O livro sagrado aliado a um senso de bondade criou no espírito de Teotônio um sólido desejo de produzir o bem da humanidade, enxergando nisso a conclusão de seu destino, que é o alcance universal de suas Ideias. Por testemunha ocular Douglas Rodrigues Barros
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Circunstâncias esquisitas haviam convertido Teotônio no próprio filho de Deus. A presença da família no hospital em nada modificou sua compulsão, a grandeza já muito semeada em seu peito de homem simples e modesto. A alma de Teotônio era notável, sobretudo pelo hábito de ler o livro sagrado e tê-lo decorado linha a linha. Sendo a leitura coisa rara nos homens de hoje, o espírito de Teotônio, embora modesto, passou a comportar diversas qualidades inusitadas, tais como: a firmeza de caráter e a finalidade de uma ideia seguida pela lei do coração. Isso o elevou acima dos cooperadores e obreiros dessas igrejinhas nos confins da Zona Leste.
Não faltava fôlego e Ideias a Teotônio, coisas estas que contribuíram razoavelmente para o estado deplorável de loucura em que agora se encontrava. O livro sagrado aliado a um senso de bondade criou no espírito de Teotônio um sólido desejo de produzir o bem da humanidade. Por isso, a diferença entre os homens comuns e nosso herói consiste em que, ao alcançar o desejo do bem, ele não o abandona e nem se vê contrariado. Pelo contrário, enxerga nisso a conclusão de seu destino, que é o alcance universal de suas Ideias. Tudo bem! Não me torça o nariz daí! Já passo a narrar os fatos que sucederam depois daquele dia maluco. Junho de 2013 realmente produziu muitas peripécias.
Foi com aqueles sinais de loucura varrida que, de mãos dadas com Alexandra, Teotônio descia a rua rumo a seu destino.
– Antes de tudo tenho que me ausentar! – Disse olhando para sua seguidora.
– Ué! Como assim? – Perguntou Alexandra.
– Preciso ir ao deserto! – Retrucou.
– Mas não há deserto por aqui! – Respondeu Alexandra com tranquilidade.
– Há, sim! Meu pai ordena que devo me preparar e sei que haverá um deserto onde ficarei por quarenta dias! – Disse à maluca que naquele momento cantava algo de Verdi – Só assim poderei seguir firme no propósito que desde o início dos séculos está preparado!
– Se você diz que existe deserto por aqui, não duvido! – Falou Alexandra e continuou – Mas deixe-me ir com o senhor!
– Sei não! – Redarguiu nosso herói.
– Qual o problema? Fico quietinha, se o Senhor vai orar… Oro junto, se vai cantar… Canto junto! Se for se encontrar com algum anjo, ficarei afastada! Deus não vai ver problema nisso, vira e mexe ele passa um pano pra gente!
– Sei não! – Falou Teotônio com ar desconfiado e colocando as mãos sobre o queixo, continuou: – Um momento! – Fechou os olhos. De repente, num assaz louco, abriu e exclamou – Tu irás comigo! Partiremos agora em direção ao Sul! Falei com o Velho e ele me disse que não tem problema!
– Eu já sabia, sou assim com Deus, óh! – Fez Alexandra com os dedos e indagou: – Fazer o que no Sul? Não há deserto por lá! Capão Redondo é um coração ferido por metro quadrado!
– Não é na Zona Sul, não! É no Sul! Nele vi terras infinitas e desertas, meu Pai me mostrou!
– Tudo bem! Seguirei você para onde for e se diz… Que existe deserto no sul, que se lasque! Vou contigo, como iremos? – Perguntou Alexandra coçando a cabeça.
– Ai! Mulher de pouca fé! Iremos com nossas pernas!
– Hehe! É um pouco longe, viu! – Retrucou Alexandra.
– Iremos guiados por meu Pai, seus anjos se acamparão ao nosso redor, fique em paz, tudo dará certo!
– Nossa, que lindo, os anjos, o Pai que tudo pode… A vontade como lei! – Alexandra encerrou e se puseram em marcha na tentativa de ir para o Sul.
Aconteceu, porém, que Teotônio estava no hospital Santa Isabel e, quando fugiu com Alexandra, retornou para a área central de São Paulo. Os dois não sabiam bem qual direção tomar. Assim, com três voltas dadas entre a Rua Direita e a Quinze de novembro, aquele labirinto místico, cansaram-se e resolveram perguntar.
– Moço, como fazemos para chegar no Sul? – Perguntou Alexandra a um rapaz que subia apressadamente a Quinze de Novembro.
