Quando polícias e militares reclamam nas ruas, o papel dos anticapitalistas não é defendê-los, mas defender aqueles que têm na polícia e nas forças armadas o inimigo. Por Passa Palavra

Nas últimas semanas falou-se muito do recrudescimento da insatisfação entre os polícias, que exigem compensações para os cortes salariais impostos a todos os funcionários públicos, além de reivindicarem subsídios de risco, benefícios para os familiares nos sistemas de saúde e questões relativas aos estatutos e carreiras profissionais. Foi criada uma Comissão Coordenadora Permanente dos Sindicatos e Associações dos Profissionais das Forças e Serviços de Segurança, congregando os sindicatos mais representativos da Guarda Nacional Republicana (GNR), Polícia de Segurança Pública (PSP), Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Guarda Prisional e Polícia Marítima. Também os membros das forças armadas estão em alvoroço por questões salariais e reiteraram no dia 7 de Março a sua solidariedade com a contestação dos polícias.

2014-03-06-aa5d0002Em Lisboa vários milhares de polícias, fala-se em quinze ou vinte mil, concentraram-se frente ao parlamento no passado dia 6 de Março e o balanço de dez feridos ligeiros, seis polícias em serviço e quatro polícias manifestantes, indica que tudo se passou entre colegas. Aquilo parecia o jogo do empurra e se fossem cidadãos comuns teriam sido vítimas de cacetadas, gases lacrimogéneos e balas de borrachas. «Os colegas que estão aqui à frente lembrem-se que do outro lado também estão os nossos colegas», gritou alguém da comissão organizadora. Algo de semelhante tinha já ocorrido na manifestação de 21 de Novembro de 2013.

O facto de alguma esquerda e extrema-esquerda ter assumido publicamente a defesa destas contestações, tanto dos polícias como dos militares, faz a nossa atenção redobrar e torna necessária uma reflexão. Aliás, os próprios sindicatos da polícia assim como as associações profissionais dos vários escalões das forças armadas têm conhecidas ligações ao Partido Comunista. Ora, sucede que, se quisermos classificar os polícias e os militares como trabalhadores, então eles definem-se como trabalhadores do aparelho repressivo, que tem como função disciplinar a sociedade e obrigá-la ao trabalho. A polícia e as forças armadas são, pelo seu próprio fundamento, instituições antagónicas da classe trabalhadora, de modo que a participação de agentes das forças de segurança num movimento social mais alargado deverá ser condicionada ao abandono da sua condição. Aqueles que vivem da repressão terão, como é óbvio, que deixar de o fazer.

Reportagem sobre a manifestação das forças de segurança, no Largo Camões, Lisboa.Assim, sobre aquela esquerda e extrema-esquerda que defende agora as reivindicações de polícias e militares diríamos que é um gato escondido com o rabo de fora se alguma vez o gato tivesse ficado escondido. A questão é que, enquanto partidária da estatização da economia, aquela esquerda não dispensa o aparelho repressivo central e, por isso, tem desde já de construir e manter as pontes com a polícia e com as forças armadas que lhe permitam governar num desejado amanhã — desejado por ela.

Pelo contrário, dentro de um programa de sanidade mental e de salubridade pública, propomos:

Dissolução das forças armadas. Em Portugal as forças armadas ocupam um lugar incompatível com a situação económica do país. Segundo dados do Banco Mundial, enquanto em 2011 o pessoal das forças armadas correspondia, na média de todo o mundo, a 0,85% da força de trabalho, em Portugal correspondia a 1,62%, praticamente o dobro da média mundial. Do outro lado da fronteira, em Espanha, a percentagem equivalente era 0,93%, em França era 1,11% e em Itália era 1,45%. Calculadas em percentagem do Produto Interno Bruto, em 2012, as despesas com as forças armadas foram de 1,78% em Portugal, mas só de 0,87% em Espanha e de 1,69% em Itália. Na França e no Reino Unido, os dois países europeus possuidores de armas atómicas, que implicam despesas mais elevadas, essas percentagens foram respectivamente 2,26% e 2,45%. E se considerarmos que em 2011 as despesas militares representaram em Portugal 4,64% das despesas governamentais, é interessante observar que em Espanha a percentagem correspondente era 3,28% e 4,13% em Itália, enquanto na França e no Reino Unido eram 4,71% e 5,6%. Ora, Portugal é irrelevante na política externa, padece de dificuldades económicas conhecidas por todos e sentidas pela maior parte e, além disso, com os meios militares modernos este país é indefensável no seu território minúsculo. A dissolução das forças armadas contribuiria para satisfazer muitas das exigências dos credores externos diminuindo o sacrifício dos cidadãos comuns. Parte dos materiais bélicos seria distribuído às corporações de bombeiros voluntários e o restante seria destruído e convertido em sucata, aproveitável para fins úteis. Os fardamentos seriam distribuídos aos cidadãos mais carenciados de vestuário ou postos à disposição do público por ocasião dos festejos carnavalescos, o que sem dúvida abrilhantaria os corsos.

