Em franco desespero depois da tragédia, Alexandra não comeu mais e passou a conversar consigo mesma mostrando irritação e pouca inclinação a ouvir ou ver quem estava ao redor. Por testemunha ocular Douglas Rodrigues Barros

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O vale da sombra da morte

O hipotético leitor deve estar aflito para saber mais sobre a sorte de Teotônio. A bala ficou alojada bem abaixo do peito e na extrema esquerda do abdômen, motivo esse que causou uma hemorragia interna explodindo o baço de nosso messias. Alguma demora no atendimento e nosso amigo teria que voltar do mundo dos mortos, mas, não foi preciso. A operação abriu de cima abaixo a barriga de Téo e a remoção do projétil foi feita com tal sucesso que uma semana depois ele já estava de volta ao acampamento visitando um dos barracões inaugurado que lhe prestava homenagem. Barracão Teotônio Cristo.

Nesse ínterim, no entanto, há algo interessante a se contar. Algo que eu vi e ouvi com certa preocupação e temendo muito pela saúde mental de nossa protagonista. Em franco desespero depois da tragédia, Alexandra não comeu mais e passou a conversar consigo mesma mostrando irritação e pouca inclinação a ouvir ou ver quem estava ao redor. Os três dias de surto dessa bela alma geraram o que seguirá adiante.

Confissões de uma bela alma.

– Vocês não gostam de mudanças, dizem que gostam! Eu também disse que gostava de Amanda, mas, entre dizer e ser, existe um poço de diferenças. É muito fácil falar de mudanças e permanecer fazendo o que sempre faz, o que sempre fez e o que sempre fará! Mãe, é com a senhora mesmo que estou falando!

– Mas, o que foi, filha? Sempre te dei tudo!

Não sou especialista mas acredito que em tais momentos de surto absoluto é plenamente indispensável tentar dar explicações sobre a doença que acometia Alexandra. Naquele momento de explosão lancinante é fácil ventilar a hipótese de que o quadro de nossa heroína foi perturbado e agravado por todos os acontecimentos no assentamento. Todos sabiam que não andava bem, mas ela tinha grande resistência a qualquer ajuda que não fosse dirigida a Teotônio. Aliás, muitos já haviam se dado conta do estado mental em que se encontrava. Depois de auscultá-la, um dos psicólogos, amigos do assentamento, concluiu que ela estaria com transtorno bipolar e não ficou nada surpreso com as diversas confissões de Alexandra, apesar de sua franca naturalidade e crença na normalidade de sua própria situação. “As bestas são vocês!” – Dizia Alexandra quando terminava a sessão.

Naturalmente todo esforço, no sentido de cuidados para com ela, era em vão, Alexandra não cumpria nenhum dos prudentes conselhos do psicólogo e negava-se sempre a ficar de repouso. Pois bem, agora ela estava em pé olhando para o fim do dia, havia algo de estranho em seus olhos, como se mesmo o chão pudesse se desfazer a qualquer instante e estivesse prestes a tragar seu corpo para baixo. Fixou o olhar num pequeno pé de pau a sua frente e, de repente, viu aproximar-se sua mãe. Sabe-se lá como ela surgiu dentre as folhas secas daquela árvore horripilante. O saiote de dormir, os cabelos ensebados, tudo era como usava a mãe na sua infância, caso se reparasse ver-se-ia a sujeira costumeira das roupas surradas. A fisionomia não era de nenhum modo afável, pelo contrário, era de imposição, ordem e império sobre uma alma. Parou frente a Alexandra e, de súbito, seu rosto numa expressão de preocupação se contorceu e disse:

– Escuta – Começou ela, dirigindo-se a Alexandra – Desculpa, só estou querendo te dar um conselho: detesto mudanças, mas, faça o que fizer não se case com um pé rapado, homem já é um fardo, homem duro é uma desgraça!

– Ah, sim! – Redarguiu Alexandra e seu rosto ficou subitamente infantil – Sim, mamãe… se bem que nem quero me casar, isso para mim é indiferente e sempre será – Murmurou nossa heroína – É isso mesmo que vem me angustiando, saber que não nasci para casar e que ninguém deveria querer uma coisa dessas para vida!