O rapaz olhou-a com receio, segurou firmemente a pasta que carregava e seguiu sem nada dizer.
– Ih! Ai! Ai! Ai!… Acho que ele não entendeu minha pergunta! – Disse olhando para Teotônio – Vamos tentar naquela banca… Moço, como faço para chegar no Sul? – O senhor da banca olhou para os dois maltrapilhos e disse-lhes:
– Como assim? Na Zona Sul ou no Sul? – E dando risada concluiu – Ambos estão bem distantes! – E então Teotônio interferiu dizendo:
– No Sul, no Sul, não Zona Sul!
– Que é isso? Você está maluco? Vá para o diabo!
Com essa resposta os olhos de Teotônio lançaram uma luz fraternal, um não sei quê de simplicidade que o homem da banca se envergonhou. Envergonhou-se, talvez, pelo dever da ajuda que cabe a toda bela alma cristã; talvez, porque os dois malucos poderiam ser desses que vêm para São Paulo com intuito de ganhar a vida e a perdem nas drogas do álcool ou nas drogas do trabalho. Teotônio apenas olhou melancolicamente e isso bastou para reacender o fogo de humanidade no homem que disse:
– Vá bem! Me desculpa viu! Mas não conseguirão ir para o Sul daqui, a menos que tenha dinheiro ou arrume alguma carona…. Faça o seguinte: vá até o Tietê e de lá pegue o ônibus, só assim será possível voltar à sua terra!
– Não tenho terra! – Redarguiu Teotônio.
– Coitado, por isso que ir embora, né? – Indagou o homem da banca.
– Ele não quer ir embora, estúpido! Está falando com o filho de Deus, a terra dele é no céu! – Retrucou Alexandra com rispidez.
– Vocês são loucos, isso sim! Afê Maria! – Terminou o homem e com ar atarefado foi atender um moço que se aproximava para comprar revista.
Nossos dois amigos ficaram parados na Quinze de Novembro e não é inútil narrar aqui algo sobre essa rua melancólica de São Paulo que ganhou esse nome com a proclamação da República. Durante a primeira década do século passado ela desempenhou na vida paulista papel preponderante. No lugar da feiura, das ruas lotadas de homens de trabalho, havia uma calma vida já em declínio, um sem número de vasos com flores ornava todas as pequenas galerias e vendas, botequins de telhado colonial e o péssimo gosto neoclássico arrematava sua arquitetura miscigenada. As boutiques estampavam a última moda parisiense e na esquina havia a saudosa livraria Garnier com sede no Rio de Janeiro. Todas as lojas tinham uma iluminação própria, mas, no mesmo tom ocre, eram protegidas somente por pequenas grades que indicava onde acabava a propriedade. Tudo no ramo da moda era apresentado aos barões do café; as senhoras destes buscavam sempre ornarem-se com absoluta sofisticação burguesa, não raramente os artigos que adquiriam valiam todo o trabalho da vida de um operário. Com uma história dessas o resultado não poderia ser outro: atualmente, tanto no início dessa rua como no seu entorno, o que é representado é toda a imundície que a sociedade paulistana produziu ao longo de sua existência e, pela frivolidade dela, a Bolsa de Valores não poderia se situar em lugar mais adequado.
Nossos heróis encontravam-se frente à Bovespa e decidiram, enfim, caminhar até a estação Tietê. O estranho amontoado de sujeiras, as paredes cinzentas pela poluição, as barracas cobertas por lonas, as sinistras construções em declínio no Centro de São Paulo e o conjunto de ornatos terríveis contrastavam bem como o espírito mártir dos nossos heróis. Foi quando Teotônio, por um motivo qualquer, meteu as mãos nos bolsos e sentiu algo. Era um papel poroso. Um milagre: era uma nota de dez reais. Alexandra exultou de alegria porque isso lhe indicava que não mais seria necessário caminhar até o Tietê.
Os heróis retornaram à Sé. Já eram quase seis da tarde e naquela altura todo o povo afluía para a estação do metrô. Na estação os olhares tristonhos se multiplicavam. O alto-falante exibia uma voz metálica e monótona indicando como as pessoas deviam se comportar para que o fluxo permanecesse normalizado. Trabalhadoras sarcásticas exibiam um rosto atrevido para garantir seu espaço em meio à multidão que tinha como único objetivo entrar no metrô. Por um lado, Teotônio ouvia e via toda aquela bagunça com ar estoico, por outro, Alexandra ficava cada vez mais enfurecida ao esbarrar num e noutro “usuário”.
