Com a hegemonia do agronegócio, passou a se conceber a solução para a questão agrária pela integração dos camponeses ao mercado, através de políticas desenvolvidas pelo EstadoPor Passa Palavra

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Reforma agrária? Que reforma?

Em termos simples, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) tem proposto insistentemente um modelo de reforma agrária que modifique a estrutura da propriedade da terra, transformando o modo de produção e as relações de trabalho no campo. Por outro lado, a reforma agrária que tem efetivamente sido realizada é a do livre desenvolvimento do capitalismo na agropecuária, com a concentração de terras por parte de grandes conglomerados empresariais.

Todavia, a questão da reforma agrária é bastante mais complicada. Para Luiz Bezerra Neto [1] a contradição está presente não apenas no modelo de reforma agrária levado adiante pelo mercado com o incentivo governamental, mas no próprio projeto do MST, porque ao mesmo tempo que este busca romper com o direito da propriedade privada através das ocupações de terra, acaba por aceitar e defender a pequena propriedade rural, ampliando e fortalecendo, deste modo, as relações capitalistas de produção no campo. Para o autor, isto constituiu-se historicamente como um entrave conservador nas lutas pela construção de uma sociedade socialista. Com efeito, como será possível impedir que, depois de a terra estar distribuída entre os camponeses, o processo de concentração do capital não se verifique, de modo que uns poucos proprietários com sucesso assalariem um grande número de ex-proprietários arruinados neste ínterim? Foi isto que aconteceu sempre que se operaram reformas agrárias igualitárias e o caso da União Soviética entre 1917 e 1928 parece-nos paradigmático. Porém, apesar das contradições do MST, Neto não deixa de reconhecer a importância deste movimento na luta pela organização dos trabalhadores rurais.

Por seu lado, Ademar Bogo [2], membro da direção do MST, reconhece os limites da reforma agrária e do próprio movimento:

“Somos uma força política importante e ao mesmo tempo limitada. Nosso objetivo é lutar pela reforma agrária, embora saibamos que ela somente se realizará na totalidade em um sistema socialista, mas nem por isso, como movimento social, temos a pretensão de impulsionar sozinhos a construção dessa grande obra, a revolução política, pois demanda muito mais força e muito mais representatividade. Mas o importante não é reconhecer a fraqueza, mas descobrir como ampliar as forças”.

O que, contudo, para Ademar Bogo, vincula a reforma agrária com um processo revolucionário?

“Podemos dizer que, por duas razões, a reforma agrária está ligada à revolução. A primeira por ela estar no campo das “reformas” em que obrigatoriamente deve impulsionar a revolução para a frente por meio da luta pelas necessidades imediatas dos Trabalhadores Sem Terra e da sociedade. A segunda razão, por ela estar vinculada a essa concepção antecipada da sociedade socialista que pretendemos construir, em que a propriedade privada sofrerá mudanças profundas na forma de sua existência” (idem).

Porém, nesta defesa da reforma agrária como mais um instrumento na luta pelo socialismo há uma lacuna, tanto mais curiosa quanto se deve a um dirigente do MST. Com efeito, haveria que ressaltar os elementos de ruptura com o capitalismo existentes dentro dos assentamentos, tanto no âmbito da produção quanto das relações sociais e da própria política. Ou será que estes elementos de ruptura não existem? Ou os dirigentes do MST deixaram de se interessar por eles?

A evolução do MST relativamente à reforma agrária

Em janeiro de 1984 o MST, no seu I Encontro Nacional, aprovou a sua plataforma política, em que considera sem terra os “trabalhadores rurais que trabalham a terra nas seguintes condições: parceiros, meeiros, arrendatários, agregados, chacreiros, posseiros, ocupantes, assalariados permanentes e temporários e os pequenos proprietários com menos de 5 hectares” . Dentre os princípios gerais do Movimento estão os de “Lutar pela reforma agrária já” e “Lutar por uma sociedade igualitária, acabando com o capitalismo”. Além disso, o MST “deve sempre manter sua autonomia política”, sendo que “o acesso à terra deve ser através da pressão e da luta” [3]. Era este o perfil do Movimento em 1984.

