A história nos ensina que há golpes e golpes. Por Fagner Enrique

rachadura1aAntes de mais, é por pura demagogia, ou por temores infundados, que uma parcela da esquerda, a maior parte dela, com especial ênfase para a esquerda governista, vem alardeando a tese do golpe em curso. De um lado, temos aqueles que concebem o movimento pela derrubada da presidente como um ataque à democracia. De outro, temos aqueles que identificam o governo Dilma com a democracia. Essas posições são formuladas de modo diverso, mas será útil, na reflexão a seguir, referir-se a algumas formulações, para esboçar os termos do debate. Seja como for, outra parcela, muito minoritária, para se opor às posições acima referidas, parece estar disposta a descartar, apressadamente e a qualquer custo, a tese do golpe em curso: um ímpeto de diferenciação colocado acima da análise mais séria. A reflexão a seguir oferece mais perguntas que respostas, ou resposta nenhuma, mas optando, é claro, por um norte específico, ao colocar as questões. A história é assim mesmo: na teoria e na prática, viver é apostar. Por que não ofereço respostas definitivas? Simplesmente não as tenho. Ofereço, por outro lado, uma perspectiva de análise. Sendo assim, as afirmações a seguir devem ser encaradas como hipóteses.

O artigo Um golpe em curso?, publicado neste site, representa o último grupo mencionado acima. Curiosamente, o texto parte do mesmo pressuposto da maior parte dos defensores da tese do golpe em curso: o de identificar golpe com supressão da democracia e da constitucionalidade. Ao mesmo tempo em que afirma que “nenhum dos players do capitalismo transnacional defendeu, abertamente ou nas entrelinhas, um golpe”, o texto afirma que “dificilmente também se pode falar por aqui de elites nacionais ávidas por substituições de governo e muito menos sedentas por rupturas na democracia constituída”. É preciso concordar que corporações transnacionais e governos estrangeiros não se interessam por “rupturas na democracia constituída”, mas, por outro lado, seria ingenuidade pensar que não existem “elites nacionais ávidas por substituições de governo”: estas existem, e as vemos nos noticiários todos os dias (caso contrário, não estaríamos falando, atualmente, de um movimento pela derrubada do governo). Seja como for, o grande equívoco, nesse texto, está em conceituar golpe como “um processo político abrupto [que] envolve verdadeira ruptura institucional, procedendo à suspensão de poderes constituídos, supressão generalizada de garantias constitucionais até o revogamento completo de um ordenamento jurídico-político anterior”. Outro grande equívoco está em afirmar que, se “pequenos desvios nas regras constitucionais […] acontecem cotidianamente”, impetrados “contra setores populares mais frágeis”, a exemplo das arbitrariedades policiais nas grandes metrópoles (será apenas nas grandes metrópoles?), pequenos desvios nas regras constitucionais, impetrados contra governantes, não podem ser considerados golpes. O governo Dilma, fica implícito, estaria experimentando do seu próprio veneno, do estado de exceção dirigido que contribuiu para edificar. No entanto:

Em primeiro lugar, as medidas de exceção e as arbitrariedades policiais, como um todo, não são obra do atual governo, unicamente: são uma característica do poder de Estado, relativamente independente da orientação deste ou daquele partido, deste ou daquele governo, algo que paira por sobre governos e partidos. Qualquer governo, diante das manifestações de junho de 2013, e da possibilidade de manifestações que comprometessem a Copa do Mundo de 2014, anunciaria medidas de exceção.

Em segundo lugar, embora o governo federal tenha participado, desde junho de 2013, da edificação de um estado de exceção dirigido, inserir no contexto desse estado de exceção, voltado contra militantes de extrema-esquerda, as arbitrariedades policiais contra o proletariado e o lumpemproletariado corresponde a afirmar que o governo federal é diretamente responsável pelas arbitrariedades policiais voltadas, cotidianamente, contra as classes exploradas, quando tais arbitrariedades são, na verdade, em sua maior parte, cometidas por polícias estaduais, a serviço dos Poderes Executivos estaduais.

Em terceiro lugar, é um contrassenso pensar que o governante à frente do Estado, que é uma prática comum às classes exploradoras em geral, possa ser alvo dos regimes de exceção que o mesmo Estado volta contra as classes exploradas. O regime de exceção é uma prática das classes exploradoras, voltada contra as classes exploradas, uma prática que se projeta de um plano a outro. Nesse sentido, interpretar os ataques de uma fração das classes exploradoras a outra, no âmbito do Estado, como ataques que voltam as medidas de exceção contra uma dessas frações corresponde a situar a parcela que sofre ataques num âmbito exterior ao das classes dominantes.

