Tudo aquilo era para provocar verdadeiro terror, como se a loucura na sua demência pretensiosa pudesse se tornar a rainha e governante dos destinos alheios. Mas, não; aquilo se chamava normalidade e reunidos sob essa rubrica estavam os homens de bem. Por testemunha ocular Douglas Rodrigues Barros
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Alexandra sobe aos céus[1]
“O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer: de modo que nada há novo debaixo do sol”. (Eclesiastes cap. 1, vers. 9)
Naturalmente, quem acompanhou essa novela até aqui já se deparou com episódios que de tão reais, por isso mesmo, tornaram-se fantásticos. Digo isso, porque, por mais que eu queira evitar contar os desfechos dessa triste história, tenho que prosseguir com a tarefa que me foi designada. E, muito embora, o desfecho não seja nada aprazível e totalmente real, nem por isso deixa de ser plenamente fantástico. Creio que os finalmente dessa poética, tão intransigente com o gosto da moda, deixarão aturdidos todos os que esperavam mais. Mas, não posso me furtar à verdade; a verdade sempre liberta!
Olhe lá hipotético leitor: nesse momento, ninguém sorria mais sarcasticamente do que o pastor Waldomiro Macedo. Ereto com o microfone nas mãos fazia caras e bocas infantis. Seguia de perto todos os murmúrios do povo na igreja, com a ajuda incansável do obreiro Luiz Rocha – o mesmo homem que, graças à insubordinação de Teotônio, quase lhe derrubara ao levá-lo ao púlpito – observava que a ira tomava conta das pessoas pela acusação feita por Alexandra. Graças, no entanto, ao feitiço de suas palavras lançadas ao vento, aquele povo não se revoltava pelo ladrão que era, e sim contra a acusação feita por nossa heroína. Quer dizer; aquele povo revoltava-se contra a verdade. O som emitido pela voz metálica do pastor, o simples som covarde daquela voz, rastejante, humilhante e sedutora, como se cada palavra revolvesse as almas simples, horripilava qualquer bom cristão. Houve com isso uma explosão de todo asco sentido por Alexandra que desviou suas vistas de Teotônio e pretextou um discurso, mas fora interrompida por um rompante de cólera direcionado por um dos membros daquele templo.
– Bruxa maldita! – Gritou o homem afoito.
– Vejam só é ela que está aqui – Disse um outro.
Alexandra certamente não entendeu o que acontecia. Atônita como estava, ousou levantar os olhos que queimavam vivamente todos os que por eles eram tocados, sentia o sopro de sua respiração, e um doce frêmito perpassou o seu íntimo. Teotônio não compreendia aquele ódio que subitamente surgiu. Ódio que surgiu subitamente, mas, cujas sementes foram lançadas nos corações por anos a fio de televisão ligada. Tudo aquilo era para provocar verdadeiro terror, como se a loucura na sua demência pretensiosa pudesse se tornar a rainha e governante dos destinos alheios. Mas, não; aquilo se chamava normalidade e reunidos sob essa rubrica estavam os homens de bem.
Por outro lado, a ocasião é que não era a melhor para o conflito ou qualquer argumentação, pois, de banco em banco se viu na tela do celular um retrato falado de uma suposta bruxa que aliciava menores. Conveniências do ensino televisivo fariam o caldo entornar ao se reconhecer em Alexandra a mesma bruxa do retrato. O problema das palavras abstratas, tal como; justiça, é que elas podem ser preenchidas com qualquer sentido vulgar. Por isso, a moça bonita da televisão que clamava, babando, por justiça teria o significado emitido de suas palavras na realização concreta de um linchamento. E aqui está o fantástico porque inacreditável; mirem os homens do futuro… Rirão constrangidos desse tipo de coisas.
A maldade daquela gente, que sucedia ao grito violento do pobre homem pintando com cores vivas o fosso moral que chegamos, tocou Teotônio tão profundamente quanto outrora ele fora tocado, no acampamento, pela presença da polícia e das armas. Desanimado com a perspectiva de uma luta imediata entre iguais, o experiente Teotônio desconfiava da realidade das desgraças que sucederiam naquele lugar. Sabia, como que por inspiração divina, que teria aí findado seus dias nas mãos do ódio crescente e do ressentimento que tomava corações e mentes. Os fariseus naquele templo o julgariam e ali se cumpriria seu destino atroz. Seu temperamento o levava a refletir sobre o motivo daqueles olhares serem tão torpes de maldade, tão desagradáveis e mesquinhos. Com espírito nada volúvel, próprio a um messias, percebeu na religião de Waldomiro Macedo uma arma contra tudo que é bom. Deslumbrado com as ofertas e sacrifícios daquele pastor, cuja mão permanecia agarrada ao microfone com displicência aparentemente graciosa, poderia ele saber que, no exército de interesseiros, todos precisavam descontar sua castração cotidiana, assim como os bichos fazem quando ficam presos? Vendo nele resolução, Waldomiro Macedo aliciava os demais a irem contra aqueles dois dissidentes do cristianismo oficial.