Em maio de 1995, em seu III Encontro Nacional, o MST aprovou a Proposta para a Reforma Agrária, na qual apresentou diversos pontos não contemplados em 1984, incluindo reivindicações para além da posse da terra e comercialização de seus produtos e apontando planos de governo. Em tal Proposta foi retomada a perspectiva que trata a reforma agrária não apenas como uma solução para os problemas dos sem terra mas ainda como uma contribuição para resolver a maioria dos problemas que ocorrem nas cidades, sendo, assim, do interesse de toda a sociedade. Também submeteu a propriedade da terra ao cumprimento de sua função social, considerando-a como “um bem fundamental da natureza que não pode estar aprisionada pela propriedade privada absoluta, em que o proprietário faz o que quiser” [4].

No tocante à comercialização pode observar-se o reforço da integração do Movimento nas relações de mercado prevalecentes, nomeadamente quando reivindica que seja dada prioridade à “compra de produtos de assentamentos, através de suas associações, nas compras públicas do governo para merenda escolar, cesta básica, forças armadas, hospitais públicos e programa de combate à fome”. O mesmo podemos dizer a respeito da exigência de que o governo desenvolva “políticas de compras públicas de produtos e do estabelecimento de preços subsidiados e diferenciados para esses agricultores”, de assentamentos de tipo individual, coletivo ou empresarial. Tais empresas de produção agropecuária deveriam estar sob “gestão dos próprios trabalhadores”, que se vinculariam a elas como donos de cotas-partes ou por contrato de trabalho individualmente e não familiarmente. Verifica-se, portanto, o abandono da noção de cooperativas de produção, que o Movimento havia prosseguido na sua fase inicial.

Naquela Proposta para a Reforma Agrária percebe-se a postura do MST em pensar políticas de governo através da formulação de um conjunto de propostas para além do conflito fundiário, reivindicando a ação do Estado como instrumento fundamental. “A implementação dessas mudanças implica necessariamente em que o Estado, com tudo o que representa de poder (executivo, legislativo, judiciário, segurança e poder econômico), seja o instrumento fundamental de implementação das propostas” (idem). Mas como esta situação se conjuga com a reivindicação “anticapitalista” e “autônoma” do movimento? Como manter aquelas duas bandeiras no caso da integração com um governo “capitalista de esquerda”, sem cair em uma contradição que estagna e sufoca um dos pólos, neste caso o pólo mais radicalizado?

De acordo com Pizzeta [5], o modelo de desenvolvimento econômico que gerou a sociedade urbano-industrial brasileira teve seu início nos anos 1930 e seu término nos anos 1980. Nesse modelo, em que a função da agricultura era a de fornecer mão-de-obra, matéria-prima e alimentos para uma sociedade em processo de industrialização, ainda havia espaço político para uma reforma agrária clássica – com a distribuição de terras dos latifúndios improdutivos. Com a incorporação do Brasil na economia capitalista globalizada – e o declínio daquele modelo de industrialização até então prosseguido – as terras antes improdutivas “passam a ser alvo da especulação e do agronegócio, que passa a incluí-las na sua base produtiva de atendimento ao mercado internacional”. O Brasil fica assim transformado numa grande plataforma agroexportadora, incompatível com a Reforma Agrária, que tem por base a produção de alimentos e, portanto, a atual questão “perpassa pela mudança do modelo de agricultura do país”. “Agora a Reforma Agrária tem outra natureza”, ela engloba não apenas a terra, mas também o acesso ao conhecimento científico, à pesquisa, outra matriz produtiva (compatível com o que se entende como preservação ambiental e saúde dos produtores e consumidores), bem como a educação e os acessos no campo “às conquistas e benefícios que a humanidade adquiriu”. No atual momento de “descenso social da classe trabalhadora” teria que se ter “a capacidade de elaboração teórica e política, como uma proposta de Reforma Agrária Popular, que supere a Reforma Agrária Clássica burguesa”. Nestas circunstâncias, um dos desafios para o MST e movimentos camponeses estaria em comunicar este projeto, “para fazer com que a sociedade perceba quais são as bandeiras que defendemos e quais são as propostas que estão em confronto: a da Reforma Agrária popular e a do Agronegócio […] é preciso que a sociedade perceba que está em jogo o tipo de sociedade, de agricultura e de alimentos que queremos”.

