Por Passa Palavra
Na última sexta-feira, dia 11 de abril, circulou entre Mambu e Marsilac, na zona semi-rural do extremo sul de São Paulo, uma linha de ônibus organizada de forma autônoma pelos moradores. A ação, além de representar uma denúncia da situação da região – onde não existe qualquer tipo de transporte público e a população é forçada a andar de 8 a 15 km a pé – e o descaso do poder público, é também uma experiência temporária que mostra a possibilidade dos trabalhadores controlarem eles próprios o sistema de transporte, seus deslocamentos, suas vidas.
Elaborada em uma assembleia da comunidade um mês antes, a “Linha Popular” circulou desde a madrugada, quando um grupo de moradores do Mambu saiu para o trabalho no centro. Ao longo do dia, várias pessoas, que desacostumadas a usar qualquer tipo de transporte andavam a pé pela estrada, encontravam o ônibus no meio do percurso e entravam. Iam ao posto de saúde, à mercearia, à escola para uma reunião de pais, visitar amigos… Ou simplesmente “dar uma volta”: de repente, o transporte, não mais completamente reduzido à função de deslocamento da força de trabalho, vira um lugar. Lugar de encontros e conversas, usado estrategicamente pelos militantes para discutir a luta da região entre os moradores.
Assim, além de atrair a atenção da imprensa para os problemas da região (até então desconhecidos pelos noticiários), a experiência de ação direta proporcionada pela linha popular traz um novo ânimo à mobilização na comunidade que, após um ano de esforços sem resultados, mergulhara em um refluxo.
O atual movimento do bairro surgiu no começo de 2013 por iniciativa dos agentes comunitários de saúde que, percebendo a dificuldade enfrentada pela população para ir à unidade de atendimento e fazer seus tratamentos, passaram a reivindicar a criação de linhas de ônibus nos trajetos Reserva – Embura e Mambu – Marsilac. Por trabalharem visitando a população de casa em casa, os agentes também tiveram um papel estratégico em mobilizar os moradores, vencendo a tendência à dispersão gerada pelas longas distâncias na comunidade semi-rural sem transporte.
Ao longo de quase todo seu primeiro ano, o movimento investiu em um caminho de reivindicação bastante institucional, baseando sua agenda em audiências públicas, reuniões com a subprefeitura e outros órgãos, conselhos gestores, etc. Buscando apoio, a comunidade recebeu visitas (e, claro, promessas) de políticos – incluindo até o presidente da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e aspirante a governador estadual Paulo Skaf, que tentou manobrar uma assembleia para forjar uma declaração de apoio dos moradores à construção de um aeroporto particular no bairro próximo de Parelheiros.
Nessas reuniões o poder público usou todo tipo de argumento para atravancar a luta dos moradores, especialmente o argumento ecológico, pelo fato da comunidade estar localizada numa Área de Proteção Ambiental. Mas este logo caiu por terra. Afinal, que “dano ambiental” teria uma perua para suprir a necessidade dos moradores, quando existe uma linha de trem de carga atravessando a região e um aeroporto em projeto?
A insistência nessa via por quase um ano, sem qualquer conquista concreta, desgastou os moradores, que gradualmente foram deixando de participar das atividades. Já o grupo que se manteve firme à frente da luta passou a ter influência cada vez maior de outras formas de ação pelo contato com movimentos como a Rede Extremo Sul e o Movimento Passe Livre (MPL), ao passo que perdeu a crença nas reuniões “com os burocratas”. Afinal, o projeto de uma das linhas acabou sendo aprovado, mas não saiu do papel porque dependia de obras de melhoria das vias, que nunca aconteceram. É nesse contexto que ganha força a ideia da linha popular: “se o governo não faz, nós vamos fazer”.
O veículo, um micro-ônibus sem catraca, foi fretado por R$600, quantia levantada a partir de um bingo comunitário e doações. O preço é um dado importante por revelar que a criação da linha não significaria um gasto minimamente alto para o governo. O principal entrave talvez seja outro, relativo à forma como o sistema de transporte se estrutura na cidade: a remuneração das empresas pelo número de passageiros embarcados faz com que a lotação dos veículos seja condição central para o lucro delas. Assim, num caso como o do Marsilac, onde a densidade populacional é baixa e dificilmente os ônibus ficariam lotados, o serviço jamais será interessante para os empresários. A saída proposta pelos moradores é de que as futuras linhas sejam subsidiadas e que, por isso, possam ser gratuitas. Trata-se então de um caso específico a partir do qual se pode questionar o sistema como um todo, abrindo uma brecha para uma uma experiência localizada de tarifa zero e municipalização.
No entanto, a proposta da linha popular nos permite vislumbrar outros caminhos de luta, que não necessariamente se centrem em reivindicar diretamente ao Estado a solução dos problemas. Por exemplo, a criação de uma cooperativa. Nesse caso, se poderia ganhar formando uma cooperativa entre um produtor de serviço (o proprietário do veículo) e consumidores (os passageiros), que dê garantia de transporte a certas horas e mediante um certo preço. Trata-se de uma perspectiva muito mais trabalhosa, mas que, além de resolver um problema prático, poderia fortalecer relações de maior solidariedade entre os moradores.
A linha popular Mambu-Marsilac não foi a primeira experiência do tipo: houve pelo menos uma tentativa de fazer algo similar pelo MPL de Florianópolis em 2011, além do ônibus gratuito organizado pelo Movimento Tarifa Zero de Belo Horizonte durante as festas do último carnaval. No entanto, abre uma série de possibilidades novas, ligando formas de ação direta radicalizadas com organização de base territorial e apontando para um futuro em que as lutas em torno do transporte vão além das lutas contra o aumento.
Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.
Que bonito! Boa sorte.
Belo exemplo!!!
Desejo toda sorte e força possível. Acredito ser um projeto sério e dotado de significados sociais, políticos e emancipatórios para essa população. Que tais questões, dificuldades e propostas, sejam amplamente divulgadas com o objetivo de ganhar força e colaboração.
Agradeço o exemplo de nos mostrar que realmente é possível!!!
Força Cump@s!!!