rachadura2aDeve ficar claro que o estado de exceção dirigido, de um lado, as arbitrariedades policiais que vitimam o proletariado e o lumpemproletariado, de outro lado, e os ataques ao grupo no governo, de outro lado ainda, situam-se em planos distintos e separados. Mas o mais importante é que, se situamos os gestores petistas no âmbito das classes exploradoras, quando exercem o poder, não podemos situá-los, ao mesmo tempo, no âmbito das classes exploradas, quando correm o risco de ver o poder escapar pelos dedos. Trata-se de processos distintos. E mais: no fundo, essa perspectiva, se levada até as últimas consequências, se aproxima da perspectiva dos governistas, para quem o governo atual representa, no âmbito do Estado, “setores populares”; ou corresponde a censurar um governo capitalista por se comportar como um governo capitalista, por proceder conforme demanda o poder de Estado nos marcos da democracia capitalista, isto é, por não ter sempre cumprido o que prometeu, que é promover a incorporação, no âmbito do Estado capitalista, de demandas dos movimentos populares (sobre esse último ponto, por exemplo, é comum a afirmação de que o governo Dilma executou o ajuste fiscal, e por isso não deve ser defendido, o que nos leva a questionar qual é o tipo de governo capitalista que os críticos de extrema-esquerda ao governo Dilma estão dispostos a apoiar, se não é um governo capitalista que executa medidas de ajuste fiscal; contra essa perspectiva, afirmo que o governo Dilma não deve ser defendido, não porque representa um mau capitalismo, o “neoliberalismo”, coisas do tipo, mas justamente por ser capitalista, e porque não vejo a democracia sob ameaça).

Em quarto lugar, o artigo afirma que, para se poder falar em golpe, é preciso “colocar no poder alguém que não está na ‘linha natural de sucessão’ dentro de um regime”. Como “em caso de efetivação do impedimento […], não assumiria um grupo político alheio ao rito eleitoral […] mas o vice-presidente”, e como “no caso de impugnação da chapa, assumiria o atual presidente da Câmara ou do Senado”, “em ambas as situações, por maiores que sejam as repulsas que nos causam estes nomes, tratam-se de representações políticas nomeadas pelo voto popular, em respeito aos preceitos e às instituições democráticas”. Esse argumento não me parece satisfatório, pois, como veremos abaixo, já houve tentativas de golpe que recorreram ao instrumento legal do impeachment, que preserva a “linha natural de sucessão”; além do mais, já houve pelo menos um golpe, na história do Brasil, em defesa da preservação da “linha natural de sucessão”, como veremos adiante.

Outro argumento problemático do texto é o de que “conceitos que tudo abarcam perdem a força explicativa”, de modo que “argumentar que toda articulação pública ou conspiratória que recorre a recursos legais e ilegais para conservar ou trocar governos constituiria uma modalidade de golpe” concorre para fazer o conceito de golpe perder força explicativa. Novamente, equipara-se golpe a ruptura com a democracia e a constitucionalidade. Se, por um lado, conceitos que a tudo abarcam perdem força explicativa, reduzir golpe a ruptura com a institucionalidade, por outro, contribui para que o conceito de golpe fique tão restrito que não pode ser utilizado para explicar outra coisa senão os tais “golpes ao estilo clássico”, justamente aqueles seguidos de supressão da democracia e da constitucionalidade. Se a época dos “golpes ao estilo clássico passou”, nunca mais se poderá falar em golpes?

Proponho, portanto, um conceito de golpe que seja, ao mesmo tempo, mais abrangente e relativamente restrito: devemos entender por golpe a determinação, viabilizada pela conjunção de atos legais (ou pseudolegais) e ilegais, de quem vai governar, independentemente do respeito à “linha natural de sucessão”. Mas aí nos deparamos com um problema: como conceber a legalidade? Seria ela independente das lutas sociais e políticas? Não. A legalidade deve ser encarada como expressão de um pacto entre grupos sociais que, juntos, conseguem impor sua dominação social. Nesse sentido, a ordem constitucional democrática prevê que os capitalistas sucedam uns aos outros no poder, na sequência de disputas eleitorais, e que mesmo lideranças vindas das classes exploradas tenham aberto o caminho ao poder, isto é, possam participar da política partidária/eleitoral. No entanto, o Estado capitalista não apenas enquadra o acesso ao poder de lideranças vindas das classes exploradas; o Estado é uma prática das classes exploradoras, de modo que o percurso pelo Estado inaugura um percurso através de uma das manifestações, uma determinada manifestação política, da exploração. Enfim, me interessa pontuar aqui que a legalidade resulta de um pacto entre os grupos sociais dominantes. As rupturas, para determinar quem vai governar, que transbordam esse tipo de pacto, que transbordam a legalidade, respeitem ou não a “linha natural de sucessão”, configuram golpes. E mais: não significa que tais rupturas levem, necessariamente, à ruptura com o regime político e social vigente, pois a legalidade pode ser infringida pontualmente. Ou seja, pode haver um golpe para determinar quem vai governar sob um regime democrático, que rompa pontualmente com o pacto social que deu origem à legalidade democrática, mas que não rompa definitivamente com as instituições responsáveis por formalizar o referido pacto, nem com as instituições resultantes do referido pacto. No contexto atual, quando o governo federal e o seu principal partido de oposição, o PSDB, aplicariam a mesma política econômica, isto é, quando não há divergências significativas entre situação e oposição, pelo menos no que se refere às questões mais cruciais da política econômica, fica mais fácil preservar, em suas linhas gerais, as instituições responsáveis por formalizar o pacto da legalidade, bem como as instituições decorrentes desse pacto.