– Pois não diga isso – Disse a mãe de Alexandra com olhos coléricos – Que ideia é essa que surge numa cabecinha tão frágil? Além disso, ideias como essa não precisam encontrar terreno para se dispersar igual praga. Foi Madalena quem te ensinou isso? Vê por exemplo essas moças moderninhas… não gosto delas… imagina, elas supõem que podem ser úteis porque arrumam um empreguinho e fazem faculdade. “Isso, dizem elas, é uma prova de que não precisamos depender de ninguém!”. Não depender de ninguém só por causa de um empreguinho e uma faculdadezinha, ô gente! E, por último, se introduzem em empregos e tornam-se masculinas. Quero me filiar a esse partido, aí vou fazer oposição: “machista”, diria, He! He!

– Escuta – Disse Alexandra voltando as costas para as sombras daquele fantasma – Sei que estou delirando… é claro que sim… pode dar seus podres conselhos, sua vaca, são indiferentes! Não me fará perder a calma nem a liberdade que conquistei… às vezes tudo se mostra vão, assim como sua aparição, sempre vou saber do quanto trivial e sem sentido era a vida que queria escolher para mim. Agora, sou livre talvez porque sou louca… de fato… mas, prefiro assim, assim mesmo!

– Ainda bem que reconhece que estou aqui contigo, eu faço parte de você – Bradou a mulher com certa calma.

– Idiota – Alexandra deu uma estrondosa risada – Por acaso fazer parte de mim é teu único sentido, sei que sempre me invejou como filha! Agora estou alegre, só não me venha com seus conselhos tirados da “experiência”, por favor, se fizer isso pode ir embora, não preciso. Conta fofoca das tias, das primas, diga em que elas erraram… vai! Fala mal da vida alheia! Eu venci você e seu mundinho de dona de casa!

– Fofoca… sim! Essa é justamente o melhor a se fazer na vida! Aliás, eu te escuto e fico surpresa, já começa pouco a pouco entender qual a tua função social nesse mundo!

– Nem por um momento eu entendo esse joguete social imbecil! – Gritou Alexandra furiosa – É uma mentira, uma doença, uma fantasia que move milhões de pessoas. Só não sei como acabar com tudo isso, e vejo que o sofrimento acaba se tornando a condição daquelas que saem dessa fantasia. É uma alucinação. É a encarnação do mediano… das coisas mais tolas. Até acho curioso como os normais concebem essa ilusão como norma!

– Com licença, com licença, vai se surpreender quando descobrir que mesmo na sua loucura colabora para que tudo permaneça tal como está!

– Sim, é uma fraqueza, mas acreditar que tudo irá permanecer tal como está é ter mais fé que um monge… talvez eu nem faça muito, sou uma poeirinha… mas acredito que ainda fiz mais que você que apanhava calada e nada fazia contra o meu pai!

– Minha amiga, apesar de tudo, eu te criei e gostaria de ser tratada como tua mãe – Começou a mulher numa demonstração de falsa bondade – Sofri para te criar, apanhei muito em silêncio, mas te criei e, não fosse meus cuidados, jamais teria subido nos palcos. Juro que não consigo imaginar como algum dia eu possa ter sido uma moça bela. Se fui alguma vez, isso faz tanto tempo que mesmo a menor esperança de uma vida feliz se evaporou. Te amo sinceramente – mesmo sendo alvo predileto de seu ódio! Quando apareço aí em sua cabeça, sinto que minha vida tem algo de verdade. É que eu mesma, assim como você, sofro com a ilusão, com a alucinação, e é por isso que gosto muito de sua loucura, de ter escapado do destino de milhares. Aqui eu posso sonhar! E gosto muito disso! Meu sonho é poder voltar da morte e acreditar em tudo que uma mulher acredita. Meu ideal é o de aceitar toda mentira que te contei e de ver em meus conselhos uma verdade, juro! Então seria o fim dos nossos sofrimentos!

– Idiota – Interrompeu Alexandra – Para que serve essas mentiras? Não quero que as mentiras se tornem verdades, mas que as verdades da mentira apareçam e todas possam a reconhecer sem o peso que a família impõe! Aliás, se estou louca hoje, a culpa é muito mais sua que minha!

– Você é muito teimosa! Bate sempre na mesma tecla! – Redarguiu a mãe de Alexandra – Serei honesta então! Escuta filha: na realidade da vida, quando há desarranjos ou alguma coisa assim, às vezes vemos coisas tão sublimes surgirem, uma nova realidade tão estranha, acontecimentos singulares amarrados por tal intriga, com tantos detalhes belos e, no entanto, quem tem essas mudanças abruptas no cotidiano por vezes nada são, são na maioria das vezes pessoas comuns, mulheres comuns que vivem esperando encontrar algo além do que essa vida pode oferecer. Mulheres que querem ser protagonistas, não desse mundo, como está muito na moda hoje em dia, mas de um mundo totalmente diferente…

– Mentira! Tudo que está dizendo vai contra você mesma, está dizendo isso só para que eu me torne sua amiga!

