De fato, o capitalismo de Estado de Lênin, com a adição de uma pitada decorativa de controle operário, estava atrás da luta dos trabalhadores. Por M. R. Jones

Este é o terceiro artigo da série “A experiência dos Comitês de Fábrica na Revolução Russa”. O primeiro texto pode ser lido aqui e o segundo, aqui.

Disciplinando os Trabalhadores

Os bolcheviques dos sindicatos começaram a divergir, e começaram os ataques verbais aos trabalhadores. Para Tomsky, “a produtividade caiu a um ponto tão baixo que os trabalhadores produzem menos que o valor de seu salário”. Gostiev se referia à “sabotagem econômica, já não somente da burguesia, (…) mas da nação inteira, à classe trabalhadora”. [28] Shlyapnikov, o Comissário do Trabalho e futuro líder da chamada “Oposição Obreira”, se queixava acerca dos trabalhadores e comitês de fábrica em março de 1918: “Em poucas palavras, as coisas estão nas mãos de uma multidão que, devido à sua ignorância e sua falta de interesse na produção, literalmente põe freio a todo trabalho”. [29] Frente a estes tipos de comentários e a retenção de salários pelos bancos e patrões, não é de estranhar o que muitos trabalhadores sentiam – por que trabalhar quando os bolcheviques mantêm os velhos donos nos seus postos e defendem a motivação do lucro? Apesar das acusações, a produtividade de fato cresceu firmemente desde o ponto mais baixo de janeiro de 1918. Os trabalhadores ainda tinham a intenção de construir uma sociedade nova, e uma dieta miserável não ia detê-los. Dado o caos em que eles trabalhavam, é pouco surpreendente que muitos comitês de fábrica colocassem seus interesses acima e se concentrassem em resolver seus problemas particulares. As acusações eram de que os comitês eram “paroquiais” e “particularistas”. Os acusadores eram os próprios responsáveis destas tendências, já que o governo não deixaria os comitês obterem crédito: como consequência, os comitês muitas vezes tiveram que vender a maquinaria e seu stock para pagar aos trabalhadores e para manter a atividade da produção.

6O decreto de nacionalização feito em 14 de dezembro de 1917 foi parte do movimento contra a autogestão. As novas juntas tomariam as empresas, e estariam representados nelas a velha direção e o comitê de fábrica. Enquanto os trabalhadores que recorriam à nacionalização, muitas vezes expropriando os donos antes de obter a aprovação “oficial”, pensavam que iriam gerir as empresas, a concepção bolchevique era realmente diferente: em verdade os bolcheviques foram muitas vezes nacionalizadores relutantes. Uma vez nacionalizada, no entanto “(…) as decisões concernentes à direção e à atividade da indústria formam parte da direção. A comissão de controle (do comitê de fábrica) não levará nenhuma parte nesta direção, e não será responsável por seu funcionamento, que permanecerá como uma função administrativa”. [30] As empresas dos Urais foram em sua maioria tomadas pelos trabalhadores e nacionalizadas.

Uma conferência em Petrogrado de 7 de janeiro de 1918 com delegados de 300.000 trabalhadores desenhou um esquema para a nacionalização da indústria de mineração. Cada mina elegeria um conselho diretivo de 25-60 membros, incluindo os representantes do corpo técnico e administrativo: este estabeleceria um Executivo de 3-15. Haveria eleições diretas para os corpos regionais levando a um Conselho Minerador Central. O direito de revogabilidade por parte dos trabalhadores que elegiam um delegado para qualquer conselho a qualquer nível foi exposto claramente, e os sindicatos e os corpos estatais ficaram excluídos. Outra vez podemos ver os intentos construtivos dos trabalhadores para desenvolver estruturas práticas que lhes dessem o controle, contrariamente aos planos do governo. Em sua atitude até o pessoal técnico, os trabalhadores não eram usualmente hostis, ainda que os técnicos quisessem um intenso controle estatal para garantir sua posição e estavam contrários ao controle dos trabalhadores. Muitos, no entanto, estavam dispostos a trabalhar com os comitês, que necessitavam fazer uso de suas habilidades.

Os sindicatos viram que sua tarefa principal era aumentar a produção por meio de um trabalho mais organizado e disciplinado. Estavam ansiosos por ajudar a estabelecer salários por peça, normas e bônus, subir a produtividade e impor a disciplina. Nisto apoiavam a Lênin. Em setembro de 1917 ele pediu “um serviço universal (provavelmente não tão universal no que se refere a se incluir a si mesmo e a outros líderes bolcheviques) de trabalho”; em janeiro de 1918 em um artigo inédito escreveu que “os trabalhadores negligentes e preguiçosos em seu trabalho deveriam ser submetidos à prisão”. Para Lênin só “a marginal intelligentsia pequeno-burguesa (…) não entendeu que a dificuldade primária para o socialismo consiste em garantir a disciplina do trabalho (… )”: a “dificuldade primária” do socialismo parece ser a mesma que a do capitalismo! E a solução de Lênin era a mesma que a do capitalismo:

“Os salários por peça devem entrar na agenda, aplicados na prática e julgados; devemos aplicar muito do que há de científico e progressista no sistema de Taylor (…)” [31]. Lênin, não os trabalhadores, decide o que se põe “na agenda”, mas os trabalhadores, não Lênin, experimentarão os salários por peça.

2Esta atitude se refletiu no Primeiro Congresso Panrusso dos Sindicatos, ocorrido em janeiro de 1918. Os comitês de fábrica foram atacados por não estar organizados, ou disciplinados ou por não serem suficientemente experientes. Os membros do Conselho Central de Comitês de Fábrica não estavam ali para discutir seu caso. O bolchevique Gastev propôs uma resolução que foi aprovada quase por unanimidade, que propunha a reconstrução da Rússia com capital estrangeiro, a implementação do Taylorismo (salários por peça, estudos de tempos e movimentos, etc.), o aumento da produtividade e a disciplina, o movimento dos trabalhadores segundo fora requerido e a manutenção da propriedade privada. Esta proposta foi aprovada em março na 4ª Conferencia de Sindicatos.

Os bolcheviques passaram a bolchevizar os sindicatos pouco bolcheviques quebrando reuniões, estabelecendo sindicatos rivais e nomeando os oficiais desde cima, a fim de que todos os sindicatos adotassem a doutrina capitalista de Gastev. Os protestos dos trabalhadores acerca da falta de independência dos sindicatos frente ao Estado aumentaram na primavera de 1918. Os comitês de fábrica ainda tratavam de ser construtivos. Enquanto respondiam aos ataques caluniosos dos sindicatos, os comitês propunham a unidade com os sindicatos, a fim de não ter duas organizações de trabalhadores em conflito. A proposta colocou condições: deveria haver afiliação obrigatória a fim de que todos os trabalhadores fizessem parte do processo decisório; os comitês de fábrica atuariam como ramificações locais; a cúpula do sindicato seria uma conferência de delegados do comitê de fábrica, que então elegeria um Executivo para atuar como o Conselho Central de Comitês de Fábrica.

Os comitês de fábrica de Petrogrado haviam sido os mais avançados em pensar na economia centralizada desde agosto de 1917 e haviam proposto plano após plano, todos eles proposições práticas, para que os trabalhadores pusessem a funcionar a economia e caminhar até o socialismo. Dada a forma como Lênin ignorou estes intentos, foi toda uma ousadia de sua parte dizer no Terceiro Congresso de Sovietes, em janeiro de 1918, que: “Ao introduzir o controle dos trabalhadores, sabíamos que levaria muito tempo até que ele se consolidasse em toda a Rússia, mas nós buscamos mostrar que reconhecíamos apenas um caminho: que os próprios trabalhadores, desde baixo, formulassem os novos princípios econômicos básicos”. De fato, o capitalismo de Estado de Lênin, com a adição de uma pitada decorativa de controle operário, estava atrás da luta dos trabalhadores. Os trabalhadores tinham seus planos e uma concepção superior do socialismo, nascida da necessidade: despido da retórica, tudo o que Lênin tinha era “Poder para o Partido”.

Não demorou muito para Lênin determinar com precisão o conteúdo capitalista de seu socialismo. Em março de 1918, ele demandou “direção de um homem só” nas ferrovias: para ele, a autogestão coletiva era algo rudimentar, e tinha que ser substituída pela direção de um homem. Em “A Tarefa Real do Poder Soviético”, Lênin escrevia “Qualquer indústria de máquinas de grande escala – e esta é precisamente a fonte produtiva material e a base do socialismo – exige uma unidade incondicional e estrita da vontade que dirige o trabalho simultâneo de centenas e de milhares e dezenas de milhares de pessoas (…) A submissão não qualificada a uma só vontade é necessária para o êxito do processo de trabalho organizado sob o padrão da indústria de máquinas de grande escala”. [32] Não foi explicado por que os trabalhadores deveriam se incomodar em brigar e morrer pela nova sociedade.

