Se o golpe no andar de cima for derrotado, o governo procurará por todos os meios se legitimar e rearticular suas bases de sustentação, o que significará dar andamento ao golpe que já está dado, ou seja, o que diz respeito à natureza e conteúdo das políticas que necessitará implementar para continuar sendo governo. Por Cassio Brancaleone

abismo2As manifestações realizadas em várias cidades brasileiras no domingo 13 de março, dirigidas contra a presidente Dilma, o ex-presidente Lula e o PT, sob a insígnia de luta contra a corrupção dos governos petistas, precisam ser entendidas mais pelo que ocultam do que pelo que apresentam como agenda de “mudança”. É necessário perceber que um grande abismo se abriu entre as manifestações de junho de 2013 e aquelas que se seguiram nos anos posteriores, culminando com a que vivenciamos recentemente. Não há mais pautas progressistas assentadas em demandas sociais e ampliação de direitos. Não parece haver diversidade social nos grupos mais diretamente engajados no processo. Mas o papel jogado pelos meios de comunicação empresariais-corporativos, em especial as Organizações Globo e os grandes veículos impressos, como a Folha de São Paulo, Zero Hora e outros, potencializado e espraiado pela capilaridade das redes sociais, foi crucial para que a comoção popular adquirisse dimensões multitudinárias e transclassistas. Se é correto aferir que as ruas foram tomadas pelos elementos mais conservadores das chamadas “classes médias” e setores elitizados da sociedade brasileira, o que é visível a olho nu nos casos da avenida Paulista em SP e de Copacabana no RJ, seria ingenuidade acreditar que o sentimento generalizado de rejeição aos governos petistas estaria restrito a determinadas camadas sociais que ocupam o meio e o topo da pirâmide social, sem reverberação nos setores populares. Ao mesmo tempo, é prudente admitir a complexidade do cenário que se armou: o protagonismo de ideias e agentes conservadores e mesmo reacionários não dá conta de explicar em totalidade o caráter psicossocial e moral das multidões presentes nas ruas, nem mesmo uma suposta adesão integral de tais perspectivas por parte dos setores sujeitos à sua influência. Isto nos coloca diante da delicada tarefa prática de separar o joio do trigo, considerando que há muito mais neste universo do que somente joio e trigo.

Analisar criticamente o processo de polarização em curso, promovido pela mídia corporativa, elementos do poder judiciário e setores empresariais, que tentam enquadrar a opinião pública na dicotomia “corruptos” versus “heróis e justiceiros”, ao mesmo tempo que existe um esforço de referendá-la em paralelo, de modo mais ou menos sutil, como antagonismo entre “governo do PT” versus “oposição” (e nessa direção convergem também as energias do PT), nos impele a correlacionar pelo menos três elementos: 1) o “governo do PT” é um governo de “pacto social”, conciliação de classes e coalização com oligarquias partidárias que representam poderes/interesses tradicionais e parasitários de larga trajetória; 2) a corrupção que tanto se evoca é uma característica generalizada do nosso sistema político, com sólidas ancoragens na vida social e, desse modo, é pluripartidária, não nasceu com o PT e nem vai morrer com seu sacrifício político, além do que, envolve não só operadores políticos, mas fundamentalmente setores da iniciativa privada (que estão longe de ser suas vítimas, alguns até se lançando cinicamente como paladinos da operação Lava Jato); e 3) numa sociedade de classes e regionalmente diversificada como a brasileira, o comportamento político das massas não é um dado a priori a ser tomado segundo determinações de ordem socioeconômica, muito menos é um espelho automático do que é veiculado pela opinião pública, estando sempre em disputa e podendo, em determinadas condições e conjunturas, responder até a imperativos contraditórios.

abismo1Comecemos com o terceiro ponto. Por mais que nos assustemos com as expressões públicas do conservadorismo que beiram ao fascismo (como no caso do deputado Jair Bolsonaro), não devemos perder de vista que a sociedade brasileira foi constituída a partir de uma matriz sociocultural e econômica escravista, patriarcal e hierarquizada que está longe de ser superada pela “experiência democrático-republicana” mais recente. Não significa que portamos uma genealogia da qual jamais escaparemos. Mas precisamos levar em conta que esta matriz, associada a determinadas estruturas econômicas e sociais vinculadas à manutenção das grandes propriedades rurais (ainda que modernizadas), a um modelo de industrialização dependente e a um padrão de crescimento econômico voltado à nossa inserção subalterna na economia global, convergiu perversamente com a preservação de relações sociais que oscilaram entre a resignação e a desobediência passiva como padrão de comportamento dominante dos setores populares (como apontam as leituras sociológicas sobre o lugar da “malandragem”, do “jeitinho brasileiro” e “cordialidade” como sociabilidade nacional, concordemos ou não com essas narrativas de formação) e o “aristocratismo de segunda” ou “complexo de vira-latas” das nossas elites e classes ascendentes que as acompanham. Nesse sentido, o conservadorismo como coordenada moral é a regra, não a exceção. Se o lulismo, como estratégia de reformismo fraco, não ousou tocar naquilo que existe de mais duradouro em nossas estruturas sociais, não podemos ignorar que essa mesma sociedade conservadora também se abriu a curiosas contradições quando, por exemplo, acolheu valores fortemente democráticos e igualitários no instante de sua tentativa de reinvenção política nos idos dos anos 1980: toda uma onda de revitalização da vida associativa, das resistências à autocracia civil-militar e do ressurgimento da luta popular inseriu no imaginário e nas instituições nacionais ideias e valores progressistas e avançados que não se reduziram à conquista da democracia política. Tal processo convergiu com o nascimento do próprio PT, no sindicalismo combativo do ABC, na formação do MST e outras tantas expressões calcadas em um paradigma de auto-organização e autonomia dos movimentos sociais e da sociedade civil que pode ser observado, por exemplo, em um livro clássico de Eder Sader sobre o assunto.