– Estou contente porque é tão fácil mentir e entrar na turma! – Observou a mãe de Alexandra – Basta mudar uma letra, criar um neologismo para falar da mesma coisa! He! He! Mas, não estou simplesmente mentindo, é uma meia verdade; infelizmente uma meia verdade só pode ser captada pelos loucos. Vejo que mesmo me odiando ainda espera algo grandioso de sua mamacita! Só dou o que posso dar minha filha!

– Não me importo! E melhor seria se fosse embora! Me deixa! Já está me chateando – Gemeu com ar doentio Alexandra – Com você por perto tudo é insuportável e angustiante! A questão vai muito além disso, e você morre de inveja porque não pôde dar rumo a sua vida sem a interferência da família, ao contrário de mim! Sou livre mamãe, livre para fazer o que quiser!

– Acredita mesmo que é livre num mundo como este? – Perguntou sorrateira o fantasma da mãe.

– Ora, se não sou inteiramente livre ainda, estou no caminho da liberdade porque me posicionei e criei meu espaço! A questão é que todas nós sofremos, somos todas umas desgraçadas… sou uma Adelina Patti deserdada, sou uma Maria Callas solitária e não quero viver muitos anos como uma Emma Calvé! Mas, me deixe dizer mais, desgraçada! – Dizia para si mesmo Alexandra – Não sou nem quero ser bela, não sou nem quero estar de acordo… Quero a arte mesmo, nada metafísica, prefiro Carmen à Isolda… não! Nada de nada! Canto! Já cantei, cantarei de novo, não me interessa, sou uma protagonista, mas, não de seus palcos e não há quem nasceu para me convencer a ser protagonista desse mundo miserável, subo aos palcos e esse mundo começa a ruir, vamos subam também, desgraçadas! Não há diferença entre o sangue que corre nas minhas veias e o que faço com ele para dar-lhe vida… beleza não de uma perfeição ideal, mas da terra, daqui mesmo – Alexandra escarra – escarro, cuspo, amo, amo sim, idiota, mas odeio também! Cala a boca, Alexandra! Cala a boca, Alexandra! Desgraçados! Cala a boca, Alexandra! O sofrimento é indiferente a todos e por isso tem que se expressar! Cale a boca, Alexandra! A morte! A morte! Fortuna! É possível sonhar… sonhar com o quê? Já sonho! Eu já sonho! Não tenho escolha a não ser viver nesse sonho, e quer saber? Não sou eu que delira por isso! Não eu, não eu! Tomo remédios, sim! Sim! Não preciso de sua pena – Alexandra para e reflete – Não, não! Não quero, nem nunca quis ser diferente do que sou, ser homem não é para mim, não! Mas quero acabar logo com tudo! Mas, como que acabo? Matando todos! Todos! – ri alto Alexandra – Deixe todas que eu quero todas, ave Maria, Alexandra endoidou! Teotônio vai me perdoar? Que se lasque! Não, não, Alexandra não diz isso! Para gente, para com isso! É possível! A dor não é ter que viver na lama, é ter a lama como única possibilidade! Disparate… vamos brincar, brincar de montar frases: o mistério consiste em não ter mistério, como amar? Amar como? Sinto muita coisa, mas é a coisa que sente muito mesmo! Tudo é em vão menos, o que é vão! Escorrego no vão e nele descubro o quão vão é não prestar atenção nas coisas vãs! O que não serve para nada é o que mais serve para mim! Hi! Hi! Hi! Alexandra endoidou! Vá se foder! Xiiiiiu! O espetáculo vai ter início… ei psiu! Psiu, seu merda! – De repente, Alexandra começou a cantar:

Birds flying high you know how I feel
Sun in the sky you know how I feel
Breeze driftin’ on by you know how I feel
It’s a new dawn
It’s a new day
It’s a new life
For me
And I’m feeling good
Tã! tã-rã! Tã-rã! Tã-rã-tã-rã-rárárá! [1]

De repente, Alexandra parou a canção olhou para o horizonte que erguia um céu avermelhado de pôr do sol, o fantasma sumiu, tudo rodopiou e ela tombou desmaiada no chão.

Nota

[1] A música famosa é de Nina Simone, Feeling Good!

As imagens que ilustram o texto são de Mestre Adelino Ângelo.

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