Seguiram em silêncio contemplando todas as almas estáticas mandando recados pelos celulares. O espírito de Teotônio encontrava-se fechado em si mesmo demonstrando energia e resistência. Durante as primeiras estações Alexandra suportou bem, mas pouco depois estava como que tomada por um ataque de histeria. Dizia para todos no vagão ouvirem: “Mas que diabo de metrô é esse!?”. Todo santo segundo pessoas lotavam ainda mais a composição, tratando de aumentar a loucura da discípula de Teotônio. Até que uma senhora esbarrou na nossa heroína e ela soltou um sonoro:
– Ah! Puta que pariu!
– Puta que pariu você! – Redarguiu a senhora. Uma outra moça interferiu:
– Respeita a senhora, sua vagabunda! – Dizia isso com aquele ar de satisfação, de poder descarregar suas frustrações naquele instante. Alexandra, entretanto, não se dignou a retrucar. Com o olhar de Teotônio resolveu perdoar. Isso de certa forma ajudou a aumentar a raiva da moça, que dirigiu mais impropérios a Alexandra. Mesmo com isso, ela simplesmente ignorou a moça raivosa. Antecipo que nada havia de fanático na postura de Alexandra. O que havia aí era um amplo amor pelo humano.
Deixemos essas miudezas, passemos por alto os acontecimentos que decorreram até a chegada de Teotônio e sua discípula na rodoviária do Tietê, e vamos encontrá-los já na plataforma de número setenta e sete.
A paixão decidida de Teotônio pelo sacrifício não o deixou esmorecer nem na Sé às seis da tarde. Se este sacrifício lhe era oferecido pelas várias negações e empecilhos para seguir seu caminho, mais e mais se adensava em seu peito aquela flama viva do heroísmo e da completa negação de si. Teotônio perdoava a todas as caras carrancudas e os nãos que recebia. Porém, naquele momento, seu lado humano começava a pesar; o estômago começava a maltratar pela fome. Se o maltrato pela fome era indiferente a Teotônio, o mesmo não podia ser dito a respeito de Alexandra.
Afinal de contas Alexandra tão logo ensandeceu e foi parar nas ruas, aprendeu rapidamente como se arranjar e livrar-se dos incômodos. Havia já alguns anos que nossa animada cantora lírica morava nas ruas e estas lhe ensinaram que a riqueza sempre lhe esteve ao alcance das mãos. Com o incômodo do estômago crescendo, nossa fiel tomou uma resolução firme. Como uma felina, afastou-se de seu mestre e ficou a espreitar as pessoas que subiam e desciam as escadas rolantes e andavam pelos largos corredores da rodoviária do Tietê. Avistou, assim, um homem de meia idade, gordo e de aspecto atarefado, levava algumas bolsas e mochilas nas costas e mãos.
Nossa heroína observava todos os detalhes: a calça social puída, o sapato um tanto gasto, o celular de última geração e um certo desleixo conferia àquele homem uma vítima em potencial. A louca começou a trabalhar conscienciosamente num plano que evitasse ao máximo chamar a atenção dos guardas. Ao seguir o homem – e deixar seu mestre imerso em pensamentos – aconteceu-lhe por duas ou três vezes ficar frente a frente com algum guarda da rodoviária. Até que finalmente teve uma brecha. O homem seguia pelo corredor com o celular nos ouvidos, escondeu-se Alexandra, então, atrás de uma enorme coluna e o aguardou. O número de transeuntes com malas e outras bugigangas era enorme, as vozes escandalosas e barulhentas. Uma ação teria o efeito de um choque, um choque traz surpresa e a surpresa imobiliza. Foi assim que ao se aproximar da coluna, nossa cantora passou uma rasteira no homem e, antes mesmo que ele caísse, tomou-lhe o celular. Na ousadia deu-lhe ainda uma bofetada no chão e tomou a bolsa. Não teve dúvidas: correu livremente pela rodoviária entre olhos de horror, menosprezo e temeridade. Tornou-se o que sempre foi: a rainha de todas as atenções. O palco, entretanto, era agora sua própria vida, o ato, sua própria ação, e o drama estava inscrito em sua carne. E assim a heroína escapou da rodoviária alcançando brevemente a rua.
Não demorou muito e se ouviu uma voz que dizia na rodoviária próximo a plataforma setenta e sete:
– Foi ele, tenho certeza. Ele estava com aquela vagabunda! – Disse o homem acompanhado por policiais. E a injúria que soltou para o filho do Homem era tão grande que o engasgou… E passou a suar por toda a testa. Teotônio olhou com brandura e pôs-se a falar mansamente:
– Irmãos, o que sucedeu?
