O que há de comum entre as recentíssimas franquias The Purge e Battle Royale, o filme hispano-peruano Madeinusa, as Garotas Superpoderosas, a tradição contratualista da filosofia política e o antigo costume espartano da krypteia? Por Manolo
1.
Numa de minhas noites insones, calhou de estar passando na TV o filme cujo título em português é Um Dia de Crime, mas cujo título original em inglês é mais apropriado para o desenvolvimento deste ensaio: The Purge, ou seja, O Expurgo. Para não cansar os leitores com uma expressão inglesa, me referirei ao filme pela tradução exata de seu título original, e não pelo título com que foi lançado no Brasil.
O roteiro de O Expurgo não parecia nada original, para mim que o peguei já pela metade: uma família cercada em sua casa resiste contra invasores dementes – e, não surpreendentemente, incapazes de qualquer diálogo, exceto pelo seu líder, refinado como um psicopata clássico. Até que, vendo o filme até o final, entendi a premissa do roteiro: um dia liberado pelo governo dos EUA para que todo e qualquer crime fosse cometido sem qualquer violação da lei.
Tentei assistir O Expurgo novamente, desta vez por inteiro. Então entendi a premissa geral do argumento: para reduzir a criminalidade e a violência, num 2022 ficcional o governo dos EUA instituíra o dia do expurgo: das 19h do dia do expurgo às 7h do dia seguinte, toda a violência, o ódio e a frustração contida nos outros 364 dias do ano poderiam ser desprendidos sob qualquer forma (ver aqui), inclusive criminosa, sem qualquer represália estatal – desde que as armas utilizadas sejam “da Classe 4 para baixo” (o filme não dá pistas sobre a natureza destas armas) e que o alvo não seja nenhum “oficial do governo de classe 10” (o filme não dá qualquer dica sobre quem seriam). Como diz um dos sites oficiais do filme, o expurgo seria, no contexto fílmico, um direito constitucional assegurado pela 28ª Emenda à constituição dos EUA – e o líder psicopata do grupo de invasores relembra em dada cena que “tem direito” a seu alvo.
A interessante premissa do argumento de O Expurgo, infelizmente, foi afogada – para quem não saiba ler as entrelinhas de um filme de ação – por litros de sangue. Sobressaiu quase tão-somente a resistência da família encurralada, restando, para que não esquecêssemos o motivo de tamanha violência gratuita, pequenos flashes noticiosos na TV de um preocupado sr. Sandin (Ethan Hawke, tentando salvar o filme) e a sutil, intermitente e eloquente presença na casa de um Dwayne “sem nome” (Edwin Hodge) – ele, o pivô, razão e móbil da ação dos dementes e dos psicopatas.
Descobri que O Expurgo teve uma sequência chamada The Purge: Anarchy, lançada no Brasil como Um Dia de Crime: Anarquia. (Novamente, nomearei o filme segundo a tradução direta de seu título original, mais adequada aos propósitos deste ensaio.) Aqui o roteiro é tirado do oikos e levado para a agora: não se trata mais de uma família lutando pela vida em sua casa cercada, mas de indivíduos desgarrados, com diferentes motivações, unidos apenas pela necessidade de sobreviver nas ruas pela duração do expurgo.
Tudo isso é animado por aquela trilha sonora inspirada em videogames – parte eletrônica, parte orquestral, parte “tamborzão” – que se tornou comum em filmes épicos e de ação nos últimos dez a quinze anos. Curioso é que, pelo argumento do filme, todo crime deixa de ser ilegal neste período, mas só assassinatos são cometidos. Não há roubos, nem fraudes, nem estupros, nem dano – exceto quando precede assassinatos – nem qualquer outro crime cometido além do homicídio.
A premissa do argumento da franquia tem sido visto por comentadores estadunidenses como um ataque à National Rifle Association (NRA) e ao direito de portar armas (ver aqui e aqui); como uma sátira à luta de classes na era Occupy (ver aqui e aqui); como um ataque ao Tea Party, a nova expressão política dos neocons (ver aqui); enfim, um divertimento banal tem sido elevado ao status de manifesto político.
2.
Nada no argumento da franquia O Expurgo é novo.
Antes que O Expurgo tomasse forma, a franquia japonesa Battle Royale já era um sucesso de público. A estética dos primeiros minutos das duas partes de Battle Royale parece ter sido diretamente copiada pela franquia O Expurgo, embora o modelo purgatório seja diferente: enquanto em Battle Royale trata-se de um expurgo enclausurado, a que estão sujeitos elementos selecionados de um grupo social tido como perigoso (jovens em idade escolar), n’O Expurgo trata-se do exato contrário, pois as famílias “de bem” se fecham em suas casas, devidamente protegidas por caríssimos sistemas de segurança, enquanto as ruas, e as casas de quem não consiga arcar com o custo destes sistemas de segurança, são o lugar do expurgo e do perigo.
No cinema latinoamericano, por exemplo, o argumento do expurgo toma outras conotações. Veja-se Madeinusa, por exemplo. Na aldeia de Manayaycuna (“cidade onde ninguém pode entrar”, em quíchua), há a crença de que entre a Sexta-Feira da Paixão e o Domingo de Páscoa se passa o “Tempo Santo”; como entre estas duas datas os habitantes de Manayaycuna acreditam que Jesus está morto e ainda não ressuscitou, tiram daí a conclusão de que sua ausência faz com que não exista pecado, fazendo do “Tempo Santo” algo como um carnaval com menos rédeas. Bêbados desenterram uma mulher morta e servem-lhe bebidas, mascarados encarapitados em telhados atiram objetos sobre a populaça, todos se sujam de terra e lama, música embala o folguedo, girândolas e buscapés iluminam a noite… O “Tempo Santo” é o pano de fundo sobre o qual se desenvolve a narrativa, sem muita centralidade; importa, mesmo, na relação entre o prefeito de Manayaycuna e Madeinusa, sua filha mais velha: o primeiro, ansioso pela chegada “Tempo Santo”, quando poderia violentar sua filha; a segunda, sabendo da intenção do pai, aproveitou-se do “Tempo Santo” para envenená-lo. Registre-se: enquanto, no filme, a violação de Madeinusa pelo pai não teria sido pecado algum, o envenenamento do pai pela filha mais velha foi prontamente denunciado à aldeia aos prantos e berros pela filha mais nova assim que encontrou o cadáver. Como se vê, há “pecados” e pecados quando deus está morto.