Mas esta “comunicação” com a sociedade refere-se apenas à escolha entre aqueles dois modelos de desenvolvimento propostos? Tal como ocorre nas eleições, caberia a essa “sociedade consumidora” optar por dois produtos na prateleira? Ou cabe às forças políticas e aos militantes de esquerda refletirem sobre as consequências de tais modelos, optando, inclusive, pelo desenvolvimento de outras formas alternativas, ao invés de assemelharem-se a torcedores numa partida de futebol?

O questionamento da viabilidade do modelo clássico de reforma agrária é corroborado pelos próprios dirigentes do MST, como se vê, por exemplo, nesta declaração de Stédile [6]: “No passado, a expressão reforma agrária era entendida por muitos apenas como desapropriação de uma fazenda e distribuição dos lotes de terra. Essa reforma agrária funcionava quando o modelo econômico era dominado pelas indústrias. E, portanto, os camponeses se integravam com a indústria e conseguiam sair da pobreza. Era a chamada reforma agrária clássica, que a maioria dos países industrializados fizeram. Agora, o capitalismo dominante é o do capital financeiro e das empresas transnacionais, também na agricultura, com o chamado agronegócio. Assim, eles conseguem aumentar o lucro e a produção sem os camponeses”.

Ainda segundo Pizzeta, há a necessidade de um avanço na questão da agroindústria, levando-a para as áreas de reforma agrária. “Isso possibilitaria um acúmulo de produção, de riqueza, daquilo que a agricultura pode gerar […] não é só a questão da produção, de agregar valor para aquilo que se produz. É também um leque de possibilidades para que a população tenha melhores condições de vida no campo e uma perspectiva de ascenso social no meio rural”.

Ora, novamente cabe perguntar quais as tendências de ruptura com o capitalismo contidas em tal proposta?

Implicações da concepção de reforma agrária defendida hoje pelo MST

De acordo com o MST, no atual modelo econômico, que tem seu centro nas exportações, nos bancos e nos grandes grupos econômicos, não cabe mais a discussão sobre a reforma agrária, ao menos não no discurso da imprensa empresarial. Contudo, o Movimento afirma que a reforma agrária não consiste apenas em dividir os latifúndios entre os pobres do campo; ela se complexificou, visto que o capital estrangeiro, as transnacionais e os grandes grupos econômicos passaram a controlar a agricultura nacional, para exportar matérias-primas, produzir celulose e energia.

A proposta de reforma agrária defendida hoje pelo MST pretende contrapor-se ao modelo hegemônico que aprofundou a integração do latifúndio com as empresas transnacionais e o capital financeiro. Segundo João Pedro Stédile, “o agronegócio é uma grande aliança entre as empresas transnacionais — que controlam os insumos [input], o mercado internacional e os preços dos produtos agrícolas — e os grandes proprietários capitalistas. Eles querem produzir apenas mercadorias que dêem lucro e para o mercado externo” [7]. Assim, com a consolidação do agronegócio modificou-se para o MST a luta de classes na agricultura, não se constituindo mais como inimigo o velho fazendeiro do latifúndio tradicional. Bancos e companhias transnacionais desenham-se como novo inimigo a ser enfrentado, sem que o antigo tenha sido derrotado. Vejamos o ponto 6 da Carta do 5º Congresso do MST: “Combater as empresas transnacionais que querem controlar as sementes, a produção e o comércio agrícola brasileiro, como a Monsanto, Syngenta, Cargill, Bunge, ADM, Nestlé, Basf, Bayer, Aracruz, Stora Enso, entre outras. Impedir que continuem explorando nossa natureza, nossa força de trabalho e nosso país” [8].