OLYMPUS DIGITAL CAMERABem, mas, para dar maior concretude à análise, vamos analisar alguns exemplos históricos. Em primeiro lugar, vamos abordar a questão do impeachment. A tese dos autores de Um golpe em curso? é a de que, como o impeachment é um processo legal, a defesa do impeachment, em qualquer situação, mesmo que associada a uma conspiração para a derrubada do governante, não pode ser inserida num contexto de tentativa de golpe, já que nem toda “articulação pública ou conspiratória que recorre a recursos legais e ilegais para conservar ou trocar governos constituiria uma modalidade de golpe”. Mas vejamos:

Numa obra do historiador John W. F. Dulles, ficamos sabendo que Carlos Lacerda, que já havia apoiado o golpe contra Jacobo Arbenz, presidente da Guatemala deposto em 1954, e que vinha, juntamente com líderes udenistas e militares, conspirando pela queda de Vargas, deu início a uma campanha pelo impeachment do presidente (que, diga-se de passagem, havia optado pelo golpe de Estado no passado), denunciando um suposto financiamento ilegal da campanha eleitoral de Vargas por Perón, em troca da adesão do Brasil a um bloco reunindo Argentina, Brasil e Chile, em oposição à hegemonia continental dos Estados Unidos. O problema é que a UDN estava dividida, e o ex-presidente Dutra se colocou contra o impeachment. Temos, portanto, uma conspiração para derrubar o presidente eleito, conspiração que tenta fazer uso do mecanismo constitucional do impeachment, mas que, no fim, opta pelo golpe de Estado, efetivado quando da renúncia de Vargas imposta pelas Forças Armadas, culminando no suicídio. Derrubar Vargas pelo recurso ao impeachment não romperia com a “linha natural de sucessão”. A questão é que o projeto de lei do impeachment havia sido fundamentado numa denúncia veiculada no jornal de Carlos Lacerda e na Rádio Globo, bem como na “comprovação” da autenticidade da denúncia por um ex-ministro de Vargas, que se tornara seu desafeto (cf. DULLES, 1992, p. 165-188).

Da mesma forma, ficamos sabendo, por meio do jornalista Eurilo Duarte, num livro publicado logo após o golpe de 1964, que, logo após o comício de João Goulart no dia 13 de março, o Partido Libertador apelava ao Congresso para que fosse votado o impeachment do presidente, além de solicitar um pronunciamento das Forças Armadas, o que promoveu a agitação nas ruas contra o governo, inclusive com agressões a lideranças de esquerda, ou identificadas com a esquerda, e favoreceu as conspirações já em curso para a derrubada de Goulart (cf. DUARTE, 1964, p. 128). O fato é que, por meio do famoso Comício da Central, João Goulart não cometeu nenhuma ilegalidade, embora tenha, com certeza, violado os termos do pacto social que fundamentou a constitucionalidade democrática do período pós-1945.

Bem, depois de passarmos pela questão de se o mecanismo constitucional do impeachment pode ser instrumentalizado por conspirações golpistas, vamos agora à questão do golpe enquanto ato que não leva, necessariamente, à supressão da democracia e da constitucionalidade; um golpe pode ser dado até para fazer valer a constitucionalidade democrática, ou pelo menos pode ser dado com essa justificativa. Antes disso, porém, é preciso fazer notar que não apenas o impeachmet mas também a renúncia pode ser instrumentalizada numa tentativa de golpe. Parece ser o caso do presidente Jânio Quadros, que, em agosto de 1961, apresentou ao país sua renúncia, o que foi interpretado, por exemplo, pelo historiador José Paulo Netto, como um golpe: segundo Netto, “a renúncia do 25 de agosto, ao que tudo indica, não foi um ato irrefletido do presidente – antes, teria resultado da sua avaliação segundo a qual, diante desse fato consumado, as forças políticas conservadoras se reagrupariam, as massas apelariam à sua volta e ele poderia governar com mão de ferro; ou seja, a renúncia seria o primeiro passo para regressar com poderes ampliados (NETTO, 2014, p. 30)”. Ora, trata-se de uma tentativa de golpe, pois o presidente só poderia ser recolocado no poder, depois de ter renunciado, com a força das massas e das forças políticas conservadoras, por meio de um golpe.

Vamos agora ao golpe em favor da constitucionalidade democrática: escrevendo sobre o golpe de novembro de 1956, liderado pelo general Lott, ministro da Guerra desde o governo Café Filho, e também durante o mandato de Juscelino Kubitschek, o historiador Thomas Skidmore nos mostra como os antigetulistas, como Carlos Lacerda, “já perdiam a fé nos meios ‘legais’ para bloquear o retorno dos getulistas (SKIDMORE, 1982, p. 189)”. Primeiramente, Lacerda tentou impedir a posse do presidente e do vice-presidente eleitos em 1955, Juscelino Kubitschek e João Goulart, divulgando uma carta forjada, que supostamente provaria que Goulart havia comprado armas de Perón, em 1953, a fim de equipar milícias operárias. Depois, um coronel chamado Mamede apelou publicamente por um golpe militar, enfurecendo o general Lott, que, diante da recusa do presidente em exercício, Carloz Luz, em punir o coronel, e diante da substituição do próprio Lott pelo general Fiúza de Castro, no comando do ministério da Guerra, o qual começou a elaborar uma lista de comandos militares a serem transferidos, recorreu ao “golpe preventivo”. Segundo Skidmore, “a intenção de Lott era garantir as regras do processo eleitoral, porém, a ironia de sua devoção à ‘legalidade’ repousava no fato de que essa mesma ‘legalidade’ teve de ser garantida pelo ato arbitrário de um golpe militar (SKIDMORE, 1982, p. 197)”. Portanto, é possível um golpe que, por meio de um ato ilegal, determine quem vai governar, mesmo que essa determinação siga, ou não contrarie, ou contrarie por um lado mas não por outro, o preceito constitucional.