Trekkers também já foram expostos ao argumento do expurgo, e muito provavelmente mais de uma vez. O cânone é o episódio “The return of the archons”, da série Star Trek original. Nele, a tripulação da Enterprise vai parar no planeta Beta III do sistema C-111, cuja população é mentalmente controlada por um certo Landru – mesmo nome do serial killer francês executado em 1922 e retratado por Claude Chabrol em filme homônimo de 1963. O controle mental de Landru subsumiu as individualidades da população do planeta Beta III na “unidade do bem” promovida pelo “ser comum” do “Corpo”, onde encontram “contentamento”, “satisfação” e o “bem absoluto”. Qualquer desvio deste caminho é controlado pelos “Legisladores”, estranha tropa monacal de Landru, cronicamente incapaz de reagir a situações inesperadas. Landru, ao final, revelou-se nada mais que a projeção de uma máquina, construída pelo Landru real seis mil anos antes, e o episódio assumiu feições distópicas: a máquina controlava a mente da população do planeta, impondo-lhes uma vida tranquila, pacífica e ordeira – mas monótona e insípida. A ordem no planeta era rompida apenas durante a “Hora Vermelha” que iniciava o “Festival”; nesta hora em especial, mas também durante o “Festival” inteiro, todos poderiam dar vazão a seus instintos mais violentos. A explicação canônica para o “Festival” é dada pelo tenente Lindstrom na versão novelizada do episódio: “na civilização perfeita de Landru, os nascimentos superariam os óbitos, resultando em superpopulação. O Festival provê um meio mais ou menos aleatório de manutenção da população num nível estável. Este é, certamente, o tipo de estratégia que um computador programado para ver indivíduos como células num corpo poderia construir”. James DeMonaco, diretor e roteirista de O Expurgo, admite ter sido influenciado por este episódio de Star Trek (ver aqui).
Crianças também já foram expostas ao argumento do expurgo. No desenho animado The Powerpuff Girls (As Garotas Superpoderosas) há o episódio “Bought and scold”, em que a Princesa MaisGrana – arquétipo da menina rica, egocêntrica e mimada por pais ricos – compra a prefeitura (com manjar turco) e decreta a legalidade de todo crime. Cadeias são abertas, bancos são roubados, pessoas são espancadas, tudo sob a guarda da lei, ou da falta dela. Desoladas pela falta do que fazer (afinal, se nada é crime, não há o que heroínas combater), as três garotas superpoderosas quedam-se inertes até a casa da Princesa MaisGrana ser totalmente saqueada. Preocupada com a reação do pai, a Princesa MaisGrana procura as Garotas Superpoderosas, que confessam sua impotência diante da nova lei; atormentada, a Princesa MaisGrana decreta novamente a ilegalidade do crime na tentativa de reaver os bens de sua casa, só para descobrir que as Garotas Superpoderosas é quem havia feito o saque para induzi-la a decretar novamente a ilegalidade do crime. E não poderiam ser presas nem responsabilizadas pelo saque, pois, tecnicamente, como todo crime era legal, não haviam violado lei alguma. O diferencial desta versão do argumento do expurgo: nenhum cidadão de Townsville cometeu qualquer ato criminoso sob a guarida da nova lei; apenas os vilões o fizeram, e as Garotas Superpoderosas igualaram-se aos vilões apenas como parte de um plano para restaurar a lei antiga. Para as crianças, a lição:aja fora da lei, desde que seja para proteger a lei.
3.
Chamo este curioso subgênero de distopias purgatórias. Distopias, pois imaginam situações, ou lugares, em que ninguém quer estar, construídas como críticas a fatos, grupos ou situações presentes; purgatórias, por terem no expurgo político e social o centro de sua temática. Juntando as duas coisas, trata-se da criação de narrativas que envolvem a suspensão provisória das leis, resultando em que nada é proibido e tudo é permitido; nestas narrativas, tal suspensão tem como função agir como “válvula de escape” para tensões e repressões cotidianas.
Diferentemente dos dois minutos de ódio orwellianos, nas distopias purgatórias não há um alvo específico contra o qual descarregar as tensões; trata-se de um vale-tudo provisório, embora – como vimos – a preferência das personagens envolvidas por alguns alvos ou práticas seja engendrada para dar sentido e forma às intenções críticas dos autores.
Como visto, o subgênero tem longa cauda. Mas se nada há de tão novo nele, o que interessa tanto nestas histórias?
4.
A melhor ficção é aquela mais próxima da realidade, aquela que parece a todo tempo desafiar as fronteiras entre os dois domínios e inserir o público num universo ao mesmo tempo familiar e estranho, íntimo e exterior. É aquela capaz de abalar em algum nível, por menor que seja, a relação entre a realidade e as estruturas de sua vida mental. Para alcançar este efeito, tudo o que se constrói na ficção precisa encontrar algum lastro na realidade, seja na realidade factual, seja em especulações ou teorias construídas com base nesta mesma realidade. Daí dizer que mesmo a mais fantástica das ficções enraíza-se em elementos que, tomados de empréstimo de diferentes fontes, são inéditos apenas em sua bricolagem.