Uma hipótese plausível seria considerar que este ciclo de energias sociais e políticas criativas e seus efeitos, por razões várias, teria encontrado seu zênite e se esgotou. Mas, isso poderia implicar em promover uma visão monolítica de seus desdobramentos, o que é recorrente quando se realiza uma leitura estritamente institucionalista desse processo. Assim, valeria a pena promover um esforço compreensivo que considerasse as transformações em curso na sociedade brasileira, a partir, contra e além dessas heranças, na superfície e no subsolo da vida social, e que pudesse interpretar o lugar e o papel do chamado precariado em nossa formação social mais contemporânea.

Especialmente entre os setores juvenis e de periferia das grandes cidades, mas de forma alguma somente restrito a eles, se pode observar uma continuidade e radicalização de valores e práticas democráticos e igualitários, em chave autonomista, tal como despontando nos anos 1980. Esta parece ser uma dimensão valiosa para se pensar, de modo geral, a explosão das Jornadas de Junho de 2013 e, de modo particular, a rearticulação, o reaparecimento público e o crescimento de grupos libertários e anarquistas em várias regiões do país.

O segundo ponto diz respeito ao nosso sistema político. Nossa institucionalidade democrática, como uma modalidade das distintas poliarquias representativas demofóbicas que se formaram na América Latina, foi arquitetada de cima para baixo em todas as suas versões ao longo de século XX. As liberdades civis sempre foram toleradas na medida em que não oferecessem riscos para as estruturas sociais e econômicas vigentes. E todas nossas experiências de institucionalização de direitos para os trabalhadores e classes subalternas se deram em contextos de expansão econômica interna e externa na qual parte do excedente era repartido na medida em que não gerasse prejuízo para os interesses estabelecidos. É certo que as condições de negociação de tais direitos foram precedidas ou balizadas por processos de luta, repressão e resistência. Para efetivá-los, invariavelmente, as forças políticas que eram capazes de catalisar os desdobramentos dessas lutas, buscaram acomodar as demandas e seus respectivos representantes no interior do aparelho de Estado através de pactuações com os setores dominantes. Coordenação mediada por operadores partidários que faziam a ponte necessária entre segmentos das classes trabalhadoras, empresários, oligarquias rurais, financistas e agentes estatais. E o modus operandi de nossa democracia representativa era e continua sendo uma mescla nada virtuosa entre o concorrencial mercado político e o clientelismo. Isso parece jogar contra a tese de que precisamos modernizar nosso sistema político através de uma reforma do sistema de financiamento eleitoral: uma reforma política, de qualquer magnitude que seja, não parece ser capaz de enfrentar por si só a existência dos oligopólios econômicos e das oligarquias regionais que invariavelmente encontrarão um meio de interferir de modo privilegiado no sistema político. Esta é a raiz da tão propalada corrupção política moderna, que existe aqui, nos EUA, na Europa e em qualquer outro país onde estruturas sociais e econômicas concorrem como poderes infinitamente mais amplos que o poder do cidadão comum.

abismo4Por fim, o primeiro ponto, que nos impele a uma ponderação séria sobre os significados das transformações operadas no interior do PT ao longo de sua viabilização como instrumento político-eleitoral, bem como as repercussões disso na conformação dos governos petistas. Se para muitos a emblemática “Carta ao Povo Brasileiro” lançada em 2002 por Lula e o PT serve de referência para demarcar o compromisso público do partido com a ordem institucional estatal e a economia de mercado nas condições manifestadas no Brasil, minimizando ou mesmo abortando muitos dos elementos ideológicos transformadores que o caracterizavam como “partido radical” durante o período da redemocratização, os dirigentes do PT já haviam admitido muito antes, na medida que foram sendo preparados e forjados nas experiências parlamentares e de gestão de diversas prefeituras e governos estaduais assumidos, uma suposta vocação “democrático-republicana”, que parece ter culminado em sua conversão em um partido de prática socialdemocrata sem programa socialdemocrata. Ou seja, um partido da ordem. E ser um partido eleitoralmente viável no marco de um sistema representativo como o que existe na sociedade brasileira significa estar apto para realizar todo tipo de coalizões, alianças e “pactos” necessários para a manutenção da governabilidade. Embora seja indiscutível, no âmbito de uma perspectiva “democrático-republicana” de transição pós-ditadura, que o PT tenha contribuído com importantes inovações para a vida pública, especialmente no quadro procedimental da política (como as experiências de conselhos locais e orçamentos participativos, com todas as críticas que podem ser feitas à sua gênese e formas de implementação), é salutar reconhecer que talvez nunca tenha existido algo como um “governo petista”, mas sim, petistas nos governos. E não penso isto apenas em termos de ter ou não hegemonia na máquina estatal. Se o Estado é maior que as instituições mais imediatas de governo, e portanto, é sustentado por interesses e forças sociais que o tornam plausível e operativo como instrumento de ordem, força e consenso, é uma ilusão de petistas e seus críticos tanto a unilateral vitimização do partido (“somos prisioneiros de interesses maiores”, “estamos disputando o governo”) quanto a sua culpabilização (“toda a crise foi produzida pela política do PT”). Isso quer dizer: o partido é vítima e ao mesmo tempo culpado por suas escolhas e suas apostas. Fez o que fez para governar, e para governar precisava fazer o que fez, segundo a gramática da realpolitk. Nada de incomum nesse aspecto, partilhando exatamente dos mesmos condicionantes que os demais partidos que se encontram em condições de conduzir governos em sociedades modernas. Essa é uma diferença substantiva entre o PT e partidos como o PSTU ou o PCB, por exemplo, embora a extrema-esquerda eleitoral persiga as mesmas ilusões em relação ao “controle” do Estado. E é por sua vez o que aproxima o PT do PSDB em seu aspecto mais visceral, como “as torres gêmeas da consolidação da ordem burguesa no Brasil”, como prognosticou muito bem certa vez o sociólogo Luiz Werneck Vianna.