Redução drástica das forças policiais. Se ordenarmos os países por ordem crescente do número de polícias per capita, verificamos que Portugal, com 462 polícias por cem mil habitantes em 2009, só era ultrapassado na Europa pela Croácia (466 em 2012), pela Macedónia (484 em 2008), pela Espanha (511 em 2009), pela Turquia (538 em 2012), pela Rússia (546 em 2013), pela Sérvia (631 em 2012) e pelo Montenegro (839 em 2012). Todos os outros países se situavam abaixo, nomeadamente a Itália com 417 polícias por cem mil habitantes em 2009, 356 em França em 2012 e 307 no Reino Unido em 2009, enquanto a Alemanha se limitava a 296 em 2010. Ora, relativamente aos últimos anos para os quais se dispõe de estatísticas, como houve em Portugal 1,2 assassinatos por cem mil habitantes, enquanto houve 0,9 em Itália, 1,1 em França, 1,2 no Reino Unido e 0,8 na Alemanha, concluímos que há polícias a mais para os resultados obtidos. Se os polícias querem apresentar-se como trabalhadores, então devem ser avaliados como tal e só podemos deduzir que lhes falta produtividade. O bom senso económico impõe uma drástica redução dos efectivos policiais. E enquanto a polícia seria vocacionada para finalidades úteis, nomeadamente a fiscalização do trânsito, em especial a protecção dos peões nas faixas de atravessamento, os agentes postos na disponibilidade integrar-se-iam na classe trabalhadora à qual dizem pertencer.

As economias acarretadas por estas duas medidas — a dissolução das forças armadas e a redução drástica das forças policiais — permitiriam que o governo dispusesse de fundos para intervir numa área que a esquerda e a extrema-esquerda com frequência esquecem — as prisões. Assim, propomos desde já:

ng3079266Investimentos nas condições materiais e sociais dos detidos. De imediato, e em colaboração com comissões representativas dos presos, eleitas em assembleias livremente organizadas, seriam feitos investimentos para a melhoria das condições materiais e sociais nas prisões. O fim do capitalismo acabará com muita coisa, as prisões entre elas, mas como isso não vai suceder amanhã, é necessário que o horizonte ideológico não faça esquecer os problemas mais urgentes de hoje. De qualquer modo, uma renovação social das condições prisionais seria obtida com a proposta seguinte.

Remuneração do trabalho dos presos ao mesmo nível que o trabalho das pessoas livres. Em todo o mundo o trabalho prisional constitui uma modalidade de trabalho escravo, em flagrante violação das normas geralmente aceites pela sociedade capitalista. Ora, em Portugal a ministra da Justiça declarou em Janeiro deste ano que cerca de 5.000 reclusos efectuam actividades laborais e na semana passada a Direcção Geral dos Serviços Prisionais anunciou que durante este ano pretende pôr mais de 10.000 presos a trabalhar. Precisamente enquanto polícias e militares se manifestam com aplauso de alguma esquerda e extrema-esquerda, os governantes dizem que irão ampliar o trabalho escravo sem que isto pareça incomodar aquelas boas almas. A reivindicação mais evidente nestas condições é a livre sindicalização dos presos e a sua liberdade de contratação no mercado de trabalho.

Em conclusão, quando polícias e militares reclamam nas ruas, o papel dos anticapitalistas não é defendê-los, mas defender aqueles que têm na polícia e nas forças armadas o inimigo.

Os leitores brasileiros que não entendam certos termos usados em Portugal
e os leitores portugueses que não percebam outros termos usados no Brasil
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.

6 COMENTÁRIOS

  1. No bojo da revolta geral gerada por causa da copa – caso Amarildo, ocupações de terra, luta contra aumentos, greve de garis – entrou já no 12 dia a maior e mais radical greve dos agentes penitenciários do Estado de São Paulo. São Mais de 88 unidades em greve, nas quais os agentes têm jogado as chaves fora. Com isso, presos nas ruas não são aceitos quando levados para as unidades. Nesse exato momento, há, informalmente, uma ordem interna a segurança pública para que não se prendam por crimes menores porque com a greve dos agentes não há onde levar os presos.