onda2aA coisa é complexa, e cada caso é um caso, de modo que, por exemplo, em 1985, outro golpe foi dado, mas para garantir, dessa vez, que José Sarney assumisse a presidência, por ocasião da doença de Tancredo Neves, que o impediu de tomar posse, o que feria a prerrogativa constitucional de Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara (cf. NAPOLITANO, 2015, p. 311). Em 1956, um golpe para garantir que o presidente e o vice eleitos, sucessores “naturais” do então presidente, assumissem seus cargos; em 1985, outro golpe, para impor um sucessor “não natural”, o vice eleito, contra o sucessor natural, o presidente da Câmara.

Quer dizer, devemos levar em conta 1937 e 1964… Mas e os outros golpes? Todo golpe é seguido de ditadura? A julgar pelos exemplos a que recorremos acima, não. Além do mais, em 1937, vivia-se a ascensão internacional de regimes fascistas, na sequência de revoluções comunistas derrotadas, ou tentativas de revoluções derrotadas, ao passo que, em 1964, vivia-se em plena Guerra Fria: Mário Pedrosa demonstra, numa de suas obras, como que, “para a ideologia oficial”, “a insurreição militar contra o governo de João Goulart, o movimento ‘de caráter defensivo’ se destinava a contra-atacar a ‘guerra revolucionária’, que os comunistas haviam desencadeado no Brasil […] (PEDROSA, 1966, p. 69)”. Propagava-se a ideia de uma “guerra revolucionária” em curso, em fase de “subversão franca”, de “obtenção de armas”. Daí ter sido necessário, na sequência ao golpe, estabelecer um regime ditatorial, para fazer frente à “agressão interna” dos comunistas. Mas não se pode conceber todo e qualquer golpe partindo desse modelo.

Levando tudo isso em conta, me parece estranho que os autores de Um golpe em curso? afirmem que o caso dos grampos telefônicos, vazados irregularmente pelo juiz Sérgio Moro, não pode ser interpretado como parte de uma tentativa de golpe, quando isso parece ter sido feito para criar um ambiente cada vez mais favorável à queda do governo, por vias legais, isto é, por meio de um processo de impeachment. Parece ser uma ilegalidade (conferir esta polêmica em torno da legalidade ou ilegalidade das ações de Sérgio Moro) inserida num processo de ruptura com o pacto social que fundamentou, e garantiu, o acesso do PT ao poder. O vazamento dos grampos parece ter sido um dos elementos de uma tentativa de golpe, que articularia, de um lado, agitação nas ruas, suscitada pelo vazamento dos grampos, e derrubada do governo em meio às disputas palacianas no âmbito do Estado, de outro. O impeachment seria justificado atribuindo-se à presidente crime de responsabilidade, no que se refere à questão do termo de posse. Além do mais, não foram apenas personalidades do campo governista que denunciaram uma “politização”, contra o governo, das decisões judiciais e do trabalho policial; mesmo personalidades do campo conservador têm se queixado de “uma falta de equilíbrio no jogo político”, denunciando uma modalidade de golpe que se dá a partir de instrumentos legais.

Mas onde estaria o elemento conspiratório? Ora, por meio de uma reportagem da autoria de Paulo Pena e Kathleen Gomes, publicada no dia 23 deste mês no jornal Público, ficamos sabendo que está programado, para o dia 31 deste mês, um seminário em Lisboa, com o tema “Constituição e Crise – A Constituição no contexto das crises política e económica”, que reunirá, entre seus oradores, Aécio Neves, José Serra, Gilmar Mendes e Michel Temer. A reportagem informa que uma fonte oficial portuguesa qualificou o encontro como “uma espécie de ‘Governo brasileiro no exílio’”. Além do mais, o evento coincidiria com o prazo para a direção nacional do PMDB “tomar uma decisão final sobre se permanece no governo ou se sai” (na verdade, o seminário começa hoje, dia 29, e vai até o dia 31; conferir aqui e aqui). Trata-se de uma prova absoluta para a tese do golpe em curso? Não, mas indica um norte para questões que devem ser colocadas. Por outro lado, em reportagem de Daniela Lima, publicada no jornal Folha de S. Paulo, ficamos sabendo que a oposição ao governo tem se reunido com o vice-presidente, Michel Temer, para discutir o “’dia seguinte’ à possível queda” de Dilma, o que incluiria “propostas que devem ser encampadas pelo vice, caso assuma o governo” e “nomes e perfis que integrariam a gestão Temer”. Esse tipo de manobra, de articulação, seria facilmente caracterizado, pela extrema-esquerda que se opõe à tese do golpe em curso, como conspiração e tentativa de golpe, se o que estivesse em jogo fosse uma tentativa de burocratização de um movimento ou organização, ou de substituir uma burocracia por outra.