– Cale a boca, vagabundo, já sabemos que estava com a trombadinha e é melhor se explicar antes que a gente comece a te interrogar!
– Não sei do que falam e a única explicação que dou é que ontem mesmo me deparei com o diabo, era da estatura de um juiz, da largura de um banqueiro e vestia-se de padre!
Isto exasperou os policiais. A lembrança de suas vidas regadas ao desprazer de cães de guardas aumentou-lhes o ódio tão facilmente explorado. Assim, o peso da instituição e da farda transbordaram em socos em Teotônio que caiu já sendo imobilizado, algemado e prontamente guiado para uma salinha da grandiosa rodoviária. Sob os olhos cúmplices de inumeráveis pessoas que riram do ótimo trabalho dos policiais, Teotônio seguiu arrastado sem nada dizer. O homem que fora roubado assistira toda a cena com imperturbável sangue-frio: enquanto o filho do Homem apanhava e os policiais lhe diziam despautérios, aquele se ocupava unicamente em ligar do telefone da sala para tratar de assuntos do trabalho e dar a má nova a uns tantos familiares.
Porém, como a tragédia nunca é pouca, o que começou com socos, dentro da salinha, terminaria com chutes, cacetadas e um dente quebrado. Teotônio pagou caro e com juros toda a conta do furto de sua discípula. Na salinha resistiu tal como o cordeiro, motivo que fez os policiais cansarem-se de tanto lhe bater. Quando o ódio cansou de dar socos, os policiais foram surpreendidos pela chegada de mais um trombadinha. Este vendia ilegalmente balas na rodoviária. Enfureceram-se de novo; viu-se então uma nova carga de socos que anunciava ao rapaz as suas boas-vindas.
– Filho de uma puta, todo dia aqui… Não sabe que é proibido? – E nova carga foi efetivada.
O rapaz, diferente de Teotônio, berrava, abria a boca e as lágrimas rolavam de raiva pela impotência; mal caía, erguiam-no com socos e o moíam de pancadas. Teotônio apenas olhava com tristeza, quando um dos policiais disse ao homem roubado que acabava de desligar o telefone:
– Vai prestar queixa desse bosta? – Fez apontando para Teotônio.
– É inútil, esse safado nada dirá e vou perder meu tempo! – Redarguiu o homem, ao que Teotônio nada retrucou, apenas lançou um olhar fraterno por sob olhos inchados. Os policiais por sua vez se entreolharam e tomaram uma resolução.
– Vamos levar esses dois para um passeio! – E, assim, saíram da salinha arrastando tanto Teotônio quanto o rapaz que chorava em desespero e abundantemente.
Ora, por esta atitude sabe-se que tramavam alguma coisa; e saiba o leitor que é exatamente o que está pensando. Ninguém sequer se comoveu com o choro daqueles que todos tinham por malditos ladrões. Foram arrastados para fora da rodoviária e, talvez, esta história aqui teria acabado, não fosse o milagre que se operou naquele dia. Os policiais com olhares raivosos dirigiram os dois moribundos para a viatura e, ao abrir a porta traseira do famoso chiqueirinho, foram surpreendidos por uma chamada no rádio que informava ocorrer um assalto em uma agência bancária na rodoviária.
– Mas que merda de dia agitado! – Disse um.
– Teremos que deixar esses dois! – Disse outro e, se inclinando para Teotônio, encerrou: – Safaram-se, hein! – Retirando as algemas e deixando-os livres com um chute – Se eu pegar vocês por aqui de novo, acabo de fazer o serviço, seus merdas!
Teotônio, vendo-se livre pelo auxílio dos céus recobrou o ânimo, enquanto outro policial emendou jocosamente:
– Não se esqueça! A polícia está aqui para servir e proteger!
Onde andava Alexandra? O que fez com as coisas furtadas? E os dois vagabundos agora livres o que fariam? Deixe-me tomar mais um dedinho de café e fumar um cigarro que depois eu conto o resto sem querer convencer ninguém sobre a verdade dessa história. Porque como diz o alemão suicida: convencer é inútil! Eita povinho carente de explicações!
Douglas Rodrigues Barros
Na nascente poluída do Tietê, final da Leste.
25 de junho de 2013
Essa é, talvez, a primeira grande obra literária sobre os estados de espírito no Brasil, no contexto do Junho de 2013. Aguardando ansiosamente pelos próximos capítulos.
Aguardando ansiosamente pelos próximos capítulos!