Esta perpectiva do MST está singularmente inadequada às realidades atuais, quando o neoimperialismo brasileiro procede na África e em alguns países da América Latina exatamente da mesma forma que o MST acusa o imperialismo estrangeiro de proceder no Brasil. Na verdade, trata-se da inadequação de todo o discurso nacionalista à realidade transnacional do capital.

João Pedro Stédile considera que falta à sociedade, ao governo e às forças populares brasileiras em geral um projeto claro de país, que englobe um desenvolvimento econômico, social, político e ambiental, e afirma que sem tal projeto não há possibilidades de um programa de reforma agrária, pois esta — enquanto programa de governo — é somente um meio para o desenvolvimento da agricultura, das forças produtivas e de solução dos problemas sociais do campo. “Agora, nós precisamos de um novo tipo de reforma agrária”, escreve Stédile. “Uma reforma agrária que comece na distribuição de terras, mas que organize cooperativas de produção para instalar agroindústrias nos assentamentos e no interior. Porque é isso que aumenta a renda e tira da pobreza. Uma reforma agrária que adote a matriz tecnológica da agroecologia, produzindo alimentos sadios, sem veneno e sem alterar o equilíbrio do meio ambiente. Uma reforma agrária que distribua educação. […] Nós queremos uma reforma agrária popular, de outro tipo. […] E seu desfecho vai depender de mudanças na correlação de forças em geral. Vai depender do ressurgimento do debate em torno de um necessário projeto popular para o Brasil” (idem nota 6).

Mas o problema parece-nos ser exatamente o contrário. Não falta um projeto claro de desenvolvimento econômico aos governos de Lula e de Dilma — que o MST contribuiu para eleger e continua apoiando eleitoralmente em diversos estados — tanto assim que com esse projeto o capitalismo brasileiro se desenvolveu como nunca antes na história deste país [9].

Esta inadequação do discurso político do MST encobre, como sempre acontece, uma readequação da prática. A hegemonia do agronegócio deu visibilidade à corrente teórica do paradigma do capitalismo agrário em contraste com o paradigma da questão agrária. Ao contrário deste último, que enfatiza o desenvolvimento desigual e contraditório e o antagonismo inerente entre o capitalismo agrário e a resolução da questão agrária em sociedades extremamente desiguais e excludentes, o paradigma do capitalismo agrário defende a solução para a questão agrária pela integração dos camponeses ao mercado, através de políticas desenvolvidas pelo Estado. Esta corrente, segundo Bernardo Mançano Fernandes [10], foi a responsável pela criação de conceitos eufemísticos, como “agricultura familiar” e “agricultura empresarial”, em substituição, respectivamente, de “agricultura camponesa” e “agricultura capitalista”, levando a uma compreensão linear e a um consenso em torno do desenvolvimento capitalista da agricultura e contribuindo inclusive para a criação de movimentos de “agricultores familiares”, como a Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (FETRAF), vinculada à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Ainda segundo Mançano Fernandes, esta perspectiva de integração do problema agrário ao mercado capitalista, da “agricultura familiar” ao agronegócio através de políticas públicas determinadas e dirigidas desde o Estado, agradou às forças políticas tanto de direita como de esquerda. “Desse ponto de vista, a questão agrária tornou-se um problema inexistente, já que não tem solução na sociedade capitalista. Conforme essa visão, que predomina hoje inclusive no PT, não tem sentido procurar uma solução que não seja a partir da realidade capitalista” (idem).

Mesmo dentro do MST, tanto para assentados quanto para militantes e dirigentes, essa antinomia entre modelos da reforma agrária se faz presente, com a crença de que a luta pela terra é uma luta de renovação do capitalismo agrário, seja por uma perspectiva mais moderada, de criação de pequenas cooperativas capitalistas, quanto pelo sonho de vir a tornar-se um grande fazendeiro nos moldes do capital. Uma das figuras mais marcantes neste sentido é o ex-dirigente do Movimento José Rainha — que após ser expulso do MST criou o MST-B —, mas tivemos a oportunidade de escutar argumentos similares tanto de alguns poucos militantes quanto de assentados do Movimento.