Veja-se, por exemplo, o Expurgo Anual da franquia O Expurgo. Nada nesta premissa é assim tão diferente da krypteia espartana, tal como descrita por Plutarco (Vida de Licurgo, 28):
Eis em que consistia a Cripteia. Os chefes dos jovens mandavam de vez em quando para o campo – ora para ali, ora para acolá – aqueles que passavam por mais inteligentes, sem deixá-los levar mais que o punhal e os víveres necessários. Durante o dia esses rapazes mantinham-se escondidos, descansando em sítios cobertos; chegada a noite, desciam para as estradas e degolavam quantos hilotas pudessem surpreender. Também, com alguma frequência, incursionavam pelos campos e ali matavam os mais fortes e os melhores.
A premissa é a mesma: um evento anual em que a elite espartana partia para matar a população subjugada – os hilotas – sem qualquer punição ou represália. Comentadores de Plutarco e historiadores ressaltam a possibilidade de que a escolha dos hilotas a assassinar não fosse assim tão aleatória; mais visadas seriam quaisquer pessoas, ou grupos de hilotas, envolvidas em agitações, boatos anti-espartanos, pequenas rebeldias etc.
Veja-se, num segundo exemplo, as Sessões de Luta (批鬥大會 – pīdòu dàhuì) da Revolução Cultural chinesa. Iniciadas na década de 1930 e inicialmente rejeitadas pelo Partido Comunista Chinês (PCC), logo viraram hábito e tradição nas reuniões públicas do partido. Foi uma das ferramentas de controle social e ideológico preferidas pelos Guardas Vermelhos durante a Revolução Cultural: lacaios do imperialismo (帝国主义 的 走狗 – dìguó zhǔyì de zǒugǒu), contra-revolucionários, seguidores da via capitalista(走資派 – zǒu zīpài), todos eram levados à praça pública para “admitir seus erros” por meio de sessões de xingamentos, humilhação e tortura. As sessões de luta, que me lembre, ainda não retomaram as telas – o exemplo mais próximo que me vem à memória está em The Last Emperor, de 1987 – mas a temática do expurgo as atravessa igualmente. Capturar o “inimigo”, exibi-lo ao público como uma presa de caça, e matá-lo (como era comum nas sessões de luta), é isto o que compõe o expurgo.
Como último exemplo, veja-se o “Tempo Santo” de Madeinusa. Nada nesta premissa é tão diferente do carnaval, que – não sem polêmicas e divergências de detalhes – já foi teorizado em diferentes momentos como, digamos, um “expurgo emasculado” (expressão minha), onde os conflitos sociais assumiriam formas altamente ritualizadas e carregadas de significados simbólicos.
Um exemplo clássico desta teoria é o dos blocos de índio no carnaval de Salvador. Há notícias de blocos carnavalescos de maioria negra com inspiração indígena no final do século XIX e início do século XX, e sabe-se que tais blocos, surgidos para driblar a proibição a blocos com temática africana no carnaval soteropolitano, foram igualmente proibidos de desfilar nos anos 1950 e 1960. A nova geração destes blocos surgiu nos anos 1970, em plena efervescência black power, como uma interessantíssima reinterpretação dos western hollywoodianos. O raciocínio é simples: com quem se parece a cavalaria? A polícia. E quem somos nós, então? Os índios. Ataques de índios a comboios de colonos e às tropas a cavalo eram saudados nos cinemas aos gritos e aplausos. Por outro lado, a classe média soteropolitana dos anos 1960 se referia a bairros operários de maioria negra como sendo “terra de índio”. A identificação estava dada na feliz expressão de Antônio Risério: “índio temido do Oeste americano/preto temido dos bairros proletários”.
Neste contexto, e com a queda da proibição a blocos de temática indígena em meados dos anos 1960, não é difícil de entender o surgimento, entre jovens negros, de blocos como os Apaxes do Tororó (assim mesmo, com “x”), Commanches do Pelourinho, Sioux, e outros. Suas baterias vinham das antigas escolas de samba de Salvador, então em processo de desintegração. (Não pensem que os atuais blocos afro soteropolitanos inovaram neste campo, salvo no que diz respeito ao ritmo samba-reggae.) Era o negro se disfarçando de índio para mostrar sua força no carnaval.
Havia, também, outro fator: imagine-se, você, sendo negro, jovem e proletário nos anos 1960/1970, morando dos bairros mais distantes do centro de Salvador (mal-pavimentados, mal-iluminados, sem saneamento básico, mal servidos por transporte público), ganhando salário mínimo ou menos, humilhado em cada aspecto da vida cotidiana; imagine-se você, nestas condições, junto com outros cinco mil como você, vestindo cada um uma fantasia que incluía uma lança ou uma machadinha falsas, mas de material bastante rígido. E seja sincero ao imaginar o que faria. Uma das características mais marcantes destes blocos, além da contínua esquiva à repressão contra a expressão negra no carnaval soteropolitano, foram as rivalidades “inter-étnicas” (ou seja, entre blocos de “nações” diferentes), ocasionadoras de pancadarias épicas no circuito carnavalesco.
Do meio para o fim da década de 1970 a polícia baiana ordenou que a membresia destes blocos, que alcançava até cinco mil homens por bloco, fosse limitada a mil homens por bloco; além disso, informalmente, orientou os policiais a sentar a porrada em tudo o que lembrasse índio no circuito carnavalesco. Os blocos de índio foram, por força destes fatores, decaindo, até que o surgimento dos blocos afro no fim dos anos 1970, desse novas formas à expressão negra no carnaval baiano. O que já é outra história.
5.
Os exemplos são propositalmente díspares, historicamente desconexos e geograficamente afastados. E até aqui, mais uma vez, nada de novo. Qualquer leitor de Wikipedia poderia ter chegado às mesmas análises e conclusões. (E na verdade a relação entre as obras acima já foi feita na Wikipedia de língua inglesa – ver aqui). Mas este vaivém deixa uma questão como pano de fundo: a do estado de exceção e o seu antípoda, o pacto político.