Golpismo, conservadorismo e ansiedade das elites dirigentes “opositoras”

Em um cenário marcado pela extrema confusão e a desinformação instrumentalizada pelo oligopólio midiático, a realização de um diagnóstico preciso sobre as razões desta crise política (tarefa que provavelmente poderão se dedicar, em um futuro breve, cientistas sociais e historiadores com a sofisticação e o rigor metódico requeridos) parece estar secundada pela necessidade urgente de compreender o significado das narrativas de crise e seus respectivos desdobramentos políticos para o quadro das lutas sociais em curso no Brasil. E é interessante observar como essas narrativas podem ser menos polarizadoras do ponto de vista daqueles que as adotam e as legitimam do que somos inclinados a pensar.

A narrativa-base que adquiriu maior expressão e difusão é aquela na qual o principal problema do Brasil está associado aos níveis inaceitáveis de corrupção supostamente intensificados sob o governo petista, que por sua vez seria incapaz de aplicar “políticas econômicas adequadas” para fazer o país voltar a crescer. Suas variações críticas ou defensivas parecem estar interconectadas nos três exemplos abaixo:

1. Há a tentativa de considerar que o movimento pelo impeachment da presidente e o rechaço crescente ao PT se devem exclusivamente à conservadora hegemonia discursiva da narrativa da luta contra a corrupção. Essa avaliação parece pender entre a ingenuidade de isentar o PT de responsabilidades na condução do governo e as posições que denunciam a (real!) seletividade das denúncias de corrupção, clamando pela isonomia.

2. Existe também a narrativa insólita e alarmista de que o governo do PT oferece algum tipo de iminente perigo: a) à soberania nacional, às liberdades econômicas e aos valores tradicionais da família brasileira; ou b) às classes dominantes e seus privilégios históricos. Aqui, sem querer e talvez até sem saber, navegam no mesmo barco tanto a esquerda do/com o PT quanto a direita mais histérica e bovina que acusa o partido de maquinar conspirações bolivarianas do Foro de São Paulo para instaurar um regime socialista/comunista/totalitário na América do Sul.

3. Entre os petistas que estão (paralisados) no governo, a leitura deste processo parece estar se produzindo ao redor do sentimento de “traição” do “pacto social” e das alianças que tornaram possível a coalização no poder. Desde 2003 o governo praticou a realpolitik à brasileira como manda o figurino: compôs com as oligarquias regionais, com o empresariado nacional, beneficiou o sistema financeiro, o capital estrangeiro, o agronegócio, a indústria extrativista, o comércio exterior de commodities, a construção civil etc. Por mais que tenha implementado algumas políticas sociais focalizadas e favorecido por um tempo um considerável nível de empregabilidade da mão de obra, nenhuma de suas políticas progressistas era obstáculo para o processo de acumulação no país: pelo contrário, seguindo algumas estratégias seletivas de tipo keynesiano e neodesenvolvimentista, otimizadas por um ambiente externo favorável, estimulou dinâmicas de crescimento do mercado interno e o correspondente poder do empresariado.

abismo7Lamentavelmente, todas estas narrativas de crise operam no quadro cognitivo e moral da (luta contra a) corrupção, e se destinam a fortalecer posições daqueles que disputam o controle do aparelho estatal. Ambas incorrem no erro de não considerar que o PT pode ser parte visceral do processo que engendrou a crise. É de se esperar que, em uma sociedade de classes poliárquica moderna, a estabilidade política dos regimes esteja vinculada não apenas aos bons índices da política macroeconômica, mas também ao grau de rotatividade das elites dirigentes. Embora as condições estruturais nas quais se assentam os governos modernos sejam complexas e muitas vezes são ditadas por elementos que transcendem as fronteiras nacionais, a pluralização de “estilos e tipos dirigentes” produz obstáculos consideráveis para a monopolização do aparelho estatal por uma força política relativamente dominante por um tempo relativamente longo. Mesmo as poliarquias de tipo bipartidárias partilham desse “princípio” de alternância. E por outro lado, os interesses empresariais e econômicos dominantes estão inseridos transversalmente no interior das instituições partidárias eleitoralmente viáveis. O PT está por completar o seu quarto mandato à frente do governo federal, cumprindo um ciclo de quase 16 anos. Logo, soma-se ao desgaste de conduzir a máquina estatal por quase duas décadas, a ansiedade acumulada por parte das oposições partidárias para ocupar estas posições.

