Contrariando prognósticos de militantes tarimbados que anunciavam o “grave erro político” de se “politizar certos períodos” como o Carnaval (e a Copa), os garis venceram. Por Manolo

Conversava esses dias com alguns conhecidos e amigos sobre a vitoriosa greve dos garis no Rio de Janeiro. Alguns, empolgados, vêem nela o sinal de um ressurgimento da autonomia operária. Outros pensam que a greve foi fruto das mobilizações de junho – que no Rio duraram outros tantos meses – a sinalizar outras mobilizações de trabalhadores na região e quem sabe além. Todos comemoraram o atropelo da pelegada sindical. Mas poucos se preocuparam em ir além da euforia – e é disto que precisamos para aprofundar as lutas. Tento, a seguir, compartilhar algumas inquietações para propor uma reflexão coletiva.

É preciso relembrar algumas obviedades para começarmos o papo.

A primeira delas: a classe trabalhadora não é homogênea. Tanto como parte da divisão social do trabalho quanto por desígnio planejado da parte dos capitalistas (mascarados como “necessidades da produção”, “gestão de pessoal” etc.), os trabalhadores são divididos em incontáveis profissões, e mesmo estas são fraturadas em outras tantas categorias. Há empresas de maior porte onde a fragmentação setorial é tão grande que seu quadro de pessoal comporta cargos e funções que agregam dois, três, cinco trabalhadores. Em outras empresas de maior porte, o quadro de pessoal é mais enxuto em número de cargos e funções, mas a massa de trabalhadores é posta em ação de modo geograficamente disperso. Não faltam também empresas onde o quadro funcional é enxuto, a massa de trabalhadores convive no mesmo espaço, mas a fiscalização sobre eles é rigorosa e minuciosa ao nível dos gestos, travando qualquer forma de socialização mais intensa. E não se pode esquecer o arquipélago de pequenas empresas, com até vinte funcionários, nas quais os trabalhadores de determinada categoria profissional não apenas concorrem uns contra os outros pelos postos de trabalho, como também dificilmente chegam a se conhecer, pela natureza pontilhística do conjunto destas empresas. E nem entramos no duro universo dos pejotizados, free-lancers, “autônomos”, terceirizados, “empreendedores”, coopergatos, informais, “por conta própria”… O panorama é de crescente e aparentemente incontornável fragmentação da classe trabalhadora – incontornável enquanto não houver lutas em que cada trabalhador veja em seu companheiro não outro número dentro do quadro de pessoal ou outra peça na engrenagem, mas alguém igual a ele, que luta junto, constrói junto as lutas, avança ombro a ombro e compartilha das vitórias e derrotas.

A segunda delas: nos momentos em que os trabalhadores se põem a reivindicar o que quer que seja dos patrões, o poder de barganha de cada categoria – estamos aqui tratando das divisões internas da classe trabalhadora – varia de acordo com sua posição no processo de trabalho. E o poder de barganha de cada posição no processo de trabalho depende de sua posição no conjunto da produção social. Nas duas escalas, o poder de barganha varia de acordo com a possibilidade de determinada categoria de impactar a produção como um todo. O poder de barganha dos garis (concursados, terceirizados, como quer que sejam) é fenomenal: “deem-nos o que é justo, ou a cidade fica podre”. Nos rodoviários, o mesmo: “deem-nos o que é justo, ou ninguém circula pela cidade”. Nos bancários, idem: “deem-nos o que é justo, ou a economia para”. Nos carteiros, algo semelhante: “deem-nos o que é justo, ou os boletos de cobrança não vão a lugar algum”. E assim segue. Um conhecido observou que toda categoria pode impactar a produção, embora umas o façam de modo mais imediato (limpeza pública, bancos, transportes etc.), e outras apenas em prazos mais longos (construção civil, professores, petroquímicos etc.); a isto adiciono que o poder de barganha de uma categoria é tanto maior quanto maior for, de um lado, sua capacidade de impactar a produção em curto prazo, no aqui-e-agora, e de outro sua capacidade de fazer com que este impacto não seja visto por setores externos à categoria como prejudiciais a si próprios. Uma coisa é parar os ônibus, outra é rodá-los pela cidade de portas abertas; uma coisa é parar as aulas, outra coisa é empregar o estoque da merenda escolar em almoços e jantares de mobilização comunitária etc.