– Vamos mandar ela pro inferno! – Gritou um mais irado, enquanto outros três já seguravam Alexandra pelos braços. Foi quando as coisas saíram do controle mesmo para aquele infame pastor, para o homem esbaforido da televisão e para a moça raivosa do jornal. De tanto estar com Teotônio, no entanto, Alexandra adquiriu aquela presença inefável da própria espiritualidade, que soava tão distintamente em seus modos tranquilos e, a um só tempo, resolutos. Sua voz estava irretocavelmente afinada, como um instrumento precioso – cada simples palavra, cada entonação dava testemunho do timbre musical que ante a devoção e abnegação adquiriram cada vez mais beleza. Estava muito corada, mas não de um tom causado pelo sol, e sim daquela força e emoção peculiar a quem traz dentro de si um grande desejo de redenção e cujo corpo já identifica que a alma lhe quer escapar porque o corpo se tornou pequeno e corruptível demais.
Erguera-se quase imóvel, e apenas de vez em quando olhava, com uma calma incomum, para Teotônio que havia sido levado pelos obreiros aos fundos do templo de Salomão. Observava o teto com carinho e em sua mente passeavam recordações felizes – contemplava simplesmente, porque naquele templo cheio de ódio, o teto parecia ser o que havia de mais bonito, puro e verdadeiro, a única coisa que não parecia procurar intenções ou motivos para agradecer e glorificar a Deus.
Por toda parte uma confusão de vozes embriagadas, rancorosas e tristonhas. Em meio a tudo isso lá fora havia a lua, os carros e ônibus rasgando a Celso Garcia, e nas praças as árvores tinham se tornado murchas. Uma brisa cálida soprava livremente pelos ares empestados de poeiras e fumaças, e era fácil para Alexandra imaginar que sua vida se dissolvia em pequenas partículas que ela carregava na memória e que se perdiam na imensidão infinita de um templo cíclico, coeso e agressivo. Foi então que os ouvidos de Alexandra passaram a ouvir, com a primeira pancada que tomou de um dos fiéis, a música que sempre guiou seus passos. Uma estranha melodia, alheia a tudo de baixo e de vil, nascia e morria nas alturas, lenta e melancolicamente; enquanto aqueles monstros a espancavam e gritavam-lhe:
– Bruxa! Bruxa maldita!
A música renascia – iludindo seu ouvido, soltava notas tranquilas, interrompia-se e tornava a soar. Com gotas vermelhas a lhe escorrer pela testa, uma estranha felicidade lhe invadia a despeito da dor que sentia com os pontapés, um estranho sentimento de torpor caia de uma altura incalculável e batia em sua cabeça com vibrações audíveis.
Em meio a pancadas e escarros; através das janelas, através da espessura das paredes do templo, a música dos céus penetrava, remoendo a dor e removendo o desespero ante a morte. Às vezes Alexandra não a percebia durante alguns segundos; às vezes aguardava-a com ansiedade em meio a braços e pernas que se erguiam para lhe agredir. Só pessoas muito importantes foram dignas da morte que se desenhava pelo sangue que escorria de Alexandra. Se pode haver nobreza na crueldade, ela não é do cruel, e sim, é monopólio do vencidos ou daquela canção que soava distante na consciência de nossa heroína. Monopólio da Mulher que sucumbia a tirania ensinada pela televisão e pelas enfadonhas redes sociais. A música enviada pelos céus reconfortava a mãe, a avó, a filha e tudo o mais que Alexandra representava, o alento não podia vir senão da sua força interior. E nesse sentido solene, rompido apenas pelo grito de escárnio e cuspes de seus algozes, Alexandra, longe de qualquer coisa viva, esperava a chegada ao Reino, estava preparada a seu modo para ver a ruas de ouro e receber seu galardão. Teotônio que também era espancado no fundo do templo lhe gritou:
– Hoje mesmo estarás comigo na Glória!
Alexandra, entretanto, tentava justificar-se por sofrer a mesma honrosa e bela morte que heróis e mártires sofreram antes dela, sendo tão – como se sentia – insignificante, feito tão pouco ao lado de seu mestre, não se sentia digna. Diante da crueldade com que lhe batiam, os sentimentos entravam em confusão. Fechou os olhos e pensou que poderia agora estar simplesmente numa das peças que já interpretou, peças nas quais tinha enfrentado centenas de vilões e agora chegaria ao ato final. Lembrou-se:
Pour pays l’univers, pour loi ta volonté
Et surtout, la chose enivrante:
La liberté!