Em todas as distopias que deram início a este ensaio há um pressuposto: mesmo quando estamos juntos, quando vivemos uns com os outros em sociedade, o medo recíproco é a tônica de nossa convivência. É o medo de Madeinusa, no filme homônimo, da violação anunciada pelo próprio pai. É o medo da família Sandin, em O Expurgo, não só de todos os purgadores como também de suas vítimas. É o medo dos cidadãos de Townsville, em As Garotas Superpoderosas, de viverem num mundo onde não há crime, pois a lei é não haver lei. É o medo da diversidade e da divergência no planeta Beta III de Star Trek. (Só faltou o extremo medo, canettiano, do toque de um estranho, mas debatê-lo levaria o ensaio a extremos indesejáveis para o que me proponho a debater.)
E este medo – não só ele, mas também a raiva, a inveja – é produzido pela nossa vida em sociedade, como qualquer outra coisa. E o reprimir desta raiva, deste medo, desta inveja, é um dos elementos mais basilares de nossa vida social. Também até aqui, novidade alguma: trata-se da mais comum vulgata freudiana. Ou melhor: hobbesiana.
Sabe-se que, para Hobbes, é o medo quem fundamenta o pacto político fundador da soberania e do Estado. Nos capítulos 7 e 8 do Leviatã, a construção lógica do argumento hobbesiano em favor da legitimação da soberania estatal pelo contrato social é simples, elegante – e cruel. O estado de natureza é um estado social em que todos os homens são iguais por natureza, e podem, portanto, fazer o que quiserem para obter o que é necessário e cômodo à manutenção de suas próprias vidas. Por poderem fazer o que quiserem, podem atacar-se mutuamente sem recear qualquer represália, e só podem defender-se com suas próprias forças; é isto a guerra de todos contra todos. Pelo medo de morrer em tais circunstâncias, fazem entre si um pacto político em que cada qual cede e transfere seu direito de governar-se a si próprio a um homem, ou assembleia de homens, com a condição de que cada qual faça o mesmo. Esta pessoa, ou assembleia, pode usar a força e os recursos de todos da maneira que achar conveniente, para assegurar a defesa e a paz comum. Este poder seria autorizado tanto pelos que elegeram majoritariamente os atuais governantes quanto pelos que lhes foram contrários e foram, portanto, derrotados; o que importa, para Hobbes, é que vencedores e vencidos nesta eleição reconheçam no eleito legitimidade para exercer o poder soberano e evitar, assim, a guerra de todos contra todos – pois se os vencidos não reconhecessem o vencedor, os eleitores do vencedor poderiam dar o pacto como rompido e destruir os vencidos. E o poder deste soberano deveria ser exercido, necessariamente, de modo absoluto, no sentido de não conhecer qualquer limitação por lei civil; para Hobbes, a submissão do soberano a uma lei civil é causa de dissolução do Estado. Ou seja, pela teoria hobbesiana, o pacto social conduz, necessariamente, ao poder absoluto, seja ele exercido por uma só pessoa, seja por uma assembleia.
É esta a teoria por trás das distopias purgatórias. Por trás do expurgo está a teoria hobbesiana de que só o medo funda a política, e por consequência o Estado. Nas distopias purgatórias, a ausência provisória do Estado reforça-o, faz lembrar a todos de sua necessidade, introjeta o medo de seu desaparecimento.
Além disso, o expurgo aparece nas distopias purgatórias como estado de exceção, entendido como suspensão da ordem legal. Nas distopias purgatórias, entretanto, o uso tradicional do estado de exceção é invertido: diferentemente da prática clássica do estado de exceção, de natureza marcial e direcionada ao reforço do poder de Estado por meio da suspensão dos direitos e garantias individuais dos cidadãos, aqui a exceção significa a suspensão quase total da lei – vimos onde estão as “exceções à exceção” – e o primado do vale-tudo, a vigência da “guerra de todos contra todos”, o retorno provisório a um “estado de natureza simulado”.
6.
A esta altura os olhos cansam e a mente se confunde. Perguntarão de que valeu ter lido este artigo até o momento, pois não há nada aqui além do business as usual, do já dito e redito, da coleção de banalidades e da erudição fácil e inútil.
O fato novo, manifesto pela disseminação das distopias purgatórias e de que não se deve tirar dos olhos, é a naturalização do expurgo. Com naturalização quero dizer que expurgos acontecem a torto e a direito, e são tidos como algo comum, normal, corriqueiro, que faz parte da vida.
A naturalização do expurgo está em todos os cantos, variando apenas os graus de violência empregues em cada caso. Dos jovens negros amarrados em postes às pichações contra transexuais em banheiros de universidades; dos Tribunais do Crime ao tribunal da mídia e das redes sociais; da fofoca à detonação; dos comentários em sites de jornalões às manifestações públicas pelo retorno da ditadura militar. Exemplos abundam. Em todos estes casos, trata-se de fazer do divergente algo fora da possibilidade de diálogo, até mesmo fora da possibilidade de convivência. Se não é possível dialogar nem conviver, o que resta é expurgar.
Junto com a naturalização do expurgo, vem a naturalização de um seu elemento central: a imediatidade da punição. Em todos os exemplos de distopias purgatórias já vistos, a ausência de leis abre a possibilidade de retorsão imediata, no sentido de que não há qualquer intermediário ou etapa intermédia entre a violência e sua resposta. Na verdade, nem de retorsão se trata, pois a desproporcionalidade em todos os exemplos é evidente. Isto quando a violência é, de fato, a resposta a uma violência prévia. A julgar pela narrativa d’O Expurgo, nas distopias purgatórias basta o estigma social e a vulnerabilidade para que a violência se abata.
Mas é possível que a imediatidade da punição seja uma tendência tão real quanto a naturalização do expurgo? Veja-se alguns exemplos, tirados de comentários em redes sociais:
Bandido bom é bandido morto, agora, já, a gente não pode nem ir mais comprar pão na esquina que tem um traficante pronto pra matar a gente, quem sabe até roubar, e ainda aparece direitos humanos pra passar a mão na cabeça.