Da parte dos eleitores e militantes que se afastaram do partido, também existe um desencantamento em relação às promessas não cumpridas, à acomodação ao status quo, às alianças com setores retrógrados da sociedade brasileira, além de todo o ônus que significa para partidos oriundos de uma tradição fundacional de esquerda dirigir governos (o principal deles: controlar, desarmar e reprimir movimentos e protestos sociais).

Diante deste quadro, parece correto ponderar que a radicalização das ações contra o governo se intensificaram justamente após a última eleição, em uma disputa acirrada com o candidato do PSDB. E toda a dinâmica de orquestração da Operação Lava Jato, que centraliza as atenções nesta crise, se desenvolveu progressivamente como uma espécie de investigação seletiva (ou mais efetiva) de alguns políticos e empresários ligados ao PT e ao seu governo. Ainda que se possa observar elementos “republicanos” no âmbito do processo que deu origem à Operação Lava Jato (o fato de políticos e empresários serem punidos e conduzidos para a prisão é um fenômeno que não deve ser menosprezado em nosso país), este tipo de apelo contrasta com o fato de que existam indícios de um processo de corrupção generalizada envolvendo empresários, parlamentares e governos que antecedem a vitória eleitoral do PT (incluindo o ex-presidente FHC e o candidato derrotado Aécio Neves, ambos do PSDB), o que ajuda a fortalecer a narrativa governista ao argumentar que o foco desta operação tem sido direcionado deliberadamente para minar as bases de legitimidade do governo petista, bem como de seu possível sucessor (no caso da tentativa de prisão ou destruição da imagem pública do ex-presidente Lula). Nesse sentido, os atos que foram convocados no país no dia 18 de março e que levaram às ruas milhões de pessoas ganharam, com justiça, importante lastro social como luta contra o golpismo e em defesa da institucionalidade democrática.

Entretanto, o mais complicado de ponderar é que o golpe provavelmente não consista em tirar o PT do governo. Este é mote discursivo para balizar as disputas intra-elites dirigentes e partidárias. É também o modo mais simplista e linear de ler os últimos acontecimentos e se posicionar diante deles. Não é a Constituição e o Estado Democrático de Direito que estão em jogo (por mais que nos assustemos com os radicalismos de direita, a manipulação midiática e o ativismo do judiciário). Não é a legalidade que está sob risco, muito menos o espectro de 1964 que nos ronda. O espetáculo que ser armou ao redor da crise política nos fez perder de vista que, sistematicamente, os direitos constitucionais mais elementares são violados em nosso país cotidianamente nos locais de trabalho, nas favelas, nos territórios indígenas e quilombolas, no campo, na floresta, na precariedade das garantias sociais e civis de mulheres, LGBTTs e negros, em suma, é parte da rotina de milhões de brasileiros pobres, estigmatizados e marginalizados. Não podemos permitir que a indignação diante da condução coercitiva de Lula, por mais ilegal que tenha sido (e foi!), ao obrigá-lo a depor na Operação Lava Jato, nos deixe esquecer de Elton Brum, Edmilson Alves da Silva, Amarildo, Claúdia Silva, Sofia, Rafael Braga, os 23 presos políticos e processados de Junho de 2013, os atingidos e expropriados pelos grandes eventos, como os Jogos Panamericanos e a Copa do Mundo, entre tanto outros, vitimados e violentados durante os governos petistas, independente de o governo ser diretamente ou não responsável. A seletividade, a abstenção e a exceção da lei e da justiça não são fenômenos inventados recentemente para punir os petistas e seus aliados. As leis em nosso país, na maior parte das vezes, são utilizadas ou não utilizadas segundo a conveniência e leniência dos mais fortes e dos interesses estabelecidos, inclusive a conveniência e leniência dos governos petistas.

abismo5A espetacularização das narrativas de crise nos fez perder de vista que o golpe já está instalado, e as polarizações podem não ser mais que cortina de fumaça. Que dizer do sucateamento em curso dos direitos dos trabalhadores, protagonizado pela própria CUT [Central Única dos Trabalhadores] petista com o malicioso Programa de Proteção ao Emprego (que seria mais honesto se chamado de Programa de Proteção ao Empresariado e à Acumulação)? Os leilões do patrimônio energético nacional com a entrega dos recursos do Pré-Sal? Mesmo agora, no calor da crise, quando a presidenta necessitava de apoio “das ruas”, o governo não hesitou em elaborar e sancionar a Lei Antiterrorismo, que dará carta branca para consolidação do processo de criminalização das lutas sociais no país, tão bem exemplificado com os processos forjados após as Jornadas de Junho. Além de, como cereja do bolo, anunciar recentemente a elaboração de projeto para limitar gastos públicos, incluindo programas de demissão voluntária do serviço público (tal como fez o governo FHC durante a sua reforma neoliberal do Estado). Infelizmente a lista não termina aqui. Medidas dessa natureza se intensificaram depois do estelionato eleitoral do governo em 2014 e diante da necessidade de operacionalizar o ajuste fiscal. E se depender do governo (que nesse instante se aproveita das marchas contra o golpe e pela democracia como capital político para pressionar que o PMDB continue em sua coalização!) ou da oposição, tudo caminha para que a política econômica responda às novas condições de acumulação, implicando na realização de reformas na legislação trabalhista, na previdência, no aparelho de Estado, na Constituição, nas privatizações brancas ou de fato, na disponibilização dos recursos naturais aos investidores internacionais, enfim, a todo tipo de mecanismo de readequação da força de trabalho e recursos nacionais com potencial mercantil ou estratégico aos novos imperativos econômicos e geopolíticos que se configuram na América Latina (embora os “governos progressistas” nunca tenham sido a rigor pós-neoliberais, não estamos isolados nessa “virada”, como podemos observar na conjuntura da Argentina).