Wave RockMas por que razão estaria o governo Dilma sendo alvo de uma conspiração para a sua derrubada? O artigo Por que os patrões querem o golpe?, de Juarez Guimarães, publicado na Carta Maior, parece sintetizar alguns argumentos utilizados por grande parte da esquerda. O que está em curso é, supostamente, um golpe na democracia, promovido pelo capital financeiro internacional e por entidades empresariais brasileiras. A razão: um ascenso nas lutas proletárias desde 2013. O golpe viria para “quebrar de vez este movimento ascensional de lutas classistas e de conquistas de direitos”. “Todo o sistema de direitos democráticos previstos na Constituição de 1988” seria desmantelado. Além disso, teríamos uma escalada de privatizações. O referido artigo chega à beira do delírio, afirmando que “o golpe viria criar uma nova época de domínio norte-americano na América Latina, impondo um novo cerco à revolução cubana em crise”, quando, na verdade, o presidente Barack Obama, diante da crise econômica americana e do crescente fracasso dos Estados Unidos no Oriente Médio, tem se empenhado em deixar no passado antigas rivalidades com Cuba e Irã. Apesar do delírio, penso que boa parte da esquerda assinaria embaixo a tese do golpe orientado para o estabelecimento de “um novo programa radical neoliberal de guerra aos direitos sociais e de privatização do setor público brasileiro”. Um editorial de Brasil de Fato repete os mesmos argumentos: “querem realinhar o Brasil com os interesses do imperialismo estadunidense, retirar direitos da classe trabalhadora e criminalizar as lutas sociais. Pressionam o governo em várias frentes, disputando a leitura dos fatos, a cabeça e o coração das pessoas, através dos meios de comunicação. No Congresso, impondo medidas neoliberais, que retiram direitos dos trabalhadores e jogam o peso da crise nas costas dos mais pobres. Setores do judiciário e da polícia federal têm sido agentes políticos fundamentais dos interesses neoliberais. O núcleo central da operação Lava Jato tem objetivos claramente golpistas, afrontando e colocando em risco garantias constitucionais fundantes da democracia. Além disso, temos frações da classe média que foram ganhas para o projeto de restauração neoliberal”.

Bem, me parece bastante improvável que tenhamos, com a derrubada de Dilma, ao mesmo tempo, uma ofensiva contra a classe trabalhadora e a extrema-esquerda (tais ofensivas aconteceram, curiosamente, durante o governo Dilma, sendo, na verdade, atitudes compartilhadas por todas as frações das classes dominantes no poder) e uma ofensiva do mercado contra o Estado. Em primeiro lugar, há um superdimensionamento do caráter democrático dos governos petistas, geralmente associado à sua disposição ao diálogo e à incorporação de demandas dos trabalhadores. O diálogo e a incorporação de demandas dependem, sempre dependeram, das pressões dos trabalhadores, e não de uma suposta opção política e ideológica deste ou daquele governante. As elites no poder podem suceder-se por meio de golpes, mas isso não significa que um golpe colocará para fora de campo as organizações dos trabalhadores: partidos, sindicatos etc. A repressão, através do estado de exceção dirigido, continuará servindo, como serviu durante o governo Dilma, para conter a extrema-esquerda. E também não significa que os gestores vinculados à oposição de direita não tenham os seus próprios mecanismos de cooptação e mediação de conflitos, e que não os possam incrementar: o meio empresarial se preocupa com a mediação de conflitos e a cooptação tanto quanto a esquerda governista, ou o campo democrático-popular. Além do mais, os governos petistas, no que se refere aos programas sociais, as “bolsas”, “cotas” etc., têm dado continuidade ao governo FHC. Em segundo lugar, este artigo, por exemplo, escrito por Jacob S. Hacker e Paul Pierson, e publicado em Foreign Affairs, mostra o quanto a dicotomia mercado contra Estado é falsa, pelo menos para os gestores. Contra o discurso neoliberal de Ted Cruz, candidato à presidência dos Estados Unidos, o artigo conclui: “Foi a emergência na primeira metade do século XX de um robusto governo dos EUA com vontade e capacidade de agir audaciosamente em nome do país como um todo que levou aos espetaculares avanços em bem-estar durante muitas décadas – e tem sido o esgotamento das capacidades, ambições e independência governamentais na última ou nas últimas duas gerações que tem sido uma causa importante do esgotamento dos bons tempos”. Os ideólogos do capitalismo sabem como a interação mercado-Estado potencializa o crescimento econômico. Pode até ser que, num período de euforia inicial, após a tomada do poder, a oposição de direita fique iludida e, sem tomar consciência de sua real força, tente promover uma guinada ao neoliberalismo radical, mas, à semelhança dos militares liberais, que faziam oposição radical ao nacional-estatismo, e que assumiram o poder em 1964, aqueles à frente do poder logo chegariam à conclusão de que essa dicotomia é contraproducente (cf., p. ex., REIS, 2014, p. 54-92). Não demoraria o choque de realidade.

