Acho que é importante reivindicar os direitos dos trabalhadores, mas acho horrível reivindicar direitos de autor. Miguel Castro Caldas entrevistado por Passa Palavra
No seguimento da publicação do artigo Dança e autoritarismo – sim, até hoje, entrevistou-se o escritor de peças de teatro e ensaísta português Miguel Castro Caldas, visando assim o aprofundamento da reflexão em torno da condição social dos trabalhadores das artes e da cultura.
Passa Palavra: O primeiro dilema numa entrevista deste tipo é não saber que conceito aplicar. Como tal, começo por perguntar-te se te consideras um artista, um escritor, um criativo ou um trabalhador?
Miguel Castro Caldas: Artista, não sei, é tão complicado. Escritor, sim, sou, trabalho com a linguagem verbal. Também me considero trabalhador. Criativo é que me levanta mais problemas. Costuma ser um adjetivo. Aquele vendedor imobiliário é criativo, este não é. Agora, “um criativo”, assim, substantivo, está fora do meu alcance. Seria como dizer se me considero um bonito ou um feio.
PP: Dada a intermitência e precariedade da tua condição, qual a tua relação com o rendimento? Ainda estás a pagar dívidas?
MCC: Tenho sempre dívidas e nunca sei se daqui a dois meses posso garantir a minha autonomia.
PP: Os trabalhadores das artes e da cultura têm, na tua opinião, uma condição à parte? É possível conciliar arte e trabalho?
MCC: À parte, não, porquê? Fala-se do estatuto de intermitência. Mas isso não é mais do um subsídio de desemprego, digamos assim. A única coisa é que esses trabalhadores têm períodos mais curtos de trabalho. Logo, precisam de não morrer à fome enquanto não encontram outro trabalho. Também convinha que tivessem os mesmos direitos que os outros trabalhadores, tipo, subsídios de férias, etc., mas enfim, tudo isso está a desaparecer para todos. Quanto à conciliação entre arte e trabalho, estamos aqui a atribuir à palavra “trabalho” todo o seu lado de modo produtivo, remuneração, direitos. Nesse caso, digo que a arte também pode ser uma atividade amadora.
PP: Os trabalhadores das artes surgem normalmente representados pela categoria de «intelectuais», ora alvos de desdém (os «intelectuais pequeno-burgueses») ora elevados a vanguarda, atribuindo-se-lhes um papel mais relevante que o do bate-chapa ou o do processador de dados. Qual a tua opinião?
MCC: Os trabalhadores das artes são trabalhadores como outros quaisquer.
PP: Nos últimos anos, surgiu um sindicato dos trabalhadores das artes e da cultura em Portugal, o CENA (sindicato dos músicos, dos profissionais do espetáculo e do audiovisual). Como vês esse processo?
MCC: O problema é que está tudo a desmoronar-se. Não sei se faz muito sentido neste período específico da história estar a fazer uma luta corporativa. É fruta que já deu. Acho que é importante reivindicar os direitos dos trabalhadores. Mas acho horrível reivindicar direitos de autor, por exemplo, e este sindicato faz isso.
PP: Quais, na tua opinião, deveriam ser os principais horizontes (a curto, médio e longo prazo) da luta dos trabalhadores das artes e da cultura?
MCC: Não sei. O artista é um produtor, não é? Então se é, que seja dono dos seus modos de produção. Ou então que reflita sobre a produção. E se recuse a produzir, por exemplo, ou equacione uma maneira diferente de produzir, que não se deixe cair nos meandros dos circuitos. Agora, essa coisa de pedir coisas aos governos e dizer coisas importantes em nome da cultura, não me parece nada.
Os grafitti são de autoria de Artiste-Ouvrier, o primeiro inspirado num quadro de Caillebotte.