Essa putinha vagabunda tinha mais é que ser estuprada mesmo, acho até que demoraram, aposto que dá pra todo mundo, além disso onde já se viu andar daquele jeito?
Peguei pelos extremos e toquei em temas sensíveis de propósito. Não há espaço aqui para tratar de tudo. Cabe a quem lê ver se as polarizações extremas se dão em outras áreas, como acredito que aconteça.
E não se pense que se trata de problema de um só espectro político; atravessa todo o debate político contemporâneo, indiscriminadamente. Quem tem dúvidas deveria ler os comentários acima em paralelo a estes abaixo:
Esse povo que manda matar tinha é que passar um tempo preso pra apanhar até morrer lá dentro, aí querem que o cara ainda se recupere do crime com um ódio desse aqui fora.
Mascu só merece morrer, ser espancado, enfiarem uma porra no cu dele até sair pela boca, pra esse filadaputa ver o que é bom. Se não dá pra matar, pelo menos dá pra ver a morte social dele aos poucos.
Se a libertação de um corpo social dos elementos indesejáveis é traço das distopias purgatórias, a ficção anda se aproximando perigosamente da realidade, pois fora do mundo da ficção o expurgo, aqui, embora restrito ao plano do desejo e da troca de ofensas, também reforça o Estado. Contra a linha dura da “lei e ordem”, os direitos humanos; contra a ameaça revolucionária, as leis de exceção e a perseguição policial; contra o machismo, Maria da Penha; contra o feminismo radical, a legalidade burguesa.
Em todos os casos onde o expurgo se manifesta enquanto tendência, é o Estado quem sai reforçado. O que fazer, então?
7.
Voltemos, antes de responder, à ficção científica, pois é nela que encontramos tendências opostas à distopia purgatória. Se a ficção não pode, jamais, servir de modelo à vida social e política, pode ao menos caricaturar suas tendências atuais para evidenciá-las, pode problematizá-las, pode questioná-las.
Em Os Despossuídos, Ursula Le Guin cria dois mundos paralelos, Urrás e Anarres, a orbitar a estrela Tau Ceti, distante 12 anos-luz de nosso sistema solar. (Os menos interessados em astronomia devem notar que a estrela existe, e integra a constelaçãoCetus, ou Baleia. Diferentemente do gênero fantástico, mesmo a ficção científica mais selvagem e ousada se constrói sobre alguma base real.)
Urrás, pleno de riquezas naturais, é assolado por uma guerra entre duas superpotências; Anarres, árido e desolado, é habitado por um grupo de urrastis que nele se auto-exilaram para construir o experimento sócio-político de uma sociedade sem Estados, nem propriedade, nem exploração, nem autoritarismo – em suma, uma sociedade anárquica.
A alegoria é evidente: em Urrás, a polarização entre A-Io e Thu representa a polarização entre Estados Unidos e União Soviética; em A-Io existem partidos de oposição ao regime bancados por Thu – eis aí os partidos comunistas do Ocidente; quando uma revolução apoiada por Thu explode no pequeno estado de Bembli, A-Io invade-o prontamente – eis aí a Guerra do Vietnã; em Anarres, o grupo colonizador inicial veio de A-Io – tal como os anarquistas surgem de dentro do capitalismo; exemplos abundam.
É no regime social libertário de Anarres que cenas como a seguinte se tornaram possíveis:
O homem chamado Shevet veio até Shevek uma noite após o jantar. Era um cara troncudo e bonito, de uns trinta anos. “Estou cansado de ser confundido com você”, ele disse. “Mude seu nome para outro”.
A agressividade grosseira teria antes desnorteado Shevek. Agora, ele simplesmente respondeu no mesmo tom. “Mude seu nome, se não gosta dele”, disse.
“Você é um desses aproveitadores que vão para a escola para ficar com as mãos limpas”, o homem disse. “Eu sempre quis bater num de vocês até cansar”.
“Não me chame de aproveitador!”, disse Shevek, mas esta não era uma luta verbal. Shevet acertou-o duas vezes. Shevek acertou vários golpes de volta, por ter braços mais longos e mais têmpera do que seu oponente esperava: mas foi derrotado. Várias pessoas pararam para observar; viram que era uma luta justa, mas pouco interessante, e seguiram seu rumo. Não se ofenderam nem se atraíram pela simples violência. Shevek não pediu ajuda, então não era da conta de ninguém, só dele. Quando recobrou os sentidos, estava deitado de costas sobre o chão escuro entre duas tendas.
É evidente que esta cena expressa o antípoda de uma distopia purgatória. Não o romance inteiro – pois Le Guin radica em Anarres uma forte tendência coletiva e inconsciente à conformidade, ao pensamento de rebanho e à padronização – mas esta cena.
Em primeiro lugar, a violência em Anarres é livre. É mesmo lícito deduzir, pela falta de interferência e desinteresse dos transeuntes pela briga, que a violência em Anarres é livre a todo momento, não apenas em momentos específicos, e não dá causa a qualquer punição – o que significa dizer que uma sociedade livre não precisa ser, necessariamente, uma sociedade seráfica de pessoas pacíficas. Nas palavras de Shevek, noutra cena, bem mais adiante, em que discute as diferenças entre A-Io e Anarres: “Quanto à violência, bem, não sei; você me mataria, normalmente? E se quisesse me matar, alguma lei contrária conseguiria te parar? A coerção é o meio menos eficiente de obter ordem.”
Em segundo lugar, ao mesmo tempo em que Shevet e Shevek são livres para se espancar – afinal, não há Estado nem polícia – Shevek, em desvantagem, poderia ter pedido ajuda, e certamente seria ajudado se pedisse. Com isto, duas possibilidades se abrem. Como não há punição, é lícito deduzir que a interferência dos transeuntes se daria apenas nos limites do que Shevek pedisse: se ele estivesse em inferioridade numérica, é provável que entrariam para equilibrar a briga; se ele quisesse acabar com a briga, entrariam para separar os brigões. Mas a interferência externa se daria apenas nos limites colocados por quem a pediu – nada mais, nada menos. Além disso, como decorrência do argumento anterior, é também lícito deduzir que a interferência dos transeuntes neste caso dificilmente teria caráter punitivo.