O modo reducionista de entender uma leitura como esta é apontá-la como fatalista (já que o “golpe está dado”), e minimizar as implicações oriundas desta disputa teatralizada na estratosfera política no âmbito mais geral da sociedade. Porém, não podemos desprezar as conexões perversas que se estabelecem entre o golpe palaciano no andar de cima da política com a ofensiva ideológica conservadora no andar de baixo. As duas frentes de ataque estão umbilicalmente vinculadas. A queda forçada do governo petista, pior que a sua capitulação em uma possível reacomodação na coalização no poder, pode retroalimentar uma ofensiva reacionária em operação no tecido societário.

Mesmo reafirmando o caráter conservador da sociedade brasileira, nos últimos anos constatamos no país o incremento do que poderíamos denominar por ativismo de direita. As pautas conservadoras paradoxalmente se beneficiaram de um suposto primado multiculturalista do “direito às diferenças” para se afirmar ostensivamente, inclusive renovando seu perfil estético, etário e seus repertórios de ação. Não é recente a existência de instituições e organismos do tipo think tanks, de direita ou esquerda, disputando ideias e hegemonia da opinião pública no Brasil ou no mundo. O que provavelmente seja novidade entre nós é a formação de um verdadeiro circuito incendiário entre intelectuais conservadores, empresários, comediantes de stand up e extratos juvenis em uma cruzada contra o “politicamente correto” ou “valores de esquerda”: nessa nebulosa se misturam manifestações patriarcais, homofóbicas, patrióticas, racistas, militaristas, xenofóbicas e autoritárias com a defesa intransigente da propriedade privada e da livre iniciativa. Quando materializada nos espaços públicos, esta corrente de opinião não poupa esforços para se mediar através de atos de intolerância e violência física. Em 2013 várias pessoas foram agredidas por portarem bandeiras de partidos de esquerda por concentrações verde-amarelas que ficaram conhecidas como “Revolta dos Coxinhas”. Recentemente, mães que circulavam com bebês vestindo roupas infantis de cor vermelha próximas aos atos de 13 de março também foram assediadas por turbas violentas. Fenômenos de tal magnitude não devem ser menosprezados, pela familiaridade partilhada com práticas de natureza fascista, estimulando no imaginário popular a legitimidade de ação de milícias e agrupamentos de justiçamento e linchamento contra os “inimigos da pátria” e correlatos, tal como foram os Comandos de Caça aos Comunistas durante os anos de chumbo.

Eabismo6mblemático é o caso do Movimento Brasil Livre (MBL), uma espécie de nêmesis de direita do Movimento Passe Livre (MPL), que adquiriu proeminência em 2014 logo após as grandes manifestações do ano anterior. Utilizando-se da inovação das redes sociais, estes jovens de classe média e boas relações com alguns políticos de oposição, empresários e os meios de comunicação se notabilizaram por virulentas campanhas contra o governo “bolivariano” petista. Passaram quase dois anos, sistematicamente, bombardeando a rede com palavras de ordem pelo impeachment e convocando protestos várias vezes ao longo dos anos, lançando mão de uma estética cinematográfica da rebelião e de repertórios oriundos de estratégias da desobediência civil até a culminação do crítico de 13 de março. Para nossa perplexidade, a perversa dialética Casa Grande & Senzala se fez notar com a rotinização e popularização do protesto social que parece cada vez mais albergado no imaginário popular após sua sacramentação e apropriação por setores elitistas que aprenderam a sair às ruas com suas camisas da CBF e champanhe para posar em selfies com elementos das forças policiais.

Com a possibilidade de crescimento de uma avalanche conservadora e protofascista, estimulada pelo ativismo de direita e beneficiada pela permissividade dos meios de comunicação, corremos o risco de conversão do sentimento antipetista em estereótipo social de algo essencialmente desprezível, corrupto, imoral, pária, maléfico, contagioso e, portanto, passível de eliminação. E a fabricação social da política de ódio e cólera contra o petismo ultrapassa o próprio PT como partido político, pois visa englobar no mesmo espectro sindicatos, movimentos sociais, organizações populares e todo tipo de resistência que possa ser associada à cultura e valores da esquerda moderna. A afirmação desse estereótipo pode ser capaz de mobilizar e provocar impulsos nervosos e agressivos da opinião pública, e em contextos de concentrações de massas, despertar o que há de mais vil, mesquinho e violento nas pessoas. Se a ideologia do antipetismo se alastrar e se converter em gramática social das massas mobilizadas contra a corrupção e o governo, como equivalente da histeria anticomunista no século passado, o prejuízo para as lutas populares e a esquerda em geral será incalculável. Estaremos às portas de uma reviravolta fascista.