O que vemos agora parece ser uma disputa entre frações das classes exploradoras pelo controle do poder de Estado e das empresas estatais, bem como pela distribuição de cargos públicos, que se expressa na imprensa e no debate político, desde o caso do mensalão, em 2005, por meio da questão da corrupção. Os políticos petistas e seus aliados, tanto quanto aqueles filiados a partidos de oposição, relacionam-se com o meio empresarial (chegam a transitar entre o meio empresarial e o Estado), onde a desonestidade é não apenas útil mas, por vezes, necessária. É possível que a crise econômica, introduzindo um novo contexto, que destoa do contexto de expansão econômica característico da era Lula, tenha tornado essa disputa mais acirrada: a restrição da economia concorrendo para a restrição da capacidade de alocação de gestores na condução dos negócios públicos, o que pode explicar a crise de governabilidade enfrentada por Dilma. Dizendo de outro modo, parece que os esquemas de corrupção, que eram do conhecimento de todos, mas que eram mantidos debaixo dos panos, de acordo com o pacto social que pavimentou a chegada do PT ao poder, estão sendo agora seletivamente revelados, para prejudicar a permanência do PT no poder, com o que o governo e os dirigentes petistas parecem não ter contado: essa pode ser a explicação para a tranquilidade com que Lula, Dilma e outros falaram tantas coisas, ao telefone, que poderiam ser instrumentalizadas, e foram, contra o governo e o partido. A crise econômica me parece desempenhar aí um papel crucial, mas não seria uma disputa entre modelos econômicos: seria uma disputa sobre quem vai conduzir o mesmo modelo econômico.

Tendo em vista que a democracia não parece estar sendo ameaçada, e que a política econômica provavelmente seguirá o mesmo rumo, pois a política econômica reflete necessidades da economia capitalista, com relação às quais os diferentes partidos convergem entre si, não faz sentido algum sair às ruas para defender a permanência do atual governo. Isso não necessariamente demanda, contudo, que o conceito de golpe seja arbitrariamente descartado.

waverock2aUm dos princípios caros, ou que deveria ser caro, à esquerda anticapitalista é o de não temer convergir, mesmo que acessoriamente, com os discursos da direita, na crítica a outras frações da esquerda, por exemplo o campo democrático-popular e o multiculturalismo. Da mesma forma, não se pode temer convergir com o campo democrático-popular, mesmo que acessoriamente, na crítica à direita. Levar em conta a possibilidade de estarmos diante, ou termos estado diante, de uma tentativa de golpe não nos fará convergir com a posição política da esquerda governista, ou da esquerda que vem nutrindo temores infundados quanto a uma suposta ameaça à democracia. Os conceitos do inimigo (que reúne a direita, os governistas e os multiculturalistas), assimilados no nosso discurso, não nos fazem convergir praticamente, politicamente, com ele. Isso acontece apenas se praticamente, politicamente, engrossamos suas fileiras. No sentido proposto acima, golpe torna-se um conceito válido, isto é, que pode ser aproveitado para a análise das movimentações dos grupos que fazem oposição ao governo; torna-se um conceito à frente de uma hipótese válida, não a porta de entrada para a defesa do governo, ou para a associação da defesa do governo com a defesa da democracia. Para isso, é preciso encarar as disputas palacianas separadamente da relação entre Estado e extrema-esquerda, Estado e proletariado, e Estado e lumpemproletariado. Trata-se de planos muito distintos. Da mesma forma que um golpe não levaria, na atual conjuntura, a uma supressão da democracia e da constitucionalidade, conformando um Estado autoritário, também não se pode afirmar que o estado de exceção possa ser voltado contra uma das frações das classes dominantes em disputa pelo poder. Pensar o estado de exceção e a possibilidade de um golpe em planos distintos, mais do que a leitura contrária, indica à classe trabalhadora que pouco importa que o governo atual sofra um golpe ou seja impedido.

Referências

DUARTE, E. 32 mais 32, igual a 64. In: DINES, A. et al. Os idos de março e a queda em abril. Rio de Janeiro: José Alvaro, 1964.
DULLES, J. W. F. Carlos Lacerda: a vida de um lutador. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. v. 1: 1914-1960.
NAPOLITANO, M. 1964: história do regime militar brasileiro. São Paulo: Contexto, 2015.
NETTO, J. P. Pequena história da ditadura brasileira (1964-1985). São Paulo: Cortez, 2014.
PEDROSA, M. A opção brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
REIS, D. A. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
SKIDMORE, T. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

10 COMENTÁRIOS

  1. Um ponto que não ficou claro para mim, nas suas passagens históricas, e que considerei importante no outro texto, foi a velocidade em que os “golpes” aconteceram.
    Do ponto de vista prático, estamos passando por esse processo desde meados de 2014 ou talvez até 6/2013(?). Os exemplos que vc deu demoraram tanto tempo para acontecer ou foram mais velozes que isso?

    Isso interfere pouco, ou quase nada, na sua argumentação, mas a pulga ficou atrás da orelha.

  2. Cada caso é diferente. No caso da tentativa de golpe de Jânio Quadros, a coisa parece ter sido bastante rápida. No caso das tentativas de golpe contra João Goulart, a coisa parece ter sido mais demorada: levando em conta todas as tentativas de removê-lo de cargos importantes, Goulart teve de ser demitido por Vargas, depois houve uma tentativa de impedir sua posse como vice-presidente, depois como presidente, depois tentativa de impeachment, logo seguida de golpe. O golpe de 1956, liderado pelo general Lott, parece ter se processado rapidamente. Enfim, há golpes e golpes. E, na verdade, eu concordo plenamente com os autores de “Um golpe em curso?”, quando eles criticam a retórica do PT e do governo, que afirmam estar sofrendo golpes desde, pelo menos, o caso do “mensalão”. Isso não passa de demagogia. Se estamos diante de uma tentativa de golpe, ela começou, para mim, no contexto do caso dos grampos telefônicos, como argumentei no artigo acima. Ou seja, começou há dias atrás.