La liberté!
Parecia-lhe que todo o ar tinha de repente acabado, tão difícil se tornou respirá-lo. O coração crescia, precipitando-se contra o peito que parecia querer explodir, pulsava a garganta que já se recobria de sangue, galopava na goela, pulsando alucinadamente – queria gritar de horror com a voz cheia de sangue, mas preferiu uma morte digna. Os olhos desceram para o solo que parecia tremer, seus ouvidos continuavam escutando a música que a guiou até esse desfecho. Alexandra já caída foi erguida pelas pernas e braços e levada para fora do templo. Estabeleceu-se, assim, seu sonho. Nada tinha de terrível; como eu disse no início, era algo mais fantástico, desconhecido a experiência de milhares, esquisito. A própria sonhadora parecia pôr-se fora, como se pudesse assistir aquela cena grotesca de fora, apenas seu corpo sem alma movia-se, dava ganidos e gemidos de dor, era arrastado sem esboçar reação aparente, sofria sem ter ali espírito algum. Como em sonho Alexandra via aqueles rostos distorcidos e fantasmagóricos que denunciavam o que todos carregavam na alma. Ao ser arrastada para fora, um grupo grande se formou ao redor de sua visão turvada e recoberta por sangue. Riam e comentavam, gritavam:
– Bruxa! Morre!
Das ruas, do asfalto, vinha um sopro de ar quente e forte. Os pés de dezenas eram contemplados por nossa heroína e involuntariamente aqueles esqueletos se tocavam enquanto esmurravam Alexandra. A consciência do que estavam fazendo era para Alexandra algo definitivamente enigmático; sua loucura não compreendia o porquê ainda era possível que pessoas fossem violentadas pelas escolhas que faziam. Então aqueles vultos e visão tornaram a desaparecer, restando apenas para nossa heroína sua audição: a melodia insuportavelmente tranquila e melancólica tocava seus ouvidos. E tudo se tornou, de repente, bem claro à sua consciência: o templo, a música, aquelas avenidas atulhadas de carros e o fato de que logo estaria na Glória com Teotônio. Alexandra num átimo de torpor misturado com a certeza da partida refletia: “Se fosse assim, posso ser avaliada também por aquilo que poderia ter feito… então sou digna de morrer como morreram os Santos!”. Tomada de súbita felicidade, sem dúvidas nem hesitações, para espanto dos trogloditas, Alexandra sorria: ela seria recebida por Estevão, entraria merecidamente no Paraíso. Estaria com aqueles que subiram aos céus por meio das fogueiras, torturas, fuzilamentos e execuções. Que felicidades indescritíveis, infinita, acalentadora, serena e gloriosa! Alexandra já tinha de fato partido da terra, estava próxima do sol desconhecido da verdade. Voava rumo as estrelas e sua eternidade, a eternidade de sua história e vida seria garantida pela certeza de que o Paraíso não tardaria em descer à terra, quando por fim se contemplará um Novo Céu e uma Nova Terra e os injustos serão julgados no tribunal popular.
Suis-nous à travers la campagne,
Viens avec nous dans la montagne,
Tu t’y feras, quand tu verras, là-bas,
Comme c’est beau, la vie errante!
Pour pays l’univers
Et pour loi ta volonté!
Et surtout, la chose enivrante:
La liberté! La Liberté!
Le ciel ouvert, pour pays tout l’universe[2].
Alexandra não poderia morrer; para ela o fio da vida não poderia ser interrompido pela navalha da morte, pelo contrário, a lembrança, a memória, a literatura e a experiência continuava dando voltas com regularidade no espaço e corria livremente junto às nuvens. Pensava em todos os amigos, naqueles que estavam distantes, e nos que na jornada viviam os mesmos sofrimentos e percalços. Apesar de tudo, apesar de toda aquela ignorância e barbaridade, Alexandra sabia que sobreviveria, não em vida porque já lhe era indiferente; sobreviveria na memória, através da dor de milhares de mulheres e da necessidade de se expiar tais dores. As imagens em sua consciência deslizavam suavemente e se transformavam em música. Era como se naquela noite abafada e barulhenta Alexandra estivesse voando pelos ares, enquanto o trovejar de vozes e socos embalavam seu corpo a rolar pelo asfalto. Todo o susto e agitação agora se findavam, um dos desgraçados com um caibro acertou as têmporas de nossa heroína que ficaram macias e romperam o crânio em vários fragmentos atingindo aquele cérebro lúcido e fantástico. Mathias gritou e cobriu as mãos com o rosto para não ver a estética da tragédia que de repente tinha se pintado naquele templo. Ouviu-se um grito de três oitavas de Fá sustenido:
– Jamais Alexandra ne cédera, libre elle est née et libre elle mourra[3]!