Como se vê, mesmo naquela que talvez seja a mais complexa sociedade anárquica fictícia jamais criada, seus integrantes não estão livres de contradições. Não são perfeitos. Não se adequam a padrões preestabelecidos de comportamento – exceto pela exigência de que todos trabalhem, e que ninguém egoíze. Vivem e, ao viver, vão se ajustando uns com os outros. Para não passar batido: mesmo na sociedade anárquica de Anarres há os nuchnibi, os socialmente banidos por se recusarem a cooperar com o trabalho coletivo. São ridicularizados, desprezados, espancados, retirados da lista dos refeitórios para que comam e cozinhem sozinhos, humilhados de muitas formas, até que se mudem. Ao chegar em outra comunidade anarresti, ou se integram, ou passam pelo mesmo processo. Segundo Shevek, “alguns passam a vida se mudando”. Não são todas as abóboras que se ajeitam com o andar da carroça; algumas, pelo visto, ficam pelo caminho.
8.
As distopias purgatórias expressam na ficção a tendência ao expurgo das diferenças no campo social e político. E esta tendência, a julgar pelos fatos sociais e pelos debates públicos onde se observam as práticas e falas purgatórias, reforçam o Estado.
Não se trata, aqui, de ver o mundo pelos óculos da utopia fraternal. A fraternidade e a solidariedade não estão dadas desde já, elas se constroem na luta contra a opressão e a exploração. Não se trata, aqui, de reeditar a “teoria da ferradura”, pela qual os extremos políticos se tocam. Esta teoria maniqueísta apenas reforça as posições ditas “moderadas”, e toda moderação significa manutenção do status quo. Não se trata, aqui, de simplesmente deixar as coisas como estão. Pelo contrário; a exploração econômica e opressões como racismo, machismo etc. existem e matam, e por isto mesmo precisam ser combatidas onde quer que se manifestem.
Trata-se, a meu ver, de inverter a lógica por trás do expurgo – não na ficção, mas na prática. Se o tipo de sociedade que queremos para o futuro é construída no aqui e no agora, ela não será construída, certamente, reforçando o Estado, ou reforçando o medo.
Na prática política, uma possibilidade é a de superar a imediatidade da punição por meio da criação de formas autônomas e coletivas de mediação social e política, que evitem ao máximo o punitivismo, a fragmentação social e o isolamento individual.
Mediar, aqui, não significa jogar o esquivo jogo dos meios-termos, ou mesmo agir com os mesmos métodos da justiça burguesa (que media a relação entre partes através de rituais de produção da verdade), mas interpor-se num conflito para colaborar com a parte mais desprivilegiada em sua solução. Um exemplo de mediação: em Salvador, foi hábito em alguns bairros populares que mulheres tivessem apitos em casa. Ao menor sinal de violência doméstica, a vítima começava a apitar, chamando a atenção das outras, que corriam para ajudá-la, ainda apitando para identificar o lugar da agressão. Outro exemplo de mediação: em São Paulo, o Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais (CATSO) participou da luta contra o aumento de tarifas não apenas se fazendo presente nos atos, mas apoiando moradores de rua quando a polícia começava a repressão – levando em conta, por muita experiência acumulada, que os moradores de rua são alvos fáceis para os policiais.
Mas isto são princípios gerais. Os problemas a enfrentar são muitos, e não se pode pretender ter a receita para tudo. Ainda mais numa reflexão ainda incompleta e fragmentária, como convém a um artigo mais propenso a provocar debates que a afirmar certezas ou a dar linhas de conduta.
Bem interessante o texto e as reflexões.
Mas vou tocar num ponto que não foi o foco do texto, ou das reflexões mais ao final dele.
Para pegar o exemplo do primeiro filme que o texto aborda, “O Expurgo”, o que ficou de fora das reflexões são as motivações e razões para as ações de “expurgo”.
O que quero dizer com isso é: e se o medo for o objetivo? E se a busca de prazer sádico e de dar vazão a um determinado desejo (perverso) estiver entre as motivações?
Se for o caso, não basta mostrar que criar medo no outro é uma forma de reforçar o Estado, àqueles de suposto espírito libertário.
Num bom e longo artigo sobre o ISIS, ao final o jornalista cita Orwell:
“Psicologicamente o fascismo é mais sólido que qualquer concepção de vida hedonista. Enquanto o socialismo, e o capitalismo de forma mais relutante, tem dito às pessoas “Eu ofereço a vocês uma boa vida”, Hitler disse a elas, “Eu ofereço a vocês luta, perigo e morte”, e como resultado uma nação inteira arremessa-se a seus pés… Não devemos subestimar o seu apelo emocional”.
Não devemos subestimar o apelo emocional do expurgo, parafraseando.
Esse é o grande problema a enfrentar nessa onda conservadora e protofascista que atravessa todo o espectro político e social, pelo menos por essas terras.
DO TÍTULO ou PLAY IT AGAIN, MANOLO…
Distopias catárticas talvez fosse melhor, por coerência idiomática. Outra sugestão: purgantopia, incoerente e patafísica. EREWHON!AXÉ!
impossível não pensar em Zizek ao se fazer análise de filmes em chave ideológica.
Concordo com o Leo: o expurgo parece ser um convite à satisfação de desejos. No capitalismo de consumidores, quem manda é o imperativo “goze!”, a ultra-permissividade visa nos inibir completamente de culpa, a impulsividade é sinônimo de individualidade. Seria o medo à essa permissividade sem limites uma face conservadora, que acusa a falta de limites do capitalismo atual?
Mas fico pensando: a imediates da punição e o reforçamento do Estado, não seriam polos opostos? Ao menos do Estado em sua forma moderna.