A terceira delas: as lutas das categorias com maior poder de barganha, a depender de sua profundidade e difusão em cada conjuntura, tendem a puxar as demais categorias a radicalizar-se. Isto pode se dar conscientemente, através de articulação e mobilização coletiva conjunta, ou involuntariamente, pelas possibilidades políticas abertas pelas suas próprias mobilizações. Mas é sempre da capacidade de articulação das categorias “mais fortes” com as “mais fracas” que depende uma estratégia política de classe; falar só de garis, só de professores, só de bancários, só de rodoviários, só de catadores de recicláveis, só de atendentes de telemarketing, só de comerciários etc., não é falar da classe trabalhadora como um todo. Para anticapitalistas, é disto que se trata: articular os setores da classe. Pois qualquer vitória de uma categoria, por mais importante para si própria ou por mais relevante na conjuntura política, se se mantém isolada termina sendo abafada, transformada em algo muito menor do que poderia ser.

A quarta: na luta de classes, nada é dado de uma vez por todas. No enfrentamento contra os patrões, vários fatores influem sobre este poder de barganha; mudanças nestes fatores podem acontecer tanto antes do deflagrar das lutas quanto durante os embates, e influenciam-nos decisivamente. As adaptações dos trabalhadores às mudanças tecnológicas, o grau de vulnerabilidade à repressão, a articulação ou desarticulação interna de uma dada categoria, a capacidade ou incapacidade de sustentar lutas tendentes ao longo prazo, o apoio ou rejeição da luta por parte de setores externos à categoria, a maior ou menor integração dos mais ativos e da categoria como um todo às “regras do jogo democrático” (e consequentemente a adoção de formas mais ou menos radicalizadas de luta), a capacidade ou incapacidade dos patrões de “dar os anéis para não perder os dedos”, a eficácia ou ineficácia política dos subornos, cooptações, demissões, espancamentos, sequestros, assassinatos… Estas e outras tantas coisas ainda mais sutis alteram a correlação de forças, mexem no tabuleiro, podem impor a vitória contra os capitalistas numa situação que antes era de derrota certa – e também o contrário.

A quinta e última: na esteira de uma vitória de qualquer categoria dos trabalhadores, para manter a coesão do sistema é necessário aos capitalistas extirpar qualquer memória das lutas. Do contrário, seu exemplo pode contagiar outras categorias com menor poder de barganha a também se tornarem rebeldes, a também ensaiarem “motins”, a também arriscarem-se a conseguir coisas que estão para além das planilhas de negociação sindical e dos cálculos dos gestores – e a proliferação das lutas das categorias “mais fracas”, a instauração de um estado de rebeldia difusa contra os patrões e os gestores pode comprometer seriamente as bases ideológicas e práticas do capitalismo. O ataque à memória das lutas é tanto mais fácil quanto maior for o isolamento social e político da categoria vitoriosa após o fim das lutas. É então que sobrevém a repressão, aberta ou sutil: demissão dos mais ativos, observações negativas nas carteiras de trabalho – a prática é ilegal, mas é exatamente para contornar a legalidade que existem os departamentos jurídicos das empresas –, “listas negras”, endurecimento das rotinas de trabalho, instalação ou aprimoramento dos sistemas de vigilância e fiscalização etc. A repressão não se dá apenas dentro das empresas: fora delas, os aparatos da comunicação social, em especial através de certos articulistas e editores da mídia corporativa e agitadores de redes sociais, promovem o linchamento moral dos mais ativos (agora “agitadores”, “infiltrados”, “baderneiros”, “amotinadores” etc.), subvertem a memória das lutas com a criação, ao arrepio dos fatos, de narrativas menos “selvagens” para as lutas agora encerradas, e abafam a difusão das vitórias. Sem falar nos casos de distorção pura e simples dos fatos.