De todo modo, talvez possamos identificar aí um dos elementos do refluxo de uma perspectiva revolucionária dos movimentos de luta pela terra, até porque a precariedade dos governos democráticos em políticas para a reforma agrária e para o trabalhador rural acaba por expulsar famílias assentadas, gerando um círculo vicioso que reproduz o problema ao colocar novas famílias assentadas no lugar das famílias excluídas (idem).

Assim, desde a década de 1990 a reforma agrária tem contribuído para impedir a intensificação da concentração fundiária e diminuir a velocidade de territorialização do agronegócio. Mas não as freiou nem impôs outra direção à política agrícola nacional. “De 1992 a 2003, a área controlada por propriedades capitalistas cresceu 52 milhões de hectares, enquanto a área das propriedades familiares aumentou 37 milhões de hectares, graças à desapropriação de 25 milhões de hectares para a reforma agrária” (idem). É certo que, como aponta este autor, sem a luta pela reforma agrária a expansão da área das propriedades capitalistas teria sido cinco vezes mais rápida do que a expansão da área das propriedades familiares, sendo que com essa luta ela “apenas dobrou”. Ainda assim, é muito pouco para considerarmos que os movimentos sociais no campo estejam conseguindo realizar um questionamento prático do modelo capitalista vigente. Apesar de serem protagonistas e através de árduas lutas conquistarem algumas vitórias ao Estado, eles estão, no máximo, conseguindo se defender a duras penas.

Mançano Fernandes faz um balanço sumário. “No Brasil, a reforma agrária não desconcentra terra. Ela só minimiza a intensidade da sua concentração. Esse é o novo conteúdo da questão agrária nesta primeira década do século XXI […] O estudo da formação do MST nos sugere que, embora ele seja o movimento camponês mais bem organizado da história do Brasil, suas ações têm conseguido apenas mudanças conjunturais” (idem).

As implicações da “soberania alimentar”

As perspectivas nacionalistas do MST são tanto mais inadequadas à realidade transnacional do capital quanto o Brasil é hoje um país neoimperialista, cuja ação econômica em outros países se exerce nomeadamente na agropecuária. Esta inadequação é flagrante na questão dasoberania alimentar. Vejamos resumidamente a questão.

O tipo de reforma agrária defendido pelo MST incidiria diretamente não apenas na concentração fundiária, mas também no modo de produzir. Seria priorizada a produção de alimentos para o mercado interno, combinada com um modelo econômico que distribua renda e fixe as pessoas no meio rural, garantindo condições para tal, como educação em todos os níveis, moradia e emprego para a juventude. A este respeito podem ver-se, por exemplo, as discussões sobre reforma agrária no 5º Congresso Nacional (2005) [11]. Nesta perspectiva, o MST, em conjunto com outros movimentos sociais do campo, como a Via Campesina, enfatiza o conceito de soberania alimentar, de sementes como patrimônio da humanidade, de defesa da preservação ambiental, da luta contra os produtos transgênicos e contra as monoculturas.

Neste emaranhado de questões a tese central é a da soberania alimentar.

Ora, como todas as formas de protecionismo, a soberania alimentar cria as condições propícias para o aumento do preço dos alimentos. Tudo o que no capitalismo diminua a concorrência, tanto no interior de cada país como no âmbito mundial, leva ao aumento dos preços. Assim, a tendência deste processo é que o protecionismo suscite a inflação. Na prática, se algum dia fosse executada no Brasil, a soberania alimentar, centrando-se na compra subsidiada da produção agrícola, agravaria a fratura entre o campo e a cidade, em detrimento da população urbana.