    2- a greve dos agentes obrigou o governo enviar policiais e a tropa de choque para invadir e tomar conta de algumas unidades. Se isto se generaliza, a polícia vai ter que assumir o controle de todas as unidades. São 25 mil agentes no Estado. O que significaria tirar milhares de policiais das ruas, diminuindo o efetivo à disposição para reprimir movimentos.

    3- Uma greve da polícia civil se anuncia para os próximos dias.

    4- até o momento, os agentes têm mantido a visita dos presos, dizendo que a greve é contra o governo, não contra os detentos. Também tem sigo entregue o que é de urgente: coquetéis anti-HIV, medicamentos controlados, e outras coisas.

    5- A greve dos agentes gerou uma curiosa união entre presos e governador. Na comunidade do facebook “Amor atrás das grades” as mulheres dos presos reclamam intensivamente da greve com medo que sejam paradas as visitas em algum momento. E elas querem ver os seus maridos. Quem olhar o que se escreve lá terá material para uma bela crônica.

  2. Da esquerda que vive do passado e fez do 25 de Abril uma mitologia e do 25 de Novembro algo que não merece tantas lembranças… nem me causa espanto.

  3. A polícia é como o oxigénio: só quando falta é que valorizamos a sua presença.
    Proponho-lhe o seguinte exercício: coloque numa mesa, em diversos post its, todas as instituições do país – da saúde à educação, da segurança ao governo. Tudo. Depois, vá retirando aquelas sem as quais conseguiríamos sobreviver um dia. Agora retire a polícia. Parabéns, instaurou o caos social. Visualizar a polícia como mero repressor de desordem pública é uma observação pueril e desactualizada. Há muito que a polícia se desenvolveu. De um organismo reactivo, tem dado largos passos na sua forma de actuação. Hoje em dia, caminha para ser um organismo antecipador/proactivo; elabora estudos sobre a criminalidade, estabelece padrões, mapeia o crime, e com base nestas informações estabelece estratégias de combate ao crime. Defender a diminuição do número de polícias em Portugal é não conhecer o povo português; é não conhecer as dificuldades deste povo, o desespero deste povo, a raça deste povo. Porque se tivermos que roubar, roubamos. Se tivermos que pedir, pedimos.
    Antes de defender a redução da polícia, proponho-lhe que faça uma visita de estudo e acompanhe estes profissionais durante um ano. Realize exactamente os mesmos horários, tire exactamente as mesmas folgas, peça exactamente os mesmos dias de férias e, melhor, ganhe exactamente o mesmo salário que eles ganham.

    Depois escreva. E lembre-se, “Eu não me envergonho de corrigir os meus erros e mudar de opinião, porque não me envergonho de raciocinar e aprender” Alexandre Herculano.

  4. “O conceito de “segurança”, tal como é formulado na cultura da decadência, liga-se estreitamente à limitação imposta pela economia capitalista à plena expansão da personalidade humana. Somente submetendo-se às “normas” e regras socialmente impostas, tornando-se um conformista, pode o individuo experimentar uma sensação de segurança e de estabilidade num mundo objetivamente assolado por contradições. Portanto, percebe-se facilmente a relação direta entre burocracia e “segurança”, ou seja, o modo pelo qual uma vida “segura” submete-se aos princípios do formalismo pseudorracional e aos valores burocráticos da eficácia “profissional”; a “segurança”, assim, conforma-se à identificação entre personalidade individual e função desempenhada na divisão do trabalho, identificação própria da cultura capitalista. A relação entre “segurança” e conformismo foi observada por Max Weber: “o ingresso num cargo, inclusive na economia privada, é considerado como a aceitação de um obrigação específica de administração fiel em troca de uma existência segura”. “Racional”, portanto, passa a ser a práxis moral fundada no conformismo e na aceitação de “regras” formais. (…) O temor de Comte ao “progresso anárquico” (às revoluções), com a consequente defesa da primazia da “ordem”; a afirmação de Durkheim segunda a qual o “espírito de disciplina” é a condição básica da vida social; a subordinação do progresso a “estruturas” imutáveis na obra de Lévi-Strauss: temos aqui três elaborações ideológicas, em épocas diversas, do mesmo sentimento pequeno-burguês da “segurança” manipulada como valor supremo da vida.” (Carlos Nelson Coutinho, O Estruturalismo e a Miséria da Razão, página 64)

  5. Ah, Filipa, Filipa, essa cabecinha social-democrata não alcança que as chamadas forças da ordem defendem a ordem dos dominantes…

    Manuel Monteiro

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