Já que estamos falando em cultura popular, me vem à mente a série “Game of Thrones”, que consegue curiosamente colocar em pauta temas absolutamente contemporâneos num mundo fantástico (migração populacional, instabilidades geo-políticas, etc). O que vemos no roteiro da série é o desabamento de uma ordem mundial razoavelmente estabelecida e centralizada, o que leva à completa fragmentação política. O Estado monárquico dá espaço ao feudalismo mais básico. O Estado deixa de ser uma ordem vigente, um imaginário social estável, e regride para um contexto de vários pequenos Estados, já não pautados por uma ordem social mas sim pela dominação militar.
Costumo pensar nesse tipo de contexto quando leio ou ouço os argumentos dos que defendem práticas “pré-capitalistas”. Me parece que a imediates das punições tem a ver não com o reforçamento do Estado moderno, mas sim com o do Estado pre-capitalista, da simples imposição da força por mãos de quem se achar no dever, assim motivado pela fragmentação dos poderes vigentes. Pois desse Estado não se espera justiça, apenas controle pela força. Acredito que Hobbes fazia justamente a defesa de uma força estatal que estivesse acima disso, que englobasse também outros campos do imaginário social, como a religião, para impedir que o Estado fosse apenas um controle de força e para que ele se tornasse uma garantia de paz social por cima das diferenças entre súditos.
E é nesse sentido que parece estar o interessante dos exemplos trazidos no final do texto: a consciência da necessidade de uma mediação (traduzível como um imaginário social de justiça) feita pelos próprios sujeitos, sem o apelo ao Leviatã como garantia de paz.
Estarei afastado da internet nos próximos dias, então não se espantem se eu “largar” algumas coisas aqui e não responder de imediato.
Acho que Zizek acostumou mal seus leitores. Toda interpretação de filmes depois dele precisaria ser, necessariamente, psicanalítica ou psicologizante. É bloqueada qualquer outra leitura?
Digo isso porque tratei diretamente do papel político do medo ao puxar Hobbes para a roda e dizer, com base nele, que a guerra de todos contra todos vigente pela duração da exceção purgatória desencadeia em cada um o medo do outro, e por isso reforça o Estado enquanto árbitro da relação entre eles. Falar disso é falar do psicológico, é enraizá-lo na teoria política como um de seus aspectos fundantes.
Acho, de fato, que não podemos descartar o apelo emocional do expurgo, porque é exatamente aí, ou, melhor dizendo, no lado instintivo e irracional da psique humana (que não se restringe ao emocional), onde reside sua força. O aspecto catártico do expurgo era tão evidente, tão banal, tão lugar-comum, que foi muito conscientemente desprezado por mim. O desacorrentar de sadismos latentes é um dos objetivos do expurgo, tanto n’O Expurgo quanto em Battle Royale e naquele episódio de Star Trek, mas não se trata somente disto; não tratei desta catarse sádica no artigo porque me pareceu um aspecto tão secundário frente a outros fatores mais importantes e mais explícitos em todas as obras que não mereceu espaço algum. A questão importante não está aí, mas sim nos usos políticos da catarse sádica em cada obra, e como a narrativa de cada uma delas encontra apoio em nossa vida social.
Em suma: o problema não está em não reconhecer a manipulação política do lado irracional da psique humana. Está em saber para que lado vai a manipulação em cada momento, e como lidar com ela.
Por outro lado, parece haver contradição entre a imediatidade da punição e o reforçamento do Estado. Não é o caso.
Em primeiro lugar, é falso que esta imediatidade remeta à Idade Média europeia, assim como é falsa a imagem simplista, às vezes idílica, com que figuramos a vida em sociedade neste período histórico. A ausência de um Estado moderno e centralizado neste período não fez da punição algo imediato, algo da relação entre vítima e algoz. Pelo contrário, mesmo lá no medievo europeu a punição era prerrogativa de quem detivesse o bannum e o mundium, e via de regra era exercida mediante rituais de produção da verdade que variavam de lugar a lugar.
Em segundo lugar, é igualmente falso que esta imediatidade remeta a alguma prática pré-capitalista, onde quer que se queira situar este tempo-espaço anterior ao pecado original. Embora a noção específica de “crime” seja herdada do direito romano e reintroduzida, modificadamente, pelo direito canônico e pelos jurisconsultos também durante a Idade Média europeia, não há uma só sociedade humana que não conceba uma cosmovisão com determinada “ordem”, com determinado “sentido”, e que não haja instituído rituais de restauração à “ordem” sempre que ela seja violada. Estes rituais, via de regra, passam por alguma forma de mediação.
A contradição apontada só se torna real se se desconsidera que os defensores da punição imediata dificilmente passariam do desejo à ação fora de um contexto multitudinário. Esta contradição é trabalhada em vários filmes de guerra; o exemplo que me vem à cabeça agora é do melhor de todos os “filmes B” do gênero, The Big Red One, a obra-prima memorialista de Samuel L. Fuller. Lá para as 2h18min do filme (na versão restaurada), o esquadrão dirigido pelo sargento Possum (Lee Marvin), penetrando em território alemão numa das ofensivas finais da 2ª Guerra Mundial, tem seu avanço travado por um franco-atirador nazista escondido nas ruínas de um castelo sobranceiras a uma colina; o inimigo anunciou-se ao matar um soldado estadunidense que cruzava um riacho. Ao penetrar nas ruínas com seus quatro soldados mais veteranos, o sargento capturou o inimigo sem muita dificuldade: era uma esfarrapada criança da Hitlerjugend, no máximo dez, doze anos. Revoltados, os quatro incitam ao assassinato de uma criança que já havia sido desarmada. O sargento — que, enquanto comandante de tropa em guerra, tem praticamente direito de vida e de morte sobre seus subordinados, podendo até matá-los diretamente em algumas situações — pergunta: “Todos de acordo? Matamos o menino?” Todos concordam. “É todo seu, Zab”, e empurra o menino sobre um dos quatro soldados para que execute a sentença de morte. O soldado recua, perguntando: “Por que eu?”. O sargento, ainda segurando o menino pelo braço, empurra-o a outro soldado. Novo recuo. Empurrou-o a um terceiro, com o mesmo resultado. A um quarto, com o mesmo efeito. “Sem voluntários, não é?” Close no rosto de dois soldados. Corte. Cena seguinte: o menino está no colo do sargento, Eisernes Kreuz a balançar no pescoço, levando palmadas na bunda desnuda. “Heil Hitler! Heil Hitler!”, gritava o menino para mostrar força e bravura durante o espancamento. Não demorou muito a mudar de um grito de guerra para um grito de desespero, já aos prantos: “Papi! Papi! Papi!”.