Alternativas?

A conjuntura que se abre para nós não parece muito animadora. Existe a chance real de o PT ser varrido do mapa político, não porque ele seja uma ameaça para a ordem estabelecida ou para as classes dominantes fazerem sua política. O PT poderá ser varrido porque essa pode ser a melhor oportunidade para eliminar junto com ele toda a possibilidade de construção, efetivamente e por outras forças políticas, de um projeto popular e de esquerda no país. A este propósito parecer servir o antipetismo: esterilizar o imaginário social de valores transformadores e alinhá-lo a uma visão de mundo correspondente às novas condições demandadas pelo desenvolvimento do capitalismo no Brasil. O monopólio da representação social da identidade de esquerda na opinião pública mais difusa, por parte da proeminência política e institucional do PT, de um lado, e por parte do trabalho ideológico de setores conservadores, de outro, acena colocar no paredão, junto com o petismo, todas as demais correntes e grupos de esquerda e movimentos populares. Este provavelmente será o golpe de mestre perseguido pela direita brasileira.

abismo9Não podemos nos dar ao luxo de minimizar os vínculos existentes entre o movimento pela abdicação ou destituição do governo e a ofensiva conservadora no seio da sociedade. A queda do governo e a mera sensação de vitória pode conferir legitimidade e fortalecer essas expressões mais reacionárias da sociedade civil, fomentando condições para a emergência de aberrações políticas na gravitação do fascismo. Uma preocupação dessa ordem é a antípoda da defesa do governo por critérios meramente legalistas e formais, como respeito a mandatos. Nenhum mandato, de governo algum, deve ser fetichizado e imunizado da crítica e da vontade popular. Movimentos que apontem para uma cultura do controle rigoroso de mandatos políticos e sua revogação quando reivindicada por populares devem ser entendidos como processos desejáveis de democratização das poliarquias modernas. No entanto, assim como a idealização da reforma política perde de vista as condições concretas sob as quais se materializam e operam as instituições políticas, não é de se surpreender que até mesmo os mecanismos de accountability e controle social de mandatos são também passíveis de ser capturados e ressignificados por grupos e interesses dominantes, como é o caso agora.

Ademais, em um contexto de fascistização da vida social é imperativo combater, principalmente nas ruas, a ofensiva conservadora. Para a esquerda antiautoritária e anticapitalista, cujo embate nas ruas é sua condição de existência como movimento político, esta batalha já vem sendo travada no dia a dia das ocupações, greves, paralisações, assembleias e trabalhos de base. Os movimentos sociais e populares, como expressão da esquerda social, também cumprem suas tarefas de politização cotidiana no âmbito de sua inserção social entre os subalternos. O principal dilema enfrentará a esquerda eleitoral e política que, acomodada às obrigações sazonais do voto e das campanhas, bem como aos trabalhos de gabinete nos governos e parlamentos, se vê forçada a reencontrar-se com as ruas, a clamar por mobilização para defender seus cargos e instituições, sempre sob o risco de que as ruas fujam do seu controle e exijam mais do que o previsto (ou não cumprido) em seus programas.

O que a esquerda antiautoritária, anticapitalista e social tem pela frente como desafio, além de aprofundar as relações com os movimentos populares, pode ser considerado uma tarefa indigesta, inglória ou contraditória: disputar as narrativas nas mobilizações em curso contra o golpe, convocadas pela esquerda política ou seus movimentos aparelhados como defesa restrita da institucionalidade democrática, conferindo-lhe sentido como mobilizações para avançar na conquista e manutenção de direitos, a despeito de quem governe. Tensionar o sentimento antigolpista rumo à radicalização da luta dos organizados e politização da luta dos desorganizados frente a ofensiva conservadora e a política de ajustes do governo, mesmo que sob o risco de coexistir com os esforços do governo em transformar esta resistência em capital político para manter seus níveis de governabilidade. Deter o golpismo nas ruas, nesse caso, significa muito mais do que preservar ou defender o governo petista. Significa frear a possibilidade de alimentar o avanço conservador na dimensão societária, e tentar dobrar na dimensão política a agenda de ajustes e contrarreformas que virá do governo petista morto-vivo ou seu substituto. Se uma parte significativa da população brasileira e dos movimentos populares, por ascendência do petismo ou por repúdio ao outro lado, foi às ruas no dia 18 de março, talvez este seja um sinal de onde a esquerda antiautoritária e anticapitalista poderia buscar estabelecer pontes. Não há dúvida de que, se o golpe no andar de cima for derrotado, o governo procurará por todos os meios se legitimar e rearticular suas bases de sustentação, o que significará dar andamento ao golpe que já está dado, ou seja, o que diz respeito à natureza e conteúdo das políticas que necessitará implementar para continuar sendo governo. E a luta terá apenas (re)começado.