Ditas as obviedades, vamos ao que interessa.

Contrariando prognósticos de militantes tarimbados que anunciavam o “grave erro político” de se “politizar certos períodos” como o Carnaval (e a Copa), os garis venceram. Venceram porque aprenderam: a longa sequência das manifestações pós-junho no Rio de Janeiro parece ter deixado impresso na mentalidade dos trabalhadores de lá que é possível, sim, lutar e vencer – e eles não deixaram passar a oportunidade de conquistar reivindicações que em outro momento teriam parecido impossíveis.

Venceram também porque ensinaram: diante da repressão mais aparatosa que os forçou ao trabalho sob a mira de fuzis, driblaram-na na medida do possível para denunciá-la aos passantes, provocando, assim, solidariedade. Venceram porque ensinaram: mesmo sem saber detalhadamente como a estrutura sindical brasileira foi talhada para transformar mesmo os mais combativos militantes sindicais em pelegos, viram ali, na hora, que a negociação estava pendendo mais para o lado do patrão do que para o lado do peão, e transformaram em ação a desconfiança difusa contra os dirigentes sindicais; varreram-nos do caminho sem muita cerimônia e passaram a tocar suas lutas independentemente deles. (Os mais afoitos diriam contra eles, mas não há como afirmá-lo sem ter vivido as mobilizações por dentro.)

Agora, para os garis, parece ter chegado a hora do duro retorno à normalidade do trabalho. A hora em que os capitalistas farão de tudo para romper os laços surgidos nas lutas, seja pela massacrante rotina de trabalho, seja pela repressão feita longe dos olhos do público.

É a hora, também, de vermos se aprendemos algo com suas lutas, assim como eles aprenderam com outras que precederam as suas próprias.

Que laços de solidariedade podem ser construídos com os garis para que não sejam atacados agora que a poeira baixou? Como poderemos apoiá-los quando necessário? Como romperemos o cerco midiático para difundir não somente suas conquistas imediatas, mas também suas práticas de luta?

E há mais a aprender, desta vez no que toca a nós, que somos anticapitalistas justamente porque somos trabalhadores. (Esqueçam a imagem clássica do trabalhador fabril com macacão sujo de graxa; a dona de casa, o funcionário público, a atendente de telemarketing, o estudante de escola pública, a mobilizadora social, o “avião”, a obreira, o baleiro, são todos – e outros também – trabalhadores como ele.) Como identificar o poder de barganha das categorias profissionais onde estamos inseridos, especialmente nestes tempos em que os processos de trabalho assumem formas novas e em constante mutação? O que lhes interessa mais imediatamente? Qual sua força? Como se pode mobilizá-la? E contra quem? Como as lutas de cada uma das categorias profissionais onde estamos inseridos podem amalgamar-se com as de outras?

São as perguntas que ficam depois da greve. É o que os garis nos ensinam, entre outras coisas, com suas conquistas. A reflexão sobre a vitória, tal como a reflexão sobre as derrotas, é a condição necessária para que a euforia não degenere em frustração.

Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.

1 COMENTÁRIO

  1. As vezes fico alegre de ver as analises de pessoas em lugares um tanto longe (na militancia e geograficamente mesmo hahah) serem as mesmas mesmo sem ter um comite central mandando pra todo mundo uma avaliação nacional de cupula, me lembra o quanto existe (ou parece) existir uma correspondencia material entre a teoria e o mundo, e as nossas analises não serem “nossas” mas em ultima medida, serem analises de um tempo historico de militancia dentro de uma tradição

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