A metáfora é evidente, e é com estas pequenas jóias que Samuel L. Fuller abrilhantou sua obra cinematográfica. Todos querem matar o criminoso, todos querem retorsão, todos querem punição, todos querem… que outra pessoa o faça. Não por acaso, na cena acima, coube ao sargento não apenas dar uma surra no menino, mas questionar o desejo assassino de cada soldado.
Saindo do campo metafórico, poucos ousam ultrapassar a linha que separa desejo e ação. E o desejo, assim reprimido, reforça o poder de quem cada indivíduo desejante legitima a punir. Que haja punição, que ela seja rápida — mas que quem puna seja alguém a quem se legitima o poder de punir, não eu. Sabemos a quem isso reforça.
A contradição é, assim, aparente. Se não tratei disso mais extensamente, foi porque a resposta a este desejo de punição imediata por parte de quem pede “calma”, “moderação”, “racionalidade” etc., costuma ser pautada pelos direitos humanos, pelo combate à violência policial, pela desmilitarização da polícia, pela efetivação do arcabouço institucional criado pela Lei Maria da Penha, pela humanização das instituições psiquiátricas… Tudo isso é importante, é inegavalmente importante, mas sabemos quem sai reforçado com estas reivindicações. Como estes pedidos de moderação costumam vir de quem está mais próximo de nós, e tem como projeto político a luta anticapitalista e a construção de uma sociedade igualitária e solidária, optei por focar nisso. Mas, a meu ver, um e outro reforçam o Estado. É só quando se passa do desejo de punição imediata à prática que a coisa muda de figura.
RACKETS & BANALIZAÇÕES
Falsa questão: há vida após a morte?
Questão veraz: há vida antes da morte?
Agenciamento crítico-prático: resistir à subsunção da vida pela sobrevivência [família patriarcal, trabalho assalariado, rotina (d)e barbárie].
Muito bom, Manolo! – e bastante oportuno!
“Em todos os casos onde o expurgo se manifesta enquanto tendência, é o Estado quem sai reforçado”.
Me pergunto, porém, sem que isto configure uma crítica ao texto: não se trata também de expurgo a solução apresentada em “Os despossuídos”?
Como você escreveu, os nuchnibi são os socialmente banidos da sociedade anárquica de Anarres por se recusarem a cooperar com o trabalho coletivo. São sistematicamente detonados, humilhados, preteridos, até que se retirem para outra cidade, onde haverá de acontecer a mesma coisa. Ali ninguém é enviado para a Sibéria ou para as cubanas Unidades Militares de Apoio à Produção – que, como no Brasil militarista, serviam entre outras coisas para alimentar expectativas de “produzir homens de verdade”.
Se há concordância que a detonação e o banimento libertário em Anarres também são formas de expurgo, não é o caso de admitir que existe ali algo como um Estado, na forma de um pacto que obriga todos a trabalharem (e que, por tabela, leva à exclusão dos que não trabalham)???
Esse texto sobre a utopia do expurgo é bem interessante. E realmente parece ser a utopia aceita cada vez mais aceita como natural e normal, infelizmente. Acho que essa utopia aceita pela maioria da população (que se identifica como o nome vazio “classe média”) é baseada na naturalização da escassez (eternização da propriedade privada): “não há o suficiente para todos”, portanto “é preciso sujeitar as pessoas à comparação, já que é preciso avaliar quem merece e quem não merece”. Segundo essa utopia, deve haver uma escala de mais merecedores e menos merecedores distribuídos numa hierarquia de cargos e recompensas (classe média, infinitamente subdivisível, de baixa baixa baixa, até alta alta alta… na qual tudo mundo é classe média em relação a alguém, mesmo o mais miserável dos miseráveis) numa ordem garantida por uma força policial elevada a um status divino, livre para matar à vontade os que “se desviam”. Geralmente isso é chamado de meritocracia. Essa utopia reacionária difere apenas levemente do fascismo. O fascista apenas vai mais adiante e diz simplesmente: “quem não merece deve morrer” (obviamente consideram que só “eles mesmos” merecem, e o “merecimento” pode ser dado por qualquer característica aleatória que eles já possuam, cultura, etnia, raça, território, religião, gênero, mestiçagem…).
Aproveito para compartilhar uma reflexão que acho que tem muito a ver com esse artigo:
AUTONOMIA, ESPIRAL DE VIOLÊNCIAS E APELO À FORÇA (I.E, À CLASSE DOMINANTE)
http://humanaesfera.blogspot.com.br/2015/06/autonomia-conflitos-e-apelo-classe.html
IMANENTISMO TRANSCENDENTAL
O comentário de humanaesfera situa a questão das distopias catárticas ou purgantopias na esfera humana – demasiado humana? – da economia política. Ou melhor, na perspectiva de sua crítica (teórica e prática), incluída a denúncia do fenômeno RACKETS e sua cotidiana banalização…
KAIRONOMIA zer0WORK(ER)
Se: A eminência é parda, a imanência é negra e a iminência é rubra.
Então: Sigamos anônimos, imprevisíveis, ocasionais e rubro-negros.
O texto é muito bom! Gosto muito das análises de Manolo. Concordo com sua crítica a Zizek.