  3. Pouco importa? Cruzaremos os braços??? Que legitimidade política tem esse discurso? Representa quem essa balela de não faz diferença? Típico dos setores incompetentes e incapazes de propor um projeto de mudança, não existe esquerda sem uma esperança, sem um projeto de futuro e um projeto de sociedade que seja realista e que começa a partir de um ponto concreto, repetir mantras acartilhados nunca levou a esquerda em lugar nenhum. Tudo nesse texto além de óbvio é niilista, não existe extrema esquerda no Brasil, restam-nos apenas vanguardas universitárias. Os autores desse site advogam serem porta vozes da classe trabalhadora, mas não são, apenas os ilegítimos temem e seguem nesse mantra de não devemos nos vender, convergir com a direita etc…. Temem isso por no fundo reconhecem a inconsistência de seus ideais. Apoiam apenas os movimentos onde eles podem ser as estrelas, se alicerçam em uma dita tática que até hoje não mostrou nenhum conexão com os processos reais e muito menos com as demandas concretas da classe trabalhadora, aliás nem se ouve a voz dos trabalhadores… O mais impressionante é que tudo isso que esta acontecendo, e até mesmo análises como a do texto, já era bem sabido antes mesmo do PT ganhar a primeira eleição. Uma esquerda que até agora teve um papel nulo na nossa história recente, a partir de 2003, e foi absolutamente incompetente no seu trabalho de base, perdida e sem proposta, acreditando no quanto pior melhor, agora quer lavar as mãos, deixa como está para ver como é que fica, pois já sabemos como é!!! Concordo com as análises, mas jamais concordarei com as conclusões tiradas, a esquerda sem projeto, sem oferecer esperança de futuro, que ainda imagina que nesse jogo há espaço para aqueles que não querem jogar e acabam sendo atropelados recorrentemente, justamente por nada terem a oferecer à classe trabalhadora além do seu fatalismo imobilizante, perde mais uma vez o trem da história. Ainda vivemos um momento reformista onde a inclusão de pautas e demandas populares tropeça e o pouco espaço que tem pode se perder, acredito que importa sim o rumo institucional que será tomado, pois é nele que será travada as lutas e a construção de um projeto legítimo para a classe trabalhadora, que esta fragmentada em sua realização e dopada pelo consumo, duvido muito que algum trabalhador esteja disposto e desempenhar energias no projeto do quanto pior melhor.

  4. Luta de frações políticas por cargos públicos e administração de estatais está longe de explicar tudo que está acontecendo. Não explica por exemplo o ‘tudo ou nada’ de uma Rede Globo (ela não agiria de tal forma por interesse de grupos políticos, mas sim por interesse de classe ou dela própria), a atuação do MPF-PF-Judiciário e, talvez mais o que mais salta aos olhos, o peso financeiro e de energia que a Fiesp está depositando no golpe.

  5. E concordo com o espírito do comentário do Artex.

    Os 20 centavos da passagem de ônibus provavelmente não faziam diferença também nesse sentido dado pelo texto. Não sabemos o que vai acontecer, mas uma redução em relação à inflação de 15 reais do bolsa-família, em relação a uma redução de 10 reais também não deve fazer diferença. Afinal, a política econômica será praticamente a mesma. Para quem não é afetado, é tudo igual. O texto também não articula a mobilização social (a tal nação em cólera e o processo institucional), que me parece inseparáveis, e lutar contra o golpe no momento é ao mesmo tempo lutar contra esse fascismo nos ambientes sociais.

    É muito estranho o texto argumentar que há golpe e ao mesmo tempo afirmar que não se deve lutar contra o golpe. Sequer enxergar o momento como possibilidade de luta e organização dos trabalhadores, ou de parte dos trabalhadores, nos seus locais de trabalho mesmo – talvez das camadas mais ilustradas dos trabalhadores, que seja.
    Quando se luta pela redução da tarifa de ônibus não se está lutando diretamente pela mudança da política de transporte, então não vale a pena lutar pela redução temporária da tarifa? Colocar em pauta o que se quer? Mostrar que não se aceita as condições em que os transporte é gerido?

  6. Se: aos condenados da terra só resta escolher uma das facções criminosas (ou frações do capital) que se engalfinham no assalto à maquina (ou melhor, aos cofres) do Estado, esperançando phuturível godot messias revolucionário que não virá.
    Então: não há ni[h]ilismo, da parte dos que se recusam a oPTar pelo hipotético (e abaixo de qualquer suspeita) mal menor.

