntese deste artigo com outro imediatamente posterior surgiu em 1966 “Dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil”, de enorme influência sobre a esquerda latino-americana e brasileira nas décadas de 1970 e 1980. Além das edições oficiais publicadas pela editora Siglo Veitiuno no livro Dialectica del desarrollo, o artigo teve inúmeras edições clandestinas difundidas em português e espanhol entre organizações da extrema-esquerda. Marini, Theotônio dos Santos e Vania Bambirra construíram, a partir de análises feitas em artigos publicados em Política Operária (publicação da ORM-POLOP) e do diálogo com outras organizações militantes da América Latina durante seu exílio, a chamada teoria marxista da dependência. Vários de seus elementos, como a “cooperação antagônica” entre potências capitalistas, foram tomados diretamente das leituras de August Thalheimer, prato de resistência oferecido por Eric Sachs à militância da ORM-POLOP.

[16]Michael Löwy foi colega de Maurício Tragtenberg na docência secundária até sair do país rumo à França, onde se estabeleceu e vive até hoje com robusta produção intelectual no campo da filosofia marxista. Eder Sader permaneceu na ORM-POLOP após sua reformulação enquanto Partido Operário Comunista (POC); saiu do Brasil em 1970, passando rapidamente pelo Uruguai e estabelecendo-se no Chile, onde integrou-se ao Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), organização aparentada à ORM-POLOP até o golpe de Pinochet forcá-lo a emigrar rumo à França. Ao retornar do exílio, fez parte dos grupos editoriais da revista Desvios, principal veículo do autonomismo castoriadiano no Brasil, e da revista Teoria e Debate, revista teórica do Partido dos Trabalhadores (PT) paulista. Faleceu em 1988. Emir Sader mantém até hoje carreira como publicista em veículos como Carta Maior, e é professor vinculado ao Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Foram os únicos militantes da LSI, junto com Gabriel Cohn – ele próprio um professor da USP – a migrar para a ORM-POLOP em 1961.

[17]Dados disponíveis em BÊRNI, Duílio de Ávila. “Mudanças no padrão de uso da mão-de-obra no Brasil entre 1949 e 2010”. Nova Economia, Belo Horizonte, vol. 16, nº 1, jan.-abr. 2006, p. 145.

[18]Unicidade sindical, contribuição sindical compulsória e poder normativo da Justiça do Trabalho é o tripé a partir do qual sindicatos podem: (a) instituir a contribuição confederativa, os seguros de vida coletivos intermediados pelos sindicatos e as Comissões de Conciliação Prévia (CCP) à revelia dos trabalhadores, tendo como objetivo último bancar suas próprias atividades – o que, em período de diminuição drástica do número de greves e mobilizações sindicais, substituídas pelas negociações no período da data-base, significa transformar recursos supostamente captados para a luta dos trabalhadores em capital acumulado; (b) flexibilizar o maior número possível de negociações salariais para garantir sua “legitimidade” junto ao Ministério do Trabalho e, assim, evitar o surgimento de sindicatos concorrentes; (c) explorar os trabalhadores que contratam para seu próprio funcionamento segundo padrões capitalistas de gestão, levando-os, inclusive, a lutar por sua própria sindicalização, permitida por lei apenas em 2006; (d) transformar a liberação do dirigente sindical da obrigação de trabalhar – ou seja, de ser um trabalhador – em moeda de troca nas mesas de negociação das convenções coletivas de trabalho. Para estas e outras práticas de negócio sindical, cf. BERNARDO, João e PEREIRA, Luciano. Capitalismo sindical. São Paulo: Xamã, 2008.