O corpo cansado dissolvera-se na escuridão e a alma alegre e fatigada de Alexandra já reconhecia as portas celestiais e os umbrais do paraíso eterno. Quando todos viraram-se e puseram-se na tentativa de empreender fuga pela chegada da polícia, o corpo de Alexandra estranhamente se retorceu ainda vivo, o seu rosto ensanguentado exibia um sorriso feliz e próximo, amigável e benevolente. E agora, de repente, todos podiam ouvir com clareza os grandes acordes de uma orquestra. Atônitos, aqueles desgraçados olharam para o céu erguendo a cabeça, porém, nada viram. Ouviam, no entanto, distintamente uma orquestra furiosa, aproximando-se como se despencassem dos céus. De vez em quando ouvia-se até mesmo o estalar dos músculos do maestro e o modo como se de repente o arco de algum violonista escorregasse e logo recuperasse o ritmo. E a música gloriosa chegava cada vez mais perto – inteiramente desconhecida, uma marcha festiva muito alta e estridente que deixava um entusiasmo desconhecido tomar os corações, mesmo daquela gente sem coração. Era evidente que havia nos céus uma festa pela chegada breve de nossa heroína.
Muitos choravam porque viam naquilo um sinal dos céus; e era realmente era. Agora a orquestra passava sobre o telhado do templo, e o seu interior fora abalado pelo preenchimento de uma música nunca dantes escutada, com notas executadas em tamanha alegria, ritmada, harmoniosamente combinada. Um violino soava áspero, um pouco desafinado, mas no ritmo singular e redondo dos deuses de outras eras. Quando de repente, o vizinho, que morava no único prédio que sobreviveu corajosamente a devastação proposta pelo templo, por ordem da polícia, foi obrigado a desligar o som que tinha aumentado para não escutar aquela celeuma de vozes animais dos algozes de Alexandra.
Nossa heroína viu as figuras dos quadros sacros se inclinarem para ela, rodearam-na em uma nuvem e ergueram-na até onde as andorinhas dançavam em comemoração ao verão. Um tapete de pássaros se formou e Alexandra pode se assentar sobre eles que cantavam em seu louvor, em sua homenagem. Em seus peitos inchados, rasgando o silêncio e cortando o ar, ergueram Alexandra e a fizeram voar como uma rainha. O coração de nossa heroína não mais batia, e sua respiração se tornava cada vez mais rara e silenciosa. Ela adormecia para toda eternidade. O rosto ainda corado exibia, a despeito do sangue, uma expressão leve, com círculos escuros sob os olhos, as mãos pareciam mais cumpridas e secas que outrora. Alexandra por fim viu o messias e na luz de uma nuvem que exibia uma fresta pode contemplar em si mesmo a completude, não havia mais vazio, dor, ou fome, e, assim, morreu na mais absoluta tranquilidade[4].
Waldomiro Macedo, que havia se conservado no interior do templo, não tendo dimensão da tragédia que acontecia em seus aposentos saiu pelos fundos levando consigo Mathias sob forte censura e sendo acompanhado pelo seu lambe botas; Luiz Rocha. Teotônio que tinha parado de ser espancado pelos obreiros atingia nesse exato instante o local onde o corpo jaz sem vida de Alexandra estava caído e gritou:
– Desgraçados!
Alexandra assim subiu aos céus.
[1] Recomenda-se para a leitura desse capítulo, a audição do segundo ato da obra Carmen de Bizet.
[2] Siga conosco pelos campos, venha conosco para a montanha, você deve, e quando se acostumar, você verá como é bela a vida errante! Por morada o universo, e por lei tua vontade! E, acima de tudo, o mais embriagante: A liberdade, a liberdade! O céu aberto, por morada o universo.
[3] Alexandra jamais cederá, livre ela nasceu e livre ela morrerá! – Trata-se das últimas falas de Carmen de Bizet no ato quatro.
[4] No outro dia a notícia correu a imprensa nacional com os seguintes títulos: Mulher espancada após boato em rede social morre em São Paulo; Linchamento em São Paulo mostra que internet é capaz de matar; Linchamento de suposta bruxa em São Paulo; e mesmo a Sharezade, uma muito conhecida repórter de nossa triste época, se dignou a falar contra o linchamento que ela mesma ajudou a produzir.
Triste desfecho para uma das heroínas mais fortes que vi! Forte e pesado, pior que me lembrou aquele linchamento no Guaruja
Aguardando ansiosa o desfecho, pobre Teotônio sem a Ale ele não passa de um doido varrido!