Como anarquistas, essa pode ser uma contribuição generosa a uma conjuntura política de luta que é confusa, contraditória e envolve forças sociais heterogêneas. Longe de ser um apelo à unidade das esquerdas, é uma aposta na luta contra os gérmens do fascismo e da cultura da ódio e intolerância, da qual, sabemos, o governo petista também tem sua parcela de responsabilidade, e disso jamais poderemos isentá-lo. Esta luta deve ser incondicionalmente travada em todos os espaços possíveis, com os aliados que estiverem dispostos. Podemos tomá-lo como um movimento tático e pontual. De resto, a esquerda antiautoritária e anticapitalista segue o caminho com o qual firmou compromissos históricos: desafiar os interesses e forças sociais que sustentam toda institucionalidade e modos de vida estatal e capitalista, em busca da convergência entre interesses e forças sociais de outra procedência que possam não só desafiá-los, mas principalmente, recriar instituições novas que respondam às suas necessidades e demandas, como expressões de poder popular, manifestações do autogoverno e da autogestão.

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14 COMENTÁRIOS

  1. Gostei muito Cássio da síntese que você faz na última seção.

    Ali estão os problemas que afetam toda a esquerda se o tal golpe se consumar, e como não é possível separar o avanço do conservadorismo na sociedade do golpe institucional nesse momento.

    Acho que você formalizou muito bem os desafios e questões postas. Travar batalha agora é correr riscos, e entrar em contradições. Tentar usar o momento de reação ao golpe para ir além. É dentro e contra, ou em outras palavras, dentro e além.

  2. Qual é a gênese da “onda conservadora”? Esse é o ponto cego que o discurso filo-petista nunca se atreve a investigar. O lulismo e seu “brazilian dream” são provavelmente o maior motor da popularização das ideologias pequeno-burguesas nas amplas camadas sociais brasileiras, muito mais do que os 2 governos FHC, talvez o presidente menos conservador da Nova República.
    Além de ficar apenas de descrição da “nova onda”, o texto também não diz nada a respeito da formação de um campo político classista, seja antes, durante ou depois da crise. Em outro texto debati com um leitor sobre o papel da política nesta crise e em sua solução. Será que o anarquismo vê no campo político uma ferramenta apenas em momentos confusos e de crise? É um coelho na cartola?

    A mobilização do dia 18 atraiu a militância tradicional do petismo, ainda fiel, e aqueles que foram “defender a democracia”. Não fiz pesquisa de campo, mas imagino que em sua maioria, esse excedente era composto basicamente por ex-eleitores do partido. Oras, essa gente seguirá apoiando o PT em momentos complicados enquanto não houver outra força social e política capaz de apresentar outras saídas. A questão que é colocada é o que virá a surgir como nova força: setores que até o último momento estiveram abraçados ao barco que afunda, ao “governo para chamar de ‘nosso'” ou setores que se mantém coerentes com a crítica que fazem ao petismo? Isso sim é disputar base. O resto é apenas o velho e bom entrismo. A ironia é que a maior parte do trotskismo brasileiro está no lado do terceiro campo. Façamos um esforço conjunto para aprender algo da história.

  3. Pois é Leo. Confesso que me custou muito formular nesses termos estes desafios. Não condeno nem me oponho às posições que apostam incondicionalmente apenas em ações que afirmam o tipo de trabalho político que caracteriza a esquerda libertária e combativa. Penso, no entanto, que tem uma bola perigosa quicando no campo, e nesse sentido, valeria a pena algum esforço para chutá-la para bem longe, ainda que num cenário no qual 2 ou mais times antagonistas compartilham o mesmo mesmo lado do gramado…

  4. Estou curioso por uma resposta ao questionamento de Lucas, pois também acho complicado a estratégia de querer disputar ideologicamente os militantes do PT e seus satélites, como os que saíram às ruas dia 18 de março. O “bom e velho entrismo”, como de fato parece ser a proposta, é um tiro no pé. Um desperdício de nossas parcas energias.

    Penso que a única disputa possível se dá no seio dos movimentos de massas, autônomos e espontâneos. Não nessa “reação popular” fabricada para defender o governo petista.

  5. E onde estariam esses movimentos autônomos, espontâneos e de massa? Eles existem?

  6. Prolegômenos para um O que fazer?

    O governo que aí está, resultante de 20 anos de lulo petismo, aprofundou todos os traços da chamada governabilidade, ou seja, nunca esteve em disputa como algo que poderia ser “um vir a ser” á esquerda.

    Todo o cacarejar contra os “atores golpistas” é uma referência a antigos passageiros da mesma nau capitania conservadora que o PT organizou. A agenda, desde os 8 anos de Lula até esses quase 6 de Dilma, é uma tripa de decisões de/para beneficiar o andar de cima. É dizer: O poder da classe dominante mais que se fortaleceu, vide as expressões da “nação em cólera”.

    Entrando no bonde anti golpe?

    Onde foi que os governistas deram refresco grátis aos trabalhadores, ou às lutas de abaixo e à esquerda? Que o digam o cotidiano das massas, e as facas longas das “gestões democrático populares”. Nem o decantado orçamento participativo suportou a acidez da psique governista, sempre desesperada pelo “um anel”.

    Sim, a tese do “mal menor” é a expressão do extraordinário trabalho da Ideologia em seu nível zero, e esses malwares infectam inclusive o “nosso meio”, já combalido por eras de lutas intestinas. Esta proposição, ou mesmo a sua variante de “disputar por dentro”, apenas adiam nossa decepção e perdas futuras.

    Mas então, existe mesmo um O que fazer?