[19]“I – O partido considera-se, ao mesmo tempo, resultado da experiência política e social dos últimos cem anos em todo o mundo e expressão particular das aspirações socialistas do povo brasileiro. II – As peculiaridades nacionais serão pelo Partido consideradas, de modo que a aplicação de seus princípios não constitua solução de continuidade na história política do país, nem violência aos caracteres culturais do povo brasileiro. III – Sem desconhecer a influência exercida sobre o movimento socialista pelos grandes teóricos e doutrinadores que contribuíram, eficazmente, para despertar no operariado uma consciência política necessária ao progresso social, entende que as cisões provocadas por esta influência nos vários grupamentos partidários estão em grande parte superadas” (“Programa do Partido Socialista Brasileiro”. Em: CHACON, Vamireh. História dos partidos brasileiros: discurso e práxis dos seus programas. 2ª ed. Brasília: EdUnB, 1985, pp. 403-404). Não se pode deixar de fazer um paralelo entre o socialismo proposto pelo PSB e o “socialismo petista” tantas vezes reafirmado nos Encontros Nacionais e Congressos do PT.

[20]Eric Sachs era bastante direto ao indicar sob que perspectiva compreendia o nacionalismo: “quando [o marxismo] julga uma ideologia, como o nacionalismo, pergunta qual classe o produziu, em que condições sociais e históricas essa classe se encontra concretamente. Quando o progresso histórico está ainda a cargo das classes médias, a luta tem que se desenrolar forçosamente, sob formas e ideologia nacionalistas. Querer que essas camadas desenvolvam uma consciência internacionalista seria desconhecer as relações entre o ser e o pensar. A situação muda, todavia, com a formação do proletariado industrial. (…) A causa fundamental da crise do movimento operário em escala mundial é o abandono do internacionalismo proletário pela própria Rússia Soviética e a submissão da classe operária nos países capitalistas à política externa de Moscou. Enquanto este fenômeno não for superado, seja por meio de reformas radicais da política interna soviética ou pela rebelião dos Partidos no Ocidente, a desestalinização não estará completada”. (Eurico Mendes. “Marxismo ou apologética nacionalista?” Movimento Socialista, ano 1, nº 1, 1954, pp. 38-54) Num artigo de 1957 publicado na revista Novos Tempos, considerou o nacionalismo surgido na China e na Europa Oriental como “a manifestação concreta das contradições criadas entre os métodos stalinistas surgidos na União Soviética e as necessidades do fortalecimento do socialismo nas democracias populares”, um “esforço de vencer o abismo criado pelos stalinistas entre a classe operária das democracias populares e a União Soviética”, uma rebelião contra “a aplicação de padrões de um socialismo russo (stalinismo) em países de estrutura social, cultura e tradições completamente diferentes”. É na luta entre o regime stalinista e os “comunismos nacionais” – mais especificamente, entre o regime stalinista, de um lado, e a Revolução Húngara, a Revolução Polonesa, a Revolução Chinesa e o regime iugoslavo, do outro – eles próprios um “legítimo produto do stalinismo”, que se “fortalece (…) o campo socialista em seu conjunto – e isso, no momento, só pode ser feito contra a resistência da burocracia soviética”. A disputa entre os dois elementos do “comunismo nacional” – “o elemento proletário, consciente e comunista, que se opõe à burocracia soviética e seus satélites nacionais, porque luta pela democracia socialista e pelas relações à base de igualdade entre países socialistas”, de um lado, e o “elemento pequeno-burguês e contrarrevolucionário, que apoia a oposição comunista, porque vê em sua vitória uma etapa vencida na luta pela restauração deformas sociais burguesas” – seria o fiel da balança na luta com o stalinismo e o capitalismo, pois “existe o perigo de a força contrarrevolucionária tomar a liderança (…) quando a resistência interna e externa do stalinismo às reformas semostra tão estúpida e brutal que torna antagônica toda uma classe operária e toda uma nação”. Deste modo, “as forças contrarrevolucionárias têm mais chances quanto mais as reformas socialistas [voltadas para a construção do desenvolvimento socialista segundo métodos decididos pelos operários de cada país] demorarem a ser realizadas e quanto maior tornar-se o abismo que o stalinismo criou entre as democracias populares e a URSS”. (“O comunismo nacional nas democracias populares” Em: CENTRO DE ESTUDOS VICTOR MEYER (org.). Conquistas e impasses do socialismo: seleção de textos inscritos na tradição da Organização Revolucionária Marxista – Política Operária. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Victor Meyer, 2011) Quanto ao nacionalismo no Brasil, Eric Sachs escreveu: “Até aqui ninguém tentou demonstrar ainda que o nacionalismo seja uma ideologia proletária (o que pode acontecer ainda). O nacionalismo é aceito como teoria burguesa ou pequeno-burguesa e sua aceitação política é justificada com o papel específico que a burguesia tem no Brasil ou nos chamados países ‘subdesenvolvidos’ em geral. (…) O que distingue o Brasil (…) é o grau do seu desenvolvimento industrial, a existência de uma burguesia e de um proletariado bem definidos e sob esse ângulo estamos mais próximos de certas nações europeias, de que a um país africano médio. (…) Subdesenvolvidos somos em relação a regiões bem determinadas, de um capitalismo mais antigo. Em relação à grande maioria da humanidade e à população da própria América Latina, já somos um país economicamente desenvolvido nos padrões do modos de produção capitalista. (…) A existência de um proletariado industrial criou as condições para a formação de uma escola marxista no Brasil, isto é, de um socialismo em padrões científicos. Não há essa espécie de marxismo subdesenvolvido, que se tenta apresentar para uso doméstico, como não pode haver uma teoria atômica ‘subdesenvolvida’. A ciência é universal, é internacional, seja no campo da física, como no das lutas sociais. (…) Se a nossa classe operária ainda está dominada por concepções políticas ‘subdesenvolvidas’, nacionalistas e pequeno-burguesas, o nosso dever é ajudá-la a libertar-se deste atraso ideológico e não reforçá-lo”. Tamanha profissão de fé contra o nacionalismo, entretanto, precisou ser bem equilibrada pelas circunstâncias da luta política: “encaramos a nacionalização da indústria petrolífera como uma medida positiva, como qualquer outra medida de nacionalização, seja ela de capital estrangeiro ou nacional, quando for no interesse da classe operária. Isso, em cada caso, tem que ser estudado separadamente”. (Eurico Mendes, ob. cit.) Se um militante como Eric Sachs justificou tão solidamente uma postura vacilante quanto ao nacionalismo, que dirá outros com menos estrada corrida também organizados na ORM-POLOP, como uma certa jovem militante mineira, depois integrante da dissidência mineira que originou o Comando de Libertação Nacional (COLINA), hoje presidenta do Brasil – Dilma Rousseff

[21]Para os atingidos pela Vale, cf. o Dossiê dos impactos e violações da Vale no mundo (Rio de Janeiro, abr. 2010); para as demais transnacionais de origem brasileira, cf. Empresas transnacionais brasileiras na América Latina: um debate necessário (São Paulo: Expressão Popular, 2009)

[22]Cf., da autora, O imperialismo brasileiro (São Paulo: Expressão Popular, 2009) e O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história (2ª ed. Rio de Janeiro: EPSJV/EdUFRJ, 2010).

2 COMENTÁRIOS

  1. Para os intelectuais populistas brasileiros, o Brasil tornou-se subitamente numa potência industrial soberba com um exército monumental e com um crescimento e desenvolvimento económico que faz tremer o Ocidente Europeu e pôe atormentado o decadente imperialismo americano. Enfim, um verdadeiro carnaval carioca digno do Imperador Lula da Silva e sua emérita sucessora Dilma coroada com pompa e circunstância a 1ª Presidenta do país.
    Sugestão: que no próximo Mundial da cultura do pontapé na bola o Brasil se consagre campeão da competição imperialista, e obviamente ganhe a taça…

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