Ora, num sistema político-econômico em que a agricultura não estiver estatizada, se a soberania alimentar levar a um aumento dos preços agrícolas e o governo impuser preços máximos, a consequência será, como sempre nestes casos, a redução das plantações pelos agricultores e a matança do gado. Historicamente, todas as tentativas drásticas de controlar os preços agrícolas por decreto e por meio da repressão levaram diretamente à redução da produção e ao desenvolvimento do mercado paralelo, com todas as formas de corrupção e de desigualdade que ele fomenta.

Além disso, o protecionismo, consistindo numa forma de isolamento do país relativamente ao mercado mundial de alimentos, leva à possibilidade de quedas de abastecimento catastróficas, agravando as tendências que acabamos de enunciar.

Perante este tipo de situações, a via de saída que mais facilmente se encontra é o racionamento, ou seja, a economia regulada à velha maneira da União Soviética. Os vícios e defeitos do sistema soviético foram, entre outras coisas, uma consequência lógica das contradições suscitadas pela soberania alimentar. É certo que o sistema soviético não resolveu essas contradições, mas limitou-as e permitiu que a economia continuasse operacional, embora reforçando ao mesmo tempo uma economia paralela clandestina. Nisto tudo, o único setor social que beneficia com a soberania alimentar é a burocracia de Estado, que, por um lado, se expande numericamente, já que aumenta o seu campo de intervenção; e, por outro lado, assegura a si própria o abastecimento de produtos alimentares, pelo que não está exposta às oscilações de preços nem à fome. É curioso que um quarto de século depois da desagregação dos regimes soviéticos seja proposto um programa que, sob o pretexto da soberania alimentar, se disponha a repisar o mesmo caminho. Será que as lições da história não foram suficientemente esclarecedoras? Ou será que a mesma camada social, a burocracia política, tende a reproduzir os mesmos efeitos?

Referências
[1] Neto, Luiz Bezerra (1999). Sem-Terra aprende e ensina. Estudo sobre as práticas educativas do movimento dos trabalhadores rurais. Campinas: Autores associados.
[2] Bogo, Ademar (2009). O MST e a cultura. São Paulo: MST.
[3] Stedile, João Pedro (org.) (2012). Programa de Reforma Agrária do MST – 1984. In: A questão agrária no Brasil vol. 3. São Paulo: Expressão Popular.
[4] Stedile, João Pedro (org.) (2012). Proposta de Reforma Agrária do MST – 1995. :In: A questão agrária no Brasil vol. 3. São Paulo: Expressão Popular.
[5] Pizzeta, Adelar (2012). É fundamental avançar na consciência política da nossa base social. In: Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, nº 317, Jan/Fev 2012
[6] Stedile, João Pedro (2012). Entrevista à revista Estopim. Disponível em: http://www.odiario.info/?p=2586
[7] Disponível em: http://www.mst.org.br/node/833
[8] Disponível em: http://www.mst.org.br/especiais/10/
[9] Ver diversos artigos no especial do Passa Palavra Nunca antes na história deste país, disponível em: http://passapalavra.info/?tag=nunca_antes_na_historia_deste_pais
[10] Fernandes, Bernardo Mançano (2010). Formação e territorialização do MST no Brasil. In: CARTER, Miguel (org.) Combatendo a desigualdade social – O MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Unesp, 2010.
[11] Disponível em: http://www.mst.org.br/node/838

9 COMENTÁRIOS

  1. sintomática a falta de ´´eco´´ desses textos… será pelos textos em si, pelo público desse site ou tudo isso junto e muito mais? tomara que a companheira ´´débora´´ também traduza esse silencio pra nós… talvez ela tivesse alguma coisa interessante a nos contar e nós a escutar, escutar e com humildade e respeito pela luta alheia falar…e aí sim criticar.. e nao se transformar em ´´crítica pela crítica´´, que deve ter seus muitos filiados nesse site ou como a companheira falava, deve ter bastante ´´estrangeiros´´ aqui (incluindo claro, os do próprio coletivo, ´´passa palavra´´ e os companheiros do pcb de cima)! ironico leitor, nao? kkk

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