  7. Achei o texto bom para desmistificar o termo “golpe”, muito associado com 64, e esse é o peso retórico desejado pelo petismo: um espírito de “lute contra a ditadura ou seja um bundão”.
    Tendo em vista isso, assim como creio que não haverá mudança substancial de regime (o mesmo estado de exceção dirigido que no governo petista), creio que a defesa da democracia aqui não deve ser formalista, como se ela se igualasse à defesa do mandato Dilma.
    Concordando com a tese final do texto, a bandeira das eleições gerais volta a dar um protagonismo para a população, para que ela funcione como árbitro de uma digladiação entre frações da burguesia e dos gestores, que não estão conseguindo resolver suas disputas pelos meios palacianos “tradicionais”. A maior urgência é em resolver tais disputas, pois, cenário triste, elas estão criando climas de radicalização de setores aproximados com o fascismo, setores que tentam dar nova vida ao projeto democrático-popular e outros oportunistas mais. Ou seja, é um protagonismo precário e distante da desejada emancipação de classe, mas é algo que pode frear as radicalizações do momento, que são em si o maior problema atual na conjuntura, algo que também termina indo ao encontro da conclusão do texto.
    Tenho para mim, até o momento, que essa é a saída de crise que a extrema-esquerda pode sustentar e defender, usando a democracia formal como ferramenta política contra setores políticos inimigos.

  8. Artex,

    Discordo que o espaço para inclusão de pautas e demandas populares pode ser perdido, a não ser que a classe trabalhadora, por uma relação de afinidade com os governantes petistas, se recuse a sentar-se à mesa. No entanto, como a credibilidade do PT, para a maior parte dos trabalhadores, parece estar seriamente comprometida, fazendo com que esses trabalhadores engrossem as manifestações contra o governo, essa possibilidade me parece nula. A recuperação das lutas proletárias, através da incorporação de demandas, cooptação, etc., não foi inventada pelo PT, nem a democracia, nem os programas sociais, nem as políticas afirmativas, etc., etc., etc. Enfim, não faz diferença, justamente porque o governo, diante da crise política atual, pede apoio dos movimentos sociais, dos setores “progressistas”, da esquerda em geral, mas sem oferecer absolutamente nada em troca. Esquecemos do elemento barganha, em política? E aí chegamos ao comentário de Leo Vinicius.

    Leo Vinicius,

    A questão é, como colocado acima: que está oferecendo, ou pode oferecer, o atual governo? Nada. Não está oferecendo nada, e não pode oferecer nada, porque não tem condições de gerar, no Congresso, etc., qualquer consenso. O pacto social de 2003 não existe mais.

    Se a esquerda atual se resume a movimentos e organizações que demandam do Estado isto, aquilo e mais aquilo (querem o passe livre, então o Estado tem que dar o passe livre; querem bolsas, então o Estado tem que dar as bolsas, etc., etc., etc.), então que é que o governo está oferecendo, que faça sentido, do ponto de vista da esquerda atual? Sim, faz diferença, claro que faz; mas onde estão os 20 centavos a menos aqui, e os x reais a mais ali?

    A esquerda não se coloca mais a tarefa de edificar a economia socialista, nem de derrubar o Estado, nem sequer de conquistar o poder de Estado para expropriar a burguesia, nem sequer de acabar com o latifúndio (o MST defende, atualmente, a agroecologia, a agricultura familiar, etc.). Bem, sendo assim, já que a esquerda perdeu qualquer veleidade revolucionária, deveria ela, pelo menos, condicionar a luta contra o golpe, se há golpe, à concessão e ampliação do passe livre, das bolsas, das reformas, etc., já que é esta a sua única vocação.

    Vamos agora à questão da articulação entre mobilização nas ruas e golpe, se há de fato golpe: sim, são coisas inseparáveis, mas lutar pelo governo não me parece ser “ao mesmo tempo lutar contra esse fascismo nos ambientes sociais”, sobretudo porque, de certa forma, o governo se beneficiou da emergência da “nação em cólera”, que removeu o conteúdo classista das manifestações de junho de 2013, classismo este que se projetava, ao mesmo tempo, contra as empresas de transporte coletivo, o governo federal e governos estaduais, muitas vezes controlados pelo PSDB. Os “coxinhas” só parecem ter se tornado um incômodo para o governo muito tempo depois.

    Eu não enxergo o momento atual como possibilidade de luta e organização dos trabalhadores nos seus locais de trabalho, etc.; para mim, todo momento, e não apenas o atual, é um momento de luta e organização dos trabalhadores nos seus locais de trabalho, etc. Quer dizer, essa luta deve ser permanente. Isso deve ser feito em todos os momentos.

    Não está em jogo a substituição da democracia pela ditadura, embora o “estado de exceção dirigido” possa ser ampliado, mas não muito além do que o próprio governo faria. Enfim, o golpe, havendo golpe, não agravará muito mais as condições da luta autônoma dos trabalhadores. É por isso que pouco importa. O jogo democrático, com todos os seus defeitos, com toda a sua dimensão, por assim dizer, “autoritária”, permanecerá vigente, mesmo com uma ruptura pontual, não definitiva, com a legalidade.

    Enfim, se parte da esquerda, a parcela mais crítica, já deu adeus a Lenin, está na hora de dar a adeus a Dilma e Lula, reencontrando, no mesmo movimento, o projeto da revolução, contra o capitalismo, mesmo que democrático.

  9. Lucas,

    Observe as ilustrações do artigo: o que devemos fazer é algo como a onda batendo contra a rocha. O que não devemos fazer é surfar em cima da rocha, como se ela fosse onda, pensando que, desse modo, podemos fazer com que a rocha se parta, como nas primeiras ilustrações. A rocha não se parte dessa forma, isto é, quando você deixa de estar na onda, batendo contra a rocha, e pensa poder surfar na rocha, que assume a forma da onda.

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