    Se o nosso “negócio” passa longe da institucionalidade, e é justo, então é hora de pararmos de ficar organizando a taxinomia de nossas diferenças,uma antiga obsessão do anarquismo, e passarmos e imaginar esses outros caminhos que vimos debatendo. Não há receitas ou fórmulas, e isso todo mundo já sabe. Se é assim, ao menos já sabemos o que não queremos. Mas o que queremos fazer mesmo?

  7. QUERER É PROCURAR
    Se conversasse com os divíduos da caixa de ferramentas na qual é item beAMONGtween outros, o chinês saberia as respostas para essas perguntas.

  8. QUEM ESPERA NUNCA ALCANÇA
    O Martelo esteve na Paulista dia 18, pela democracia. A Chave Inglesa, no dia 13, contra os traidores da nação. O Prego foi no ato da CSP.

    Mas o importante é dormirmos felizes com nós mesmos, certos da potência, adormecida, autônoma e de massas, que há de calhar em ato (espontaneamente).

  9. O militante ferramenta, que não é prego, sabe das coisas…
    Não é bom “dormirmos felizes com nós mesmos”? Ora pois. E – em verdade, vos digo – é melhor ainda se, “certos da potência” erétil&órgástica, nos intrometemos numa “adormecida, autônoma e de massas” fenda sem chave “que há de calhar em ato (espontaneamente)”.

  10. Entre metáforas e analogias é de dynamis que se está a tratar… na dialética entre potência e ato (do fazer-se classe da classe) mesmo o estar parado é movimento, movimento que renova potências enquanto põe outras – apressadas e sedentas por se realizar – para dormir, como lhes aPTece. Teimosos, eles, os movimentos autônomos, ainda existem, só estão num momento (übergreifende Moment) que desagrada os heterorganizados demos&pops, para os quais só “é possível” o movimento existente na aparência palpável dos debordianos atos bipolares, feitos com camisas há muito engavetadas. Enquanto isso, alguns arrancam seus próprios cabelos ao se mirarem no espelho, a perguntar: ó esquerda por que és esquerda? Outros se saciam do desejo de ser golpeado, reforçando a existência de um inimigo cujo existir lhes devolve um – há muito perdido – verniz de esquerda, guerra fria a la brasileira. Depois da tragédia, a farsa, mas a epopeia da classe segue toupeirosa: Segui il tuo curso, e lascia dir le gentil!

  11. O melhor sorriso de Aristóteles não se compara à careta gioconda de Demócrito. Questão de método, diria uma viúva de Sartre. Noves fora, Castor… iadis : jadis.

  12. Em que pese estar bem escrito, bem argumentado e a subjetividade de seu autor ser claramente anticapitalista, do ponto de vista das alternativas que indica, trata-se de um péssimo texto. Por 3 motivos que identifico: 1) nesse momento em que todos estamos a refletir sobre a realidade para nos alinharmos em algum lugar da luta de classes, apontar para o alinhamento com o governismo é pernicioso para o futuro das lutas. 2) O mais decisivo agora é ter condições de resistir ao que virá depois do desfecho do impedimento de Dilma e não é possível para a esquerda antiestatal sequer sobreviver no meio de CUTs, MSTs e UNEs quanto mais disputar qualquer coisa q seja com estes aparelhos reacionários consolidados; 3) o mero conhecimento histórico da primeira de todas as social-democracias, a alemã, nos ensina que as mesmas tropas que tentaram derrubar o governo do operário metalúrgico Ebert (chamado pela historiografia de “golpe de Kapp” e derrotado por uma greve geral de proporções tão colossais que o governo golpista sequer conseguia imprimir seus decretos) foram utilizadas pelo mesmo Ebert – o Lula alemão – para assassinar os operários da Alemanha Central que se levantaram meses depois numa insurreição comunista no Vale do Rio Ruhr. Dizem que se a história serve pra alguma coisa é para que aprendamos com ela. Por isso me parece evidente que não se pode combater práticas fascistas da direita tradicional se aliando a práticas fascistas da social-democracia.

  13. CHAVE DE FENDA

    Acho que os comentários que seguiram aos seus deram conta de responder, de maneira muito mais poética do que eu estaria disposto a fazer, seus questionamentos acerca da espontaneidade das massas.

    Acrescento uma coisa. Não confunda espontaneidade com espontaneísmo. Este último é a rejeição de quase qualquer forma de organização, certamente uma ideologia problemática no que diz respeito ao direcionamento de nossas forças inicialmente dispersas na luta contra o capital. A segunda é apenas o reconhecimento de que os grandes movimentos de massas não podem ser artificialmente pré-fabricados por centrais sindicais ou por qualquer outra coisa que seja. A história não se dobra à nossa vontade. Revoluções não são o puro resultado do esforço, articulação e coordenação de nenhum partido ou grupo político iluminado com a consciência socialista.

    Além do mais, se as massas não estiverem preparadas para realizar sua luta de maneira autônoma, não vale a pena colocar o carro na frente dos bois, assumindo uma postura vanguardista, sob o risco de cair no mesmo erro que os bolcheviques na Rússia revolucionária. Assumindo o controle do Estado, sufocando os sovietes e massacrando operários, vide Kronstadt.

  14. ACACIANICES
    Pouco poética e muito didática, resposta de quem não deixa barato (em que pese o sobrenome) para a fenda (com ou sem chave). Ora pois!
    Faltou acrescentar: não confunda as grandes obras do mestre Picasso(*) com a grande pica de aço do mestre de obras.
    (*)catalão e stalinista.

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