4Em 1915 o então menchevique Larin escreveu um artigo entusiasmado sobre o estado de guerra alemão: “A Alemanha contemporânea deu ao mundo um padrão de direção centralizada da economia nacional como uma só máquina funcionando de acordo com um plano”. Lênin tocou neste tema com sua observação de que o socialismo havia sido realizado politicamente na Rússia e economicamente na Alemanha. Em abril de 1918, Lênin exortava “Sim, aprendam com os alemães! A história procede por ziguezagues e caminhos tortuosos. Resulta que é a Alemanha quem agora, ao lado do imperialismo bestial, encarna os princípios da disciplina, da organização, do funcionamento bem fundado junto à base da indústria das máquinas mais modernas, de contabilidade estrita e controle”. Que toda esta disciplina do trabalho poderia ter algo a ver com o “imperialismo bestial” não entrava na mente de Lênin: para ele, o único equívoco do capitalismo de Estado alemão residia em ser ele um Estado imperialista burguês; agreguemos um “Estado proletário” e teremos o socialismo. Os métodos capitalistas de produção só podem criar capitalismo, mas Lênin pensava que poderiam também respaldar o “socialismo”. Para marcar este ponto com firmeza, Lênin se referiu com admiração ao Czar. Os socialistas russos teriam que “estudar o capitalismo de Estado dos alemães, (…) adotá-lo com toda a força possível, não poupar métodos ditatoriais para apressar sua adoção, ainda mais do que Pedro apressou para a adoção do Ocidentalismo pela Rússia bárbara, não evitando usar armas bárbaras para opor-se ao barbarismo”. Para os trabalhadores isso queria dizer mais trabalho e trabalho mais duro, e mais organização (por outros).

O 7º Congresso do Partido em março de 1918 pedia “as medidas mais enérgicas, decisivas, draconianas para aumentar a autodisciplina e a disciplina dos trabalhadores e camponeses”. Milyutin, em uma sessão do Vesenkha (o Conselho Supremo de Economia Nacional), pediu por um “serviço operário” não, é claro, “do tipo que foi aplicado no oeste, não o tipo de serviço que foi pensado aqui pelas massas e que diz que todos devem ser postos a trabalhar, mas o serviço operário como um sistema de disciplina do trabalho e como um sistema de organização do trabalho segundo os interesses da produção”. Não segundo os interesses dos trabalhadores, evidentemente: toda esta “autodisciplina de ferro” era requerida da parte dos trabalhadores. O Vesenkha tinha debaixo de si uma rede de glavki (comitês primários) e tsentry (centros). Estes se baseavam nos comitês de guerra czaristas para a indústria, e funcionavam com ajuda de suas direções. Larin, o admirador do capitalismo alemão, e Milyutin, foram dois dos líderes da Vesenkha, ambos entusiastas planificadores. Ao final de abril, um decreto do Vesenkha tornou ilegal as “arriscadas nacionalizações” [no original: “wildcat nationalizations”, gato selvagem], mas isto, tal como um decreto anterior, de fevereiro, foi amplamente ignorado. Os comitês de fábrica não responderam à “autoridade” do Vesenkha: em sua visão, o Conselho Central de Comitês de Fábrica operava sem nenhuma sanção oficial.

Os chefes Bolcheviques

5Em maio de 1918, quando o Congresso Panrusso de Conselhos de Economia Nacional se reuniu em Moscou havia ali delegados do Vesenkha, de seus glavki e tsentry, e os sindicatos, mas não dos comitês de fábrica. A porta se fechava firmemente para os trabalhadores, conforme os comitês se convertiam em meras ramificações locais de uma burocracia sindical instável. Os sindicatos estavam subordinados ao Estado, segundo o que fora decidido no primeiro Congresso Panrusso de Sindicatos. (Um delegado anarquista descreveu os sindicatos como “cadáveres vivos”; outro disse que os comitês de fábrica eram “as células da nascente ordem social socialista, uma ordem sem poder político”.) Um decreto de 28 de junho de 1918 nacionalizava todas as indústrias principais, convertendo o Estado no patrão principal da Rússia; o trabalho devia ser uma forma de serviço para a sociedade, e os salários por produção eram considerados algo normal. [33] Como as invasões das Potências Aliadas e a guerra civil apenas haviam começado, nada do que havia ocorrido até aqui podia ser atribuído a esses fatores. A aplicação dos salários por peça e as normas de produção queria dizer que se levavam os trabalhadores a uma má saúde para obter um salário de sobrevivência. Ainda em final daquele ano, se fizeram novas normas para toda a indústria porque o Estado considerava que os salários eram “perniciosamente altos”. Em janeiro de 1919, estas normas foram acrescidas em cerca de 150% na indústria metalúrgica.

Estes desenvolvimentos começaram a causar dissensão dentro do Partido bolchevique, mesmo entre aqueles que nunca haviam trabalhado em suas vidas. Kommunist, a publicação dos “Comunistas de Esquerda” continha um ataque a Lênin por Osinsky. Entre outras críticas, Osinsky sustentava a opinião de que “a disciplina” de Lênin era exatamente igual à dos capitalistas; que só os trabalhadores poderiam emancipar a si mesmos; que Lênin confundia as melhoras da produtividade com um funcionamento mais duro e mais rápido, “O socialismo e a organização socialista do trabalho ou são criados pelo próprio proletariado ou não se serão feitas; mas então algo se erigirá em seu lugar, algo chamado capitalismo”. [34] Lênin respondeu, como sempre fazia quando perdia para uma resposta, com um discurso inflamado por abusos e bobagens: por exemplo, as declarações de que a introdução da autoridade capitalista e disciplina laboral eram um ataque à auto-organização dos trabalhadores eram “uma desonra terrível e insinuavam a renúncia completa ao comunismo na prática e completa deserção para o campo da pequena burguesia”.

3Os trabalhadores podiam se impor ocasionalmente contra o crescente monolito de poder estatal bolchevique. Durante 1918 o capitalismo de Estado havia sido estabelecido nas indústrias do couro, têxtil e açúcar baseadas na cooperação entre o Estado e os velhos proprietários. O industrial de extrema direita Mescherskii quis criar um “truste” similar na indústria metal, com as fábricas geridas pelos velhos donos burgueses. Isto estava bem para Lênin e Trotsky, e os oficiais do sindicato de trabalhadores do metal respaldaram o projeto. Os trabalhadores estavam, no entanto, muito contrários a isto. Uma conferência de delegados de plantas afetadas pediu um fim para este esquema, e a nacionalização imediata. Como os bolcheviques não eram ainda o suficientemente fortes para esmagar este tipo de coisas, a pressão desde baixo pôs fim ao projeto.

A guerra civil indubitavelmente intensificou as tendências para o controle central e planificado, envolvendo a direção de um só homem e o uso de especialistas técnicos bem remunerados. A centralização em si mesma não é uma má coisa: a pregunta é, quem faz a centralização, e para que fim? Mais ainda, usar os talentos do pessoal técnico era essencial, mas para qual fim seriam suas habilidades dirigidas? Os camponeses estavam irritados por que os velhos exploradores lhes eram impostos como gerentes das fazendas coletivas Sovkhozy. Os “especialistas” obtinham salários altos, e os gerentes e diretores viviam no luxo das casas dos velhos latifundiários: algumas vezes o mesmo velho latifundiário era o diretor. A mensagem de Lênin para os camponeses era “(…) se vocês mesmos não sabem como organizar a agricultura no novo método, devemos empregar os velhos especialistas”. Enquanto o Lênin de “O Estado e a Revolução” disse “Destruamos o Estado burguês”, o Lênin de “Os bolcheviques poderão manter o poder estatal?” dizia “Usai o Estado burguês, tomai-lo”. Assim Trotsky lançou mão pesadamente do corpo de oficiais czaristas para o Exército Vermelho.

Quando Molotov analisou o pessoal do glavki ele descobriu que 57% não eram trabalhadores; o outro 43% era composto por representantes que incluíam os dos sindicatos, em sua maior parte não trabalhadores. Concluiu em seu informe (dado em dezembro de 1918) que a política da direção era a “dos representantes dos patrões, técnicos e especialistas”. Um professor “branco” informava que no outono 1919 “um visitante desavisado a estes centros e glavkis que esteja pessoalmente familiarizado com o mundo comercial e industrial anterior ficará surpreso ao ver os anteriores donos das grandes fábricas de couro estabelecidos em Glavkozh, os grandes fabricantes na organização têxtil central, etc.”. [35] A vontade de usar a maquinaria estatal czarista se estendeu por decreto ao Sovnarkom (o Conselho de Comissários do Povo) em janeiro de 1920 lamentando que “o velho aparato policial que havia sabido como registrar os cidadãos não só nas cidades, mas também no campo” havia sido destruído pela revolução.

Apesar deste ato destrutivo por parte da revolução, a mobilidade do trabalho ainda era alcançada. Um porta-voz do Narkomtrud (o Comissariado Popular do Trabalho) alardeava: “Nós suprimos trabalho segundo o plano e consequentemente sem ter em conta as peculiaridades individuais ou aptidões ou o desejo do trabalhador para envolver-se nesta ou naquela classe de trabalho”. Ele poderia ter falado de qualquer mercadoria. A política de salários do governo se baseava em incentivos e em trabalho por peça; os salários se repartiam em grupos de escalas, a mais alta era para os trabalhos técnicos e administrativos. No 8º Congresso do Partido em março de 1919, o novo programa declarava que “(…) o método socialista de produção pode ser assegurado apenas na base da disciplina dos trabalhadores”. Aos sindicatos recaiu a tarefa de criar esta nova “disciplina socialista”. Em 1920 as cortes disciplinatórias de trabalho se ocuparam de 945 casos registrados. Cerca da metade destes casos tinha relação com a pontualidade; os demais eram sobre não fazer hora extra aos sábados, não obedecer a ordens ou a disciplina do sindicato, abandonar o trabalho e agitar para uma jornada de trabalho menor. O 9º Congresso do Partido em março de 1920 não só aceitava completamente o princípio de direção de um só homem, mas ainda inventou quatro formas diferentes de instituí-lo.

7A debilidade absoluta da “oposição” emergente dentro do Partido Bolchevique se manifestou em Lutovinov, da “Oposição Operária”, dizendo que cumpriria a gestão de um homem só mesmo que discordasse dela. Primeiro o partido, e muito ao final, os trabalhadores. Em novembro de 1920 só 12% das indústrias nacionalizadas tinham qualquer forma de direção coletiva. 1783 de 2051 grandes empresas sob o Vesenkha tinham a direção de um só homem. Para vencer o absenteísmo e a “ineficiência” o governo havia introduzido livros de trabalho para os trabalhadores em Moscou e Petrogrado (até então só haviam sido emitidos pela velha burguesia, para o trabalho obrigatório). Os sábados comunistas – isto é, trabalhar a troco de nada – foram instituídos por Lênin sob uma entusiástica aprovação. O massivo tempo extra não pago, com os Subbotniks trabalhando aos sábados sem cobrar, e os Voskresniks trabalhando aos domingos sem cobrar, eventualmente colapsou. Os trabalhadores estavam (que inexplicável!) não muito empolgados. Lênin tratou de dar exemplo: ele realmente trabalhou em um “Sábado comunista”, o 1º de maio de 1920.

O outro bolchevique favorito dos últimos tempos, Trotsky, merece algumas poucas palavras sobre este ponto. Em janeiro de 1919 em um Congresso Sindical, ele acentuou que “Em um momento em que os sindicatos regulam os salários e as condições de trabalho, quando a nomeação do Comissário de Trabalho também depende de nosso Congresso, nenhuma greve pode ter lugar na Rússia Soviética. Coloquemos o pingo neste i”. Havendo posto o pingo nesse “i”, ele passou a cruzar o “sto” no ano seguinte, reconhecendo “o direito do Estado dos trabalhadores a enviar a cada homem e a cada mulher trabalhadora ao lugar onde sejam necessários para o cumprimento das tarefas econômicas”; e “o direito do Estado, Estado dos trabalhadores, a castigar ao homem trabalhador ou à mulher que se recuse a executar a ordem do Estado, e que não submeta sua vontade à vontade da classe trabalhadora e a suas tarefas econômicas (…)”. Desnudando a verborragia e retórica, a mensagem de Trotsky para os trabalhadores era: “Nós, os bolcheviques, somos os chefes agora; Vocês, os trabalhadores – de volta ao trabalho!”. A chamada de Trotsky para uma “militarização do trabalho na qual cada trabalhador sente a si mesmo como um soldado do trabalho, que não pode dispor de si mesmo livremente” foi tomada pelo Comitê Central do partido, que só debateu se deveria tomar uma forma “saudável” ou uma “burocrática”.

A Revolução Derrotada

8Nos debates sobre o papel dos sindicatos em um “Estado dos trabalhadores” o partido falava consigo mesmo. As linhas de classe já haviam se traçado com a mutilação dos comitês de fábrica e os Sovietes. Em um lado os partidários de Lênin, os burocratas e o capitalismo de Estado; no outro estavam os trabalhadores (tanto bolcheviques, como os sem partido) e o socialismo. Como Lênin lhes tirou as fábricas ele lhes deu – o direito de greve! Como se a revolução tivesse sido para isso. O esmagamento da rebelião de Kronstadt em março de 1921 consumou a contrarrevolução aberta. Para os trabalhadores, Trotsky não foi o herói do Exército Vermelho, mas o sangrento executor dos soldados e marinheiros de Kronstadt. O fim da guerra civil em fins de 1920 e a introdução da NEP (a Nova Política Econômica, chamada a “Nova Exploração do Proletariado” pela Oposição Operária) conduziram ao desemprego. Conforme as indústrias iam sendo reorganizadas e racionalizadas, os trabalhadores eram despedidos. A fome crescente no campo aguardava a estes trabalhadores nos povos e cidades: sua horrenda pobreza queria dizer que o Estado agora os poderia dirigir sem coerção. Em setembro de 1921 saiu um decreto que afirmava que o sistema salarial era “um fator fundamental no desenvolvimento da indústria, e adicionalmente, de que qualquer pensamento de igualitarismo deve ficar excluído”. Inclusive pensar no socialismo ficava agora fora de cogitação. No 5º Congresso Panrusso de Sindicatos em setembro de 1922 os burocratas alcançaram sua vitória. Decidiu-se que se um trabalhador fracassasse em cumprir uma norma determinada, então seu salário seria reduzido a um terço, e que os trabalhadores poderiam ser expulsos de seu cargo sem compensação se não cumprissem a totalidade de seus contratos. Apesar de tudo isso, houve greves selvagens contra as direções e os sindicatos até julho e agosto de 1923.

Em meados dos anos 1920, os trabalhadores estavam sendo enganados pelo “homem da NEP” e o burocrata, pagando preços elevados e obtendo salários baixos. Os gerentes e patrões estatais os dirigiam selvagemente; não tinham nada a dizer sobre como por as fábricas para funcionar. Os braços locais dos sindicatos e a célula do partido estavam com a direção, os desempregados que esperavam fora mantinham os trabalhadores em seus postos, com seus salários baixos e as condições péssimas. A oposição do partido apelou aos trabalhadores, mas foi ignorada por eles. Os trabalhadores pareciam dizer com seu silêncio: “Está tudo muito bem, mas o que isso tem a ver com a gente?”. [36] Do ponto de vista dos trabalhadores, que significava a “luta” dentro do partido? Não era questão de slogans “corretos” ou ações, mas em especial de quem os dirigia. O partido poderia requerer uma “luta contra a burocracia” e os trabalhadores a poderiam ignorar enquanto, não obstante, odiavam aos burocratas. A luta interna nas cúpulas do partido não tinha nada a ver com o socialismo ou os trabalhadores, mas com o poder, uma imitação da política burguesa. “A luta de Lênin contra a burocracia” não era para que os trabalhadores se liberassem da burocracia, mas antes para criar ainda outro órgão burocrático para vigiar os corpos como ele mesmo.

De modo semelhante, os apelos de Trotsky e os protestos estavam dirigidos ao partido: quando ele se viu finalmente forçado a olhar para os trabalhadores, os quais, sempre haviam sido um mero objeto para ele, ninguém lhe deu a menor atenção. Trotsky não ia contra a burocracia, nem os privilégios ou as desigualdades; apenas queria uma burocracia “melhor”, menos privilégios “exagerados”, menos desigualdades “extremas”. Tudo pelo que ele protestava era uma consequência de um sistema que ele defendeu até sua morte. O Trotskismo não foi outra coisa que um Stalinismo de oposição: ainda hoje o é. Diferentemente de Trotsky, o Grupo dos Trabalhadores atacou todo o regime político e econômico estabelecido por Lênin antes da NEP: farejaram a derrota da revolução em todas as propostas de Lênin. A base de seu programa era o velho, mas ainda válido slogan “A emancipação dos trabalhadores deve ser tarefa dos próprios trabalhadores”. Estavam contra a ditadura de um só partido e a organização burocrática da produção. Para eles, o socialismo era o livre ato criativo dos trabalhadores. Em 1923 produziram um manifesto atacando o “culto ao líder” e conduzindo algumas das greves que tiveram lugar naquele ano.

1O “Dezembrista” Volodya Smirnov foi além do Grupo dos Trabalhadores: “Nunca houve uma revolução proletária, nem uma ditadura do proletariado na Rússia, simplesmente houve uma “revolução popular” desde baixo e uma ditadura desde cima. Lênin não foi nunca um ideólogo do proletariado. Do princípio ao fim ele foi um ideólogo da intelligentsia”. Os trabalhadores da Rússia em 1917 foram além do que Lênin tentou fazer em seu esquema sobre as etapas que a revolução deveria experimentar, então ele os fez recuar. Ele queria que os trabalhadores supervisionassem os capitalistas que ainda tocariam as fábricas – uma política de colaboração de classes. Mas a luta realmente de classes se lutou entre os donos sabotando a economia e os trabalhadores tomando as fábricas. Contrariamente às aspirações socialistas dos comitês de fábrica Lênin e os bolcheviques ofereceram um Capitalismo de Estado. Ao destruir os comitês de fábrica os bolcheviques acabaram com todos os movimentos rumo ao socialismo; para obter seu domínio inquestionável, tiveram que derrotar a classe trabalhadora completamente, e o fizeram. O erro fatal dos comitês de fábrica foi que deixaram a política para os Sovietes e os bolcheviques, concentrando seus esforços na economia.

Na primavera de 1928, um ferroviário iugoslavo que havia estado na Rússia durante a revolução disse: “A situação hoje é muito diferente do que era em meu tempo; o trabalhador manual caiu outra vez preso na armadilha, os burocratas vivem como os burgueses sonhavam viver e suas esposas desempenham seu papel correspondente. O que se necessita é uma nova revolução”. Um trabalhador qualificado comentou: “Vivemos pior agora do que no tempo dos capitalistas. Se tivéssemos que confrontar tal miséria, se nossos salários tivessem sido tão baixos durante os dias de nossos velhos amos, teríamos entrado em greve mil vezes. Mas se pode fazer isso agora?”. Finalmente, o comentário de um trabalhador têxtil, um comunista estrangeiro: “Nunca em minha vida eu vi uma escravidão como a que há em minha fábrica. Se tal coisa existisse em um país burguês, eu teria colocado uma bomba nela há muito tempo”. [37]

Notas

[28] citado por Ferro (Outubro), p.176.
[29] citado por Sirianni, p.106-7.
[30] citado por Ferro (Outubro), p.177.
[31] citado por Carr, p.116.
[32] citado por Carr, p.191 (Carr diz que isso causou “os preconceitos mais teimosos”!)
[33] “O salário por produção (…) é a fonte mais fecunda de cortes salariais e tramoias capitalistas. (…) a forma de pagamento mais em harmonia com o modo de produção capitalista”. O Capital, Volume 1, Karl Marx, p.518, p.521.
[34] citado por Sirianni, p.149.
[35] citado por Carr, p.183.
[36] citado por Ciliga, p.21.
[37] citado por Ciliga, p.280, p.33, p.108-9.

O Panfleto pode ser lido em inglês aqui.
Tradução de Pablo Polese.

16 COMENTÁRIOS

  1. Parabenizo o site e o tradutor pelo texto agora disponível em português, é bem valioso tê-lo mais acessível para o público lusófono.
    Minhas impressões são as seguintes: o texto tem uma dupla natureza, histórica e panfletária. Apenas um especialista em rev. russa poderia traçar maiores comentários sobre a exatidão dos dados, mas o seu principal valor está em jogar luzes em aspectos menos explorados e difundidos dela (e de escasso interesse para a maioria da esquerda classista).
    O panfletismo do texto fica claro nas suas “sombras”, naquilo que ele não diz, e isso se confunde com outra característica, que é a construção “os trabalhadores…” + um verbo de pensamento ou de intencionalidade. O termo assim em sua abstração povoa o texto e não pode senão ser interpretado como o recurso do autor em identificar-se com esse abstrato quase como um narrador onisciente. Se por um lado parece ser uma técnica retórica interessante para enfocar o classismo de sua análise, é justamente assim que se projetam as sombras do texto, como se a entidade “trabalhadores” fosse algo monolítico, contendo apenas alguns elementos bolcheviques por vezes mencionado quase a contra gosto pelo autor. Me parece que seria mais correto substituir “trabalhadores” por “vanguarda dos trabalhadores” em boa parte dos trechos onde aparece. Essa homogenização da massa de trabalhadores parece também servir para acirrar a contradição dos polos “Estado (Lenin)” e “Proletários (Comitês), como se um pequeno partido pudesse magicamente dominar as massas apenas por ser maligno.
    O texto evita falar sobre a recepção que as ideias bolcheviques tinham nas massas, especialmente em meio aos operários, na medida em que a revolução avança em 17. Se mesmo após a experiência da URSS temos tantos setores da esquerda que concebem o socialismo como planejamento e centralização econômica, nas primeiras décadas do séc. XX a associação forte entre progresso das forças produtivas e socialismo era tomado como indissociáveis, nas versões cientificistas bem ao gosto do momento histórico – que hoje pode ser chamada de objetivismo econômico, como se a economia tivesse apenas uma direção na história, do capitalismo em direção ao socialismo. Basta lembrar que boa parte da esquerda bolchevique alguns anos mais tarde aprovaria as coletivizações forçadas stalinistas como um passo em direção à sociedade socialista (ou o Estado proletário), centralizando e planejando o campo, desenvolvendo fortemente a indústria (e quantos militantes classistas hoje em dia não corroboram essa visão?). Os determinantes econômicos eram mais socialismo do que a dignidade e a vida dos camponeses, aspectos secundários na construção da nova sociedade.
    Voltando ao texto, essa mesma homogenização dá a impressão de uma grande clareza “dos trabalhadores”, do que querem, do que esperam da revolução. A democracia radicalizada dos comitês e de todas as instâncias de base erigidas nesse processo (o poder construído, não o “tomado”) encontra algumas contradições que não deixam de surgir em tantas lutas de hoje em dia:

    “O erro fatal dos comitês de fábrica foi que deixaram a política para os Sovietes e os bolcheviques, concentrando seus esforços na economia.”

    Como é possível tomar partido na política, sem deixar de ser essencialmente um espaço de base, um espaço democrático onde não há necessidade de acordos mínimos ideológicos? A radicalidade dos espaços de base é justamente essa, ela congrega os indivíduos enquanto compartilham uma classe, uma coletividade social e economicamente determinada pelo modo de produção, e não uma determinada ideologia. Por outro lado, a ação política (aquela mencionada na citação do texto) é produto de um acordo entre companheiros segundo uma ideologia, segundo uma proposta de futuro, uma forma específica de conceber a atuação política e seus desdobramentos, objetivos, etc. Se não enxergamos a pluralidade de ideologias que habita de forma espontânea na classe trabalhadora o risco é um tipo de idealização dos trabalhadores como se fossem naturalmente tendentes à esta ou aquela forma de interpretar o mundo, como se houvesse um “verdadeiro interesse da classe trabalhadora”, o que nos aproximaria dos argumentos mais usados pelos stalinistas. A existência dessa pluralidade costuma ser bastante negada por vertentes que justamente adoram falar em nome “dos trabalhadores” e que exageram o recurso da identidade entre sua própria ideologia e generalidade dos trabalhadores. É um verdadeiro escamoteio, como se a ideologia e a teoria, e especialmente seu debate aberto, fossem inimigas dos trabalhadores e devessem ser manuseadas às escondidas, disfarçando posições determinadas em nome “da classe”. O texto fala que “os trabalhadores” estiveram à frente dos bolcheviques na rev. russa. Sim, parece ter havido uma vanguarda que sim esteve à frente. Um marxista-leninista poderia dizer então que o que faltou foi que essa vanguarda se tornasse “partido”, que como instância política poderia ter levado a rev. russa mais adiante do que Lenin. Me pergunto se existe alguma forma de realizar um tal “partido”, sem que ele se torne um aparelho gestor, que possa propor sua forma de organização socio-econômica sem se tornar a fonte única de aplicação da nova gestão humana do trabalho; que os espaços de base não se resumam a uma aplicação organizativa (braços dos sindicatos ou transmissão de um partido único), mas que continue sendo um espaço de pluralidade. Como vejo a questão, somado às impressões do e sobre o texto, me parece que se faz necessário, além da massificação e da mobilização dos espaços de base, núcleos ideológicos que possam funcionar como referência para essa mobilização, para poder combater as tendências estatistas e burocratizantes dentro da própria classe.

  2. Dialogando apenas com um pequeno excerto do comentário de Lucas (aspecto provavelmente central de sua fala, base de sua boa reflexão), pergunto: porque motivo quando falamos com grupos que entram em disputa com a visão política bolchevique é necessário todo um micro esquadrinhamento e genealogia das suas posições, ao passo que quanto a estes é permitido tratá-los de forma homogênea enquanto bolcheviques? Não existiram disputas entre estes? A posição de Lênin sempre fora hegemônica no partido? Nunca ninguém foi expulso ou censurado entre os bolcheviques por proclamar ideias divergentes às do grande líder?
    Por outro lado, quando falamos em camponeses neste nível de debate, normalmente ninguém se questiona quais setores camponeses estavam a praticar determinadas ações, se eram a favor desta ou daquela linhagem ideológica, se tinham ideias homogêneas ou não.
    O motivo de fundo é o fato destes agrupamentos constituírem identidades sociais bem definidas, sendo possível do ponto de vista sociológico falar delas em coletivo, depreendendo de sua posição na concertação de classes de interesses coletivos bem definidos. Uns trabalhavam para ganhar a vida nos campos, outros nas fábricas em relações assalariadas, outros eram em sua maioria oriundos de setores médios da intelligentsia russa.
    Embora o que falei anteriormente me pareça bastante claro, em nenhum momento o autor trabalha no nível dos projetos ideológicos da classe trabalhadora. Isto torna o comentário de Lucas injusto com relação ao conjunto propositivo do texto, pois a análise do autor se foca na constituição de organismos que surgiram de maneira mais ou menos espontânea junto à classe trabalhadora e não sobre seus projetos e disputas ideológicas. Eu concordo que seria interessante saber quais ideias estavam ao fundo destas práticas, porém não foi este o objetivo do texto. Na verdade o exercício proposto por Lucas, ainda que em certo sentido interessante, acaba por se constituir como uma reafirmação apressada de ideias que ele mesmo vem defendendo aqui no site há algum tempo.
    Em sentido oposto ao proposto por Lucas, talvez o que eu mais tenha sentido falta neste texto é a relativa ausência de como se deu o processo de instituição do controle bolchevique no interior dos espaços produtivos (com exceção de duas menções rápidas ao taylorismo e a imposição da disciplina capitalista nas fábricas), pouco sendo levantado sobre o papel da militarização do trabalho e que tais. Porém isto implicaria em questões em sentido diverso das levantadas por Lucas, por isso me limitei a questionar uma pequena parte de seu comentário.

  3. As 3 partes do texto são interessante, ao mesmo tempo que é um texto panfletariamente anti-bolchevista, ao mesmo tempo que traz fatos um tanto quanto desconhecidos para as pessoas, mantem na sombra outros que ocorreram lado a lado dos apresentados ou apresenta alguns que de fato aconteceram, mas não exatamente dessa maneira

    Engraçado que o autor apresenta que os bolcheviques apresentaram que era necessario esperar para a revolução de fevereiro dar certo, e coloca como se fosse a coisa mais clara do mundo que estava dado a correlação de forças e a conjuntura politica adequada para isso sem passar por um paragrafo de analise sobre esse ponto, simplesmente porque a historia mostrou assim e para mostrar o quanto os bolcheviques desde principio eram mais recuados e estavam a reboque das massas. Não é coincidencia que o autor passa pela tentativa de revolução de 3 de julho como se ela não tivesse existido, em que os bolcheviques avaliavam que ainda não estavam dadas as condições da revolução e que vão terminar em um banho de sangue em cima do setor mais a esquerda ao governo e com uma recuada temporaria nesse setor e um pedido de prisão para todos os lideres bolcheviques, culpados pelo episodio.
    Isso olhando pro processo russo, fico imaginando o que o autor desse panfleto falaria sobre a semana spartakista ou a ofensiva final do PC alemão durante a revolução alema, que acaba completamente com o processo revolucionario…

    Se pinta os bolcheviques como um partido monolitico construido fora da classe trabalhadora e que a enganou a todos os momentos, uma força sempre mais recuada e mais a direita do que os trabalhadora. Ironico que o autor cita Osinsky para criticar Lenin mas esquece de dizer que a tendencia que vai formar, os Centralistas Democraticos, nos primeiros momentos da revolução estavam responsaveis pelo setor sindical, que com as teses proximas ao que o autor coloca no texto ainda sim ocuparam esse lugar dentro do partido durante algum tempo nos faz pensar qeu ou o partido não era simplesmente expressão monolitica que se tenta construir ou o nucleo dirigente em torno de Lenin foi diabolico ao colocar esses camaradas nesse setor apenas para dar um golpe em cima deles quando tivessem atraido as massas.
    Sobre o partido ser colocado como a parte da classe e constituido principalmente da pequena burguesia, de pessoas vindo da nobreza etc, fica a cargo do autor explicar então as dezenas de milhares a uma centena de milhares de militantes dentro do partido em 17 principalmente proletarios, deixo dois trechos do livro “O partido bolchevique” do Pierre brue (que é uma obra historica interessante como esse livro mas ao mesmo tempo, panfletariamente pró-bolchevique e comete “erros” e “esquecimentos” parecidos a favor do partido)

    “A este respeito, resulta significativo o exemplo da Pravda, já que este diário “operário” constitui, pouco antes da guerra de 1914, a peça chave do desenvolvimento do partido bolchevique. O jornal é lançado depois de uma campanha de agitação nas fábricas destinada a conseguir uma subscrição pública. A Pravda assume então à função desempenhada originariamente pela Iskra para umas centenas de leitores, ao difundir informações e consignas que, desta vez, se dirigem a dezenas de milhares de operários de vanguarda. Os co-responsáveis operários da Pravda são, desta vez, os enlaces do partido e as antenas de que este dispõe para conhecer o estado de ânimo do proletariado: graças a suas informações se produz uma homogeneização da experiência operárias que assenta as bases indispensáveis de uma consciência coletiva. Num só ano, publica 11.114 “informes de co-responsáveis” uma média de 41 por número. A Pravda, é, por definição, um diário operário e, ao estar em grande medida redigido pelos próprios trabalhadores, eles sentem que lhes pertence: eles são os que fazem a maior parte das contribuições que constituem “o fundo de ferro”, criado para fazer frente a todas as multas e seqüestros com que a repressão pode golpear o jornal. ”

    e nesse outro trecho sobre os militantes do partido, que o autor cria uma ficção completa e onde se pode reconhecer nomes de primeiro escalão e da militancia geral da organização

    “Não obstante, o núcleo da organização bolchevique, a “corte de ferro” composta por militantes profissionais, é recrutado entre gente muito jovem, operários ou estudantes, numa época e condições sociais que, certamente, não permitem uma prolongação excessiva da infância, sobretudo nas famílias operárias. Os que renunciam a toda carreira e toda ambição que não seja política e coletiva, são jovens de menos de vinte anos que, de forma definitiva, empreendem uma fusão completa com a luta operária. Mikhail Tomsky, litógrafo que ingressa no partido aos 25 anos, é uma exceção no conjunto, apesar dos anos que passou lutando como independente, pois, de fato, na sua idade, a maioria de seus companheiros levam muitos anos de militância no partido. O estudante Piatakov, pertencente a uma grande família da burguesia ucraniana, se faz bolchevique aos 20 anos, depois de ter militado durante certo tempo nas fileiras dos anarquistas. O estudante Rosenfeld, chamado Kamenev, tem 19 anos quando ingressa no partido, e este é o caso também do metalúrgico Schmidt e do mecânico de precisão Iván Nikitich Smirnov. Aos 18 anos aderem o metalúrgico Bakáiev, os estudantes Bukharin e Krestinsky e o sapateiro Kaganóvich. O empregado Zinóviev e os metalúrgicos Serebriakov e Lutovínov são bolcheviques desde os 17 anos. Svérdlov trabalha de aprendiz de uma farmácia quando começa a militar aos 17 anos, como o estudante Kuibyschev. O sapateiro Drobnis e o estudante Smilgá ingressam no partido aos 15 anos, Piatnitsky aos 14 anos. Todos estes jovens, quando ainda não passaram da adolescência são já velhos militantes e quadros do partido. Svérdlov, aos 17 anos, dirige a organização social-democrata de Sormovo: a policia czarista, ao identifica-lo, lhe pôs o apelido de “guri”. Sokólnikov, aos 18 anos, já é secretário de um dos raios de Moscou. Rikov só tem 24 anos quandp se converte, em Londres, no porta-voz dos komitetchiki e ingressa no comitê central. Quando Zinóviev passa, por sua vez, a fazer parte do comitê central, aos 24 anos, já é conhecido como responsável dos bolcheviques de São Petersburgo e redator do Proletario. Kámenev tem 22 anos quando é enviado como delegado a Londres; Svérdlov só tem 20 quando atende à conferência de Tammerförs. Serebriakov é o organizador e um dos vinte delegados das organizações clandestinas russas que em 1912 acodem a Praga, tem então 24 anos.

    Estes jovens acodem em ondas sucessivas, seguindo o ritmo das greves e dos momentos culminantes do movimento revolucionário – os mais antigos começaram a militar por volta de 1898 e se fizeram bolcheviques a partir de 1903; depois deles veio a geração de 1905 e anos consecutivos; por último, uma terceira avalanche se integra a partir de 1911 e 1912. A vida destes homens se mede por anos de presídio, de ação clandestina, de condenações, deportações e exílios. Piatnitsky, que nasceu em 1882, milita desde 1896. Após ser detido em 1902, foge, se une à organização “iskrista” e mais adiante emigra. Trabalha no estrangeiro até 1905. Volta à Rússia neste mesmo ano, se integra na organização de Odessa até 1906, mais adiante na de Moscou de 1906 a 1908. É detido, consegue de novo evadir-se, vai para a Alemanha e assume ali um importante cargo no aparato técnico até 1913. Durante este tempo aprende o oficio de eletricista. Volta clandestinamente à Rússia em 1913, encontra trabalho numa fábrica e é detido e deportado de novo até 1914. Sem dúvida, há outras biografias ainda mais impressionantes: Sergio Mrachkovsky nasce na prisão onde se encontram seus pais, presos políticos, passa ali sua infância antes de voltar já adulto e desta vez, por vontade própria; Tomsky, em 1917, tem 37 anos e conta com dez anos de prisão ou deportação. Vladimir Miliutin foi detido oito vezes, em cinco ocasiões foi condenado à prisão por duas deportações; Drobnis purgou seis anos de prisão e condenado a morte três vezes.

    A moral destes homens é de uma solidez a toda prova: oferecem o melhor deles mesmos, com a convicção de que só desta forma podem expressar todas as possibilidades que fervem em suas jovens inteligências. Sverdlov, clandestino desde os 19 anos e enviado pelo partido para organizar os operários de Kostroma no Norte, escreve a um amigo: «As vezes adoro Nijni‑Novgorod, mas, em definitivo, estou contente de ter partido, porque ali não teria podido abrir as asas que creio possuir. Em Novgorod aprendi a trabalhar e cheguei aquí com a posse de uma experiência: conto com um amplo campo de ação onde empregar minhas forças”[27]. Preobrazhensky, principal líder do partido ilegal do Ural durante o período de reação, é detido e julgado. Quando Kerensky, seu advogado, tenta negar as acusações que lhe imputam, se põe de pé num salto, o desautoriza, afirma suas convicções e reivindica a responsabilidade de sua ação revolucionária. Naturalmente é condenado: só depois da vitória da revolução o partido descobrirá que este homem, revolucionário profissional desde os 18 anos, é um economista de enorme valia. ”

    Sobre os camponeses, o autor do texto fala sobre a autogestão camponesa mas não apresenta o que acontece com ela no dia a dia depois da revolução, embora ela se mantenha conforme os anos passam até a coletivização forçada nos anos 30 (e restrições consideraveis no controle dos produtos durante a guerra civil).
    Pra onde caminhou então essa “autogestão” feita pelos camponeses de forma tão bonita apresentada pelo texto? Sumiram os camponeses enriquecidos nos campos? (que davam a um custo materiais pra produção para os mais pobres por parte da produção deles, que comprava sua produção para vender mais caro fora da epoca de colheitas, que parte da aldeia ficava em debitos continuamente), aconteceu uma planificação ou mesmo qualquer tentativa de unidade entre todos os camponeses na produção no campo ou a volta ao MIR russo (onde era estruturado toda a vida e divisão de terras em cada aldeia) não conseguiu andar uma palma alem do provincianismo de olhar só para a propria aldeia e que fosse para o inferno o resto dos camponeses em outras aldeias e as cidades? Seguiu acontecendo acumulação capitalista no campo?
    E na mesma questão desse localismo, qual era a posição das comissões de fabrica frente as fabricas? Cada uma delas se considerava dona daquela fabrica que estava localizada ou se viam como toda a classe organizando todas as fabricas de conjunto? Existe uma diferença fundamental entre essas duas concepções dado que na primeira o valor de troca na sua forma capitalista continua necessariamente a existir enquanto na segunda ele pode ou não existir.
    Em uma parte do livro “O controle operario” de Maurice breton aparece as posições adotadas pelos anarquistas (que parecem ser tão adorados pelo autor e que de fato durante alguns momentos parecem ter alguma influencia nas comissões de fabrica) na russia depois de 18 em que uma das tendencias, a unica com essa posição, dentro de um congresso reunindo a grande maioria dos anarquistas na russia expoe que a situação estava tal que para lidar frente a ofensiva bolchevique que estava sendo feito era necessario criar maior centralização e unidade na ação entre os anarquistas, essa tendencia é rechaçada por todas as outras tendencias como sendo anarco-bolchevique e centralista.

    O panfleto conta uma historia, uma historia cheia de sombras onde quer colocar as sombras e detalhes que não detalham exatamente o que aconteceu.
    Ao mesmo tempo que conta essa historia, pouco conhecida e estudada pelos militantes da esquerda, e por isso traz um merito, tambem cria uma mitificação bem grande do processo russo.
    Para aqueles que quiserem ver todos os problemas de forma simplista da revolução russa nos bolcheviques, sem contradições, sem uma construção da classe me torno do partido, sem duvidas quanto a nada e que a classe estava sempre a frente do partido na russia, esse é o texto que se procura.

    Recoloca a velha tese trotskysta nas analises da traição das direções mas agora aplicada a revolução russa, afinal, o partido nunca foi construido pelos trabalhadores, não foi um fruto da sua construção em um momento historico. O partido conseguiu enganar a classe e depois a traiu. Para que então é preciso fazer uma autocritica do processo se ja se sabia onde iria dar?
    Faz uma critica historica interessante aos bolcheviques, mas 0 balanço sobre o que ficou fora da sua orbita, como se todo o resto tivesse em si mesmo os elementos revolucionarios abafados pelo partido.
    Pra qualquer avaliação real do processo russo, sinceridade, autocritica e cuidado são as primeiras coisas a se ter

  4. Sobre o primeiro parágrafo do comentário de Lucas, tenho a dizer que as coletividades podem ficar à mercê de decisões discricionárias de indivíduos e pequenos grupos sim, embora o poder pessoal ou burocrático seja aí resultante de um processo complexo pelo qual entidades coletivas concorrem para a concentração do poder nas mãos de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos. Nesse sentido, não há mágica, mas há manobras de indivíduos e grupos para fazer as coletividades abrirem mão do controle sobre si mesmas. Isso acontece a toda hora e não foi diferente na Revolução Russa. Bem, um dos casos mais emblemáticos de tentativa dos bolcheviques de afirmarem seu poder perante os sovietes e outras formas de organização geradas autonomamente foi o assalto ao Palácio de Inverno e o fechamento da Assembleia Constituinte pela qual pressionavam organismos de base, logo após os bolcheviques terem ficado minoritários na referida assembleia.

    Sobre o segundo parágrafo, tenho a dizer que a não ruptura da sociedade, a incapacidade de romper as relações sociais e edificar uma nova sociedade, leva a que a tecnologia, a organização da produção, e mesmo a interação do homem com a natureza sejam naturalizadas. Foi justamente a intervenção dos bolcheviques freando a constituição de novas relações sociais, em conjunto com uma outra série de fatores, que levou à naturalização da tecnologia, à naturalização do modo como o capitalismo organiza a produção etc. O taylorismo, o fordismo e a doutrina do capitalismo organizado de Rathenau bem serviram às perspectivas nacionalistas e industrializantes dos bolcheviques. O fato é que os bolcheviques concordavam com os mencheviques que a Revolução Russa deveria desenvolver o capitalismo na Rússia, para que só após a consolidação da revolução democrático-burguesa pudessem os trabalhadores realizarem a sua revolução. Se as concepções dos bolcheviques, naturalizadoras do sistema produtivo característico do capitalismo, se difundiram, não foi sem que outras concepções fossem neutralizadas. Para mencionar apenas o segundo maior partido à época, os socialistas revolucionários, cuja facção de esquerda por um tempo aliou-se aos bolcheviques no poder, mas que depois foi empurrada à guerra civil por causa da política dos bolcheviques de requisições forçadas no campo, a perspectiva era a da transição para o comunismo a partir das estruturas sociais comunitárias das aldeias camponesas. Mas qual é a historiografia predominante hoje? A dos bolcheviques ou a dos socialistas revolucionários de esquerda? Será que o fetiche pelo modelo de organização do capitalismo alemão, e também pelas técnicas desenvolvidas por Taylor e também Ford, teria se difundido se tivesse sido outra a história? Ou só porque tais ideias encontraram terreno fértil na classe trabalhadora isso demonstra uma certa legitimidade democrática?

    Sobre a pluralidade na classe trabalhadora, é preciso ter em mente que é uma pluralidade sim, mas que se estrutura em duas direções: ruptura social ou conservação da sociedade, cisão com as outras classes ou oposição às outras classes. Então não basta constatar a pluralidade, sendo preciso encará-la como uma pluralidade estruturada, ou no sentido da gestação de novas relações sociais ou no sentido da conservação das relações vigentes. Nesse sentido, é justamente porque havia pluralidade que os bolcheviques eram capazes de se afirmar perante as bases, de afirmar suas políticas no seio das bases. Isso não significa que os bolcheviques eram o único partido ou núcleo ideológico ali presente, que os trabalhadores que rumavam para a cisão não foram capazes de formular um projeto. Se o texto peca em deixar clara essa pluralidade, Lucas peca em considerar que os trabalhadores que constituíam uma vanguarda, como ele mesmo diz, não se constituíam como “partido” e não operavam também como núcleos ideológicos.

    Sobre o comentário de Arabel, que repete o discurso dos bolcheviques sobre os camponeses “ricos” (os ditos “kulaks”), mas que eram na verdade muito pobres: Arabel deve se esquecer da guerra civil, que foi uma guerra sobretudo contra os camponeses, para forçá-los a obedecerem às requisições forçadas dos Destacamentos de Ferro, e deve se esquecer também que depois da guerra civil os bolcheviques vão estimular a formação de uma classe empresarial nas cidades e nos campos, o que chega à sua expressão mais acabada no estímulo de Bukharin para que os camponeses acumulassem, enriquecessem. Depois que os camponeses mais combativos foram mortos etc. e os bolcheviques instituíram a NEP, buscando restabelecer relações comerciais e diplomáticas com o ocidente capitalista, certamente o universo aldeão igualitário perdeu muito de sua força.
    Arabel se esquece que houve uma guerra e os bolcheviques foram vitoriosos? Que essa guerra começou já em 1918? Que os camponeses não tiveram tempo para desenvolver o comunismo a partir das relações comunitárias no campo?

  5. Complementando as informações do texto acima, indico o trecho abaixo, bem como o resto da obra abaixo referenciada. Enquanto o texto acima mostra o que se deu no plano da produção econômica, o trecho abaixo mostra o que sucedeu no plano da guerra civil e das relações entre partidos:

    “Além dos seus confrontos militares com os brancos, os bolcheviques também tiveram de enfrentar um front atrás de suas próprias linhas por causa do apelo de partidos socialistas rivais e porque as políticas econômicas bolcheviques alienaram grande parte da classe trabalhadora e levaram o campesinato a insurgir-se contra a requisição de grãos e medidas correlatas. Vendo outubro de 1917 como um estágio na revolução democrático-burguesa, o Partido Menchevique se recusou a tomar parte na luta armada contra os bolcheviques, mas viu sua neutralidade difícil de sustentar quando a ameaça branca se intensificou. As concessões políticas e ideológicas do partido aos bolcheviques, contudo, danificaram sua imagem, mesmo seus ideais, assim colocando em risco seu apoio entre os trabalhadores. Adotando políticas de linha-dura contra os críticos mencheviques de direita opostos a uma acomodação com os bolcheviques, o Comitê Central Menchevique dissolveu certas organizações partidárias locais, e expeliu membros de outras. Verdade, alguns SRs de direita experimentaram um período de vida curta de cooperação com os bolcheviques durante a ofensiva branca de 1919, mas na maior parte do tempo eles ameaçaram o governo soviético com a possibilidade de formar um terceiro front compreendendo todos os outros grupos socialistas. Devido à oposição de longo alcance ao poder bolchevique em 1920, mencheviques e SRs acreditaram que os leninistas seriam forçados a incorporar o programa menchevique/SR ou encarar a derrota. Isto os encorajou, bem como aos grupos anarquistas, a iniciar sua agitação contra os bolcheviques no fim do ano. As atividades dos partidos socialistas rivais forneceram o quadro da revolta popular. Estudos recentes enfatizam a vasta dimensão da crise do início de 1921, documentando greves de trabalhadores e rebeliões armadas de camponeses em muitos locais. O descontentamento camponês, que os comunistas chamaram de movimento verde, e a agitação operária de massa convenceram o partido a substituir suas impopulares políticas econômicas conhecidas, em retrospecto, como Comunismo de Guerra – caracterizado por centralização econômica, nacionalização da indústria e da terra e requisições compulsórias de grãos – pela Nova Política Econômica (NEP), que trocou as odiadas requisições de grãos por uma taxa em espécie e restaurou algumas atividades econômicas privadas legais. A necessidade desta mudança de política ficou clara quando, no início de março de 1921, os marinheiros da fortaleza naval de Kronstadt insurgiram-se contra os bolcheviques que eles ajudaram a colocar no poder. Demandando a restauração da democracia soviética sem os comunistas, os marinheiros conheceram uma repressão brutal. Embora muitos historiadores vejam o levante de Kronstadt, os distúrbios operários, o movimento verde e a introdução da NEP como os últimos acontecimentos da guerra civil, depois dos quais o partido varreu os bolsões restantes de oposição nas fronteiras, a fome de 1921 marca a real conclusão do conflito, pois ela ajudou a manter os bolcheviques no poder retirando iniciativa da população. Mantendo amplas faixas do país sob seu domínio até fins de 1923, a fome e epidemias relacionadas tomaram uma estimativa de 5 milhões de vidas; incontáveis mais teriam perecido não fosse a ajuda estrangeira (RALEIGH, Donald J. The Russian civil war, 1917-1922. In: SUNY, Ronald G. (org.). The Cambridge History of Russia. Cambridge: Cambridge University Press, v. 3: The Twentieth Century, 2006, p. 147-148)”.

  6. Fagner, você só comenta sobre o ponto das aldeias, por que não comenta sobre os outros pontos do comentario? Por exemplo sobre o partido bolchevique não ser esse monolitismo que você quer apresentar, que o comentario de Osinsky contra Lenin no texto
    “Entre outras críticas, Osinsky sustentava a opinião de que “a disciplina” de Lênin era exatamente igual à dos capitalistas; que só os trabalhadores poderiam emancipar a si mesmos; que Lênin confundia as melhoras da produtividade com um funcionamento mais duro e mais rápido, “O socialismo e a organização socialista do trabalho ou são criados pelo próprio proletariado ou não se serão feitas; mas então algo se erigirá em seu lugar, algo chamado capitalismo”

    não era só a critica de osinsky, mas de uma tendencia do partido e que essa tendencia não só existia, como teve um peso consideravel, especialmente durante o nono congresso e com apoio de quadros altos, com essas mesmas teses

    Mas sobre os camponeses, não disse em nenhum momento sobre kulaks e sobre camponeses ricos, quando digo “enriquecimento” é uma tendencia colocada dentro da acumulação capitalista para o desenvolvimento de uma pequena burguesia. É facil repetir diversas vezes como eu sou “bolchevique” na formulação e não ter que bater no argumento de frente porque afinal, os bolcheviques criaram um capitalismo na Russia e portanto as posições deles estavam equivocadas de pornto.
    Coloco que o central das relações capitalistas da URSS estava colocado no setor estatal, mas não acho que é nada mais do que querer se enganar que no campo existiam possibilidades politicas da construção de relações sociais novas e que os bolcheviques foram o unico entrave a isso.
    Eu deveria acreditar que uma reforma agraria acaba com as relações capitalistas ou que ela simplesmente equaliza as condições entre toda a pequena burguesia, com o mercado e as relações de valor ditando que vai acontecer um processo de concentração de capital novamente?

    Você fala de relações comunitarias mas não diz, concretamente, como funcionavam essas relações ou apontavam elas antes dos bolcheviques serem vitoriosos, derrotarem elas ou corromperem elas
    Como funcionava a questão da propriedade, como funcionava a relação com o produto do trabalho, qual era a relação estabelecida entre cada uma das aldeias, qual era o aspecto da socialização do trabalho?
    Que eu saiba, o MIR russo é o central da politica agraria camponesa e não consigo ver nesse mesmo MIR elementos que apontassem para relações sociais novas (ou você poderia explicar como o sistema de divisão de terras dentro de cada aldeia apontava para isso, ou a apropriação por cada familia da sua produção unica apontava para isso, e não pra concentração de capital).

    Fico a espera de você me dizer concretamente quais tendencias, concretamente, estavam colocadas no campo para o comunismo porque o que eu conheço de toda essa experiencia não tem absolutamente nada apontado para isso, assim como não o tinham os outros setores da economia a partir de 18-19

  7. Os contendores fariam bem em compreender as condições que colocaram em campos opostos Alexander Chayanov e Josef Stalin. Evidentemente, o destino do primeiro é previsível. Mas talvez seja pedir demais.

  8. E, é claro, faltou dizer, além das condições sociais que legitimaram e tornaram defensáveis suas teses, o que aconteceu com Ossinsky e seus companheiros de tendência depois do 9º e do 10º congressos do partido bolchevique.

  9. Rodrigo Araújo,
    você diz que ” a análise do autor se foca na constituição de organismos que surgiram de maneira mais ou menos espontânea junto à classe trabalhadora e não sobre seus projetos e disputas ideológicas”. Nem tanto.
    O texto é muito posterior à revolução, e não é uma peça historiográfica rigorosa. Seu propósito é justamente a difusão de eventos pouco comentados da revolução, além de pequenos balanços e avaliações sobre as dinâmicas da mesma a partir de um ponto de vista ideológico determinado.
    É o autor mesmo quem fecha o texto com a citação que eu copiei, e que do meu ponto de vista é o que ele tem de mais valioso como reflexão, tendo repassado a história dos comitês:

    “O erro fatal dos comitês de fábrica foi que deixaram a política para os Sovietes e os bolcheviques, concentrando seus esforços na economia.”

    Se o autor não comentou projetos e disputas ideológicas destes organismos, é porque sua inexistência está intimamente relacionada com o fracasso destes organismos. Ou algo parecido a isso.

    Fagner,
    Entre aqueles do grupo que quer a ruptura social, não haverá nenhuma discordância?
    Sobre que os comitês fossem núcleos ideológicos, eu teria uma tendência a pensar desta forma também. No entanto, o autor do texto parece apontar na posição contrária, ao dizer que os comitês deixaram a política para os Soviets e para os bolcheviques.

    Eu certamente não pretendo fazer maiores análises sobre a Rússia, claramente existem pessoas mais preparadas para isso frequentando esse site. Meu interesse mesmo era pelo texto, entendê-lo em sua proposta e extrair dele o que havia de mais valioso, que acredito ser esse balanço da experiência, esse nó entre espaços de democracia direta e as direções políticas que os processos revolucionários têm.

  10. Arabel,

    As lutas dos camponeses são descritas por exemplo numa obra de Trotsky dedicada à revolução de 1905, sendo aí classificadas conforme três regiões diferentes e quatro modalidades de luta: 1) tomada das terras e expulsão dos latifundiários, incluindo a destruição das sedes das propriedades para impedir o retorno dos proprietários, forma de luta praticada sobretudo na região central do país; 2) tomada de grãos e do gado, além da exploração das florestas, forma de luta praticada sobretudo ao norte; 3) greves e boicotes, forma de luta voltada para a redução de aluguéis e o aumento de salários e praticada sobretudo ao sul; 4) recusa em pagar taxas, débitos e em fornecer recrutas, praticados em toda parte.

    Trotsky relata que em certos lugares os camponeses anunciavam para os latifundiários que levariam embora a ração necessária para alimentar seus rebanhos, explicando que aqueles que tinham mais deviam compartilhar com aqueles que tinham menos. Noutras ocasiões os camponeses se dirigiam para onde estavam estocados os grãos, em estações de trem ou fazendas, anunciando que por decisão coletiva os grãos seriam por eles levados. Trotsky relata que em certos casos os camponeses passavam de fazenda em fazenda tomando aquilo de que necessitavam. Mas nos casos mais violentos os camponeses expulsavam os proprietários, todos os bens móveis eram compartilhados, o gado era levado e as casas dos proprietários eram incendiadas. E Trotsky escreve que “tendo destruído toda a propriedade, os camponeses redigiriam um ‘veredito’ declarando que a partir da primavera seguinte as terras passariam para a comunidade camponesa. […] comitês locais de camponeses ou ‘irmandades’ eram encarregados de dividir os bens expropriados”. E a certa altura os camponeses começaram a organizar também congressos, o que segundo Trotsky caminhava lado a lado com a agitação de partidos políticos que clamavam pela abolição da propriedade privada e pela introdução da representação popular. Bem, isso tudo vai muito na contramão de uma classe de pequenos proprietários rurais com motivações capitalistas. Os trecho acima foram retirados do capítulo 17 de “1905”, obra de Trotsky disponível aqui: https://www.marxists.org/archive/trotsky/1907/1905/ch17.htm.

    S. A. Smith, na obra já citada no meu comentário anterior, The Cambridge History of Russia, escreve que em 1917 “no interior a revolução varreu para longe os capitães da terra, os anciãos dos municípios e os policiais dos vilarejos e os substituiu por comitês eleitos por camponeses. Em julho estes eram onipresentes […]. A revolução assim reduziu substancialmente o grau de interferência na vida aldeã por autoridades externas e depois de outubro os camponeses associaram este grau sem precedentes de autogoverno ao poder soviético”. E o mesmo autor escreve que os “camponeses se autoproclamaram cidadãos livres e mostraram uma familiaridade rudimentar com noções como constituição, república democrática, direitos civis e políticos. Embora para eles, como para as classes inferiores em geral, democracia envolvia principalmente resolver seus prementes problemas socioeconômicos e apenas secundariamente questões legais e de representação política (cf. SMITH, S. A. The Revolutions of 1917–1918. In: SUNY, Ronald G. (org.). The Cambridge History of Russia. Cambridge: Cambridge University Press, v. 3: The Twentieth Century, 2006, p. 117-120)”. Ou seja, os camponeses em 1917 voltaram a ocupar as terras e a substituir as autoridades por comitês eleitos por eles mesmos.

    E Daniel Aarão Reis Filho, numa obra excelente sobre a Revolução Russa, escreve que em 1917 “os camponeses retomaram o programa de 1905. Queriam terra, toda a terra. Que fosse concedida aos que a trabalhavam, sob controle dos comitês agrários, em vias de constituição desde março. Parecia disseminar-se a consciência de que, afinal, chegara o tempo da utopia: uma grande e equitativa distribuição da terra (REIS FILHO, Daniel A. Uma Revolução Perdida: a história do socialismo soviético. São Paulo: Perseu Abramo, 2007, p. 62)”. O mesmo autor escreve mais à frente que “uma onda avassaladora do movimento camponês […] realizou a revolução agrária na prática. O galo vermelho, mais uma vez, cantou forte: as terras dos proprietários […], da Igreja e as propriedades particulares em geral, até mesmo dos pequenos e médios proprietários, foram expropriadas. […] O velho sonho igualitarista do camponês russo, afinal, realizava-se. A terra fora nacionalizada, subtraída ao mercado, não poderia mais ser objeto de compra e venda. Pertencia agora a todos os que nela trabalhavam, e somente a eles. E deveria ser igualitariamente distribuída, segundo parâmetros fixados unicamente por cada comitê agrário, e não mais pelo governo ou pelos homens da cidade. Além disso, ficava proibido o trabalho assalariado. Cada camponês usaria as próprias mãos e seus instrumentos de trabalho, podendo contar, no máximo, com a ajuda da família (obra citada, p. 70)”.

    Agora vamos às outras questões. O Partido Bolchevique realmente não era monolítico. Talvez você conheça Aleksandr Bogdanov, que segundo Jutta Scherrer foi ao lado de Plekhanov “de longe o escritor mais produtivo e mais popular da socialdemocracia russa (SCHERRER, Jutta. Bogdanov e Lenin: o bolchevismo na encruzilhada. In: HOBSBAWM, Eric J. História do Marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, v. 3: O marxismo na época da Segunda Internacional (segunda parte), 1984, p. 189)”. Bogdanov, que disputou a facção bolchevique da socialdemocracia com Lenin, teria escrito mais tarde que “no âmbito da luta de classe, os trabalhadores são um partido autônomo” e que o único obstáculo para o comportamento do proletariado como partido autônomo é a subordinação passiva, a confiança cega na autoridade, a fé acrítica nos chefes e a falta de iniciativa (obra citada, p. 226). Em 1907 Bogdanov e Lenin teriam se desentendido, o primeiro defendendo o boicote à terceira Duma que então se formava e a preparação para uma revolta armada, o segundo defendendo a utilização da tribuna da nova Duma para a propaganda do socialismo. O conflito se arrastou por 1908 e Lenin finalmente conseguiu afastar Bogdanov da direção do partido em 1909, recorrendo a manobras autoritárias. Segundo Scherrer o grupo de Bogdanov defendia uma versão “antiautoritária” do marxismo e a concepção de que o conhecimento se baseia unicamente na experiência (conferir na obra citada as páginas 193 e 194). Bem, esse é um exemplo de pluralidade dentro do bolchevismo, posterior à revolução de 1905 e anterior à revolução de 1917. Depois da revolução de 1917 houve várias oposições, entre elas a Oposição Operária, sobre a qual escreveu Alexandra Kollontai. A questão portanto não é que não havia pluralidade no bolchevismo. A questão é que Lenin e depois Stalin conseguiram por meio da máquina partidária neutralizar as tendências antiburocráticas, como a que representava Kollontai. Restaram as tendências burocráticas numa luta fratricida, pois tanto Trotsky quanto os demais participantes das oposições ao stalinismo já depois da morte de Lenin haviam sancionado medidas burocráticas de supressão de vozes discordantes. A tendência de Bogdanov foi neutralizada já em 1909, mas outras tendências foram neutralizadas posteriormente. Se o texto que estamos comentando não aborda toda essa complexidade interna ao bolchevismo, ele por outro lado não está errado em atribuir a Lenin e à direção que se foi consolidando no partido características burocráticas, centralistas, capitalistas.

    Mas vamos ao caso que você menciona, do levante de julho de 1917, no qual tomaram parte membros do partido bolchevique. Você sabia que a direção do partido, Lenin à frente, só se pronunciou favoravelmente ao levante quando ele já era um fato consumado? E que nesse momento Lenin e a direção do partido tentaram a contragosto liderar um levante organizado previamente desde a base? Bem, é o que afirma S. A. Smith na obra acima mencionada, quando escreve que “a ofensiva [de julho de 1917] foi um fiasco e levou a aproximadamente 150.000 baixas e um número maior de deserções. Na sua esteira o exército russo se esfacelou conforme os soldados se desiludiam em ver um fim ao massacre, ficou mais furioso com o desigual peso do sacrifício e resolveu colocar as mãos nas propriedades da nobreza. Os SRs de esquerda e os bolcheviques – cujo apoio estava agora crescendo – viram suas denúncias da guerra caindo sobre ouvidos receptivos. A 3 de julho os ministros cadetes se demitiram do governo […]. Às 2 a.m., 60.000 a 70.000 soldados armados e trabalhadores cercaram o Palácio Tauride em Petrogrado para exigir que o Comitê Central Executivo dos Sovietes […] tomasse o poder. […] Embora organizações bolcheviques de baixo escalão estivessem envolvidas no protesto, os líderes do partido consideraram esta tentativa de levante prematura. Quanto mais soldados e trabalhadores vinham para as ruas, contudo, eles decidiram liderar o movimento. No dia seguinte, uma semi-insurreição estava a caminho (obra citada, p. 125-126)”. Ou seja, a tentativa de insurreição aconteceria com ou sem os bolcheviques, já que era estimulada pelo fracasso da ofensiva de julho de 1917, e começou sem o endosso da direção do partido, que decidiu tentar liderar o movimento conforme mais e mais trabalhadores e soldados (leia-se camponeses fardados) vinham para as ruas e se insurgiam. Se membros de baixo escalão do partido percebiam naquela onda de soldados que vinham do campo de batalha, e naquela onda de trabalhadores fartos com a ordem social estabelecida, um potencial revolucionário, a opinião da direção bolchevique era bem diferente.

    Nisso a direção bolchevique concordava com o Comitê Central Executivo dos Sovietes, que qualificou o levante como contrarrevolucionário (obra citada, p. 126). O problema é que o referido comitê ao mesmo tempo acusou os bolcheviques de tentarem “‘ditar com baionetas’ a política dos sovietes (obra citada, p. 126)”. Isso se deve ao fato de que no Primeiro Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia 285 delegados eram SRs e 248 eram mencheviques, contra apenas 105 bolcheviques. Entre os SRs havia uma tendência liderada por Chernov, majoritária, que aprovava um governo de coalizão com a burguesia; entre os mencheviques havia uma tendência liderada por Tsereteli, que também defendia uma coalizão; e entre os bolcheviques Kamenev e Stalin defendiam também um apoio restrito à coalizão. Logo, as posições conciliadoras reverberavam nos sovietes e daí no referido comitê (conferir a obra citada).

    A própria bandeira dos bolcheviques após o retorno de Lenin, “todo o poder aos sovietes”, era segundo S. A. Smith vista pela maior parte dos bolcheviques como uma ruptura da aliança com a burguesia e a formação de um governo socialista composto por todos os partidos representados no Comitê Central Executivo dos Sovietes, pelo menos enquanto a Assembleia Constituinte não era convocada (obra citada, p. 134). Talvez isso explique porque Lenin e a direção do partido pensassem que não era o momento para uma insurreição demandando a tomada do poder por aquele comitê, já que nesse comitê Lenin e seus companheiros não gozavam ainda da maioria. Ele era naquele momento controlado por pessoas que acusavam Lenin e os bolcheviques de incitarem a insurreição e de serem por isso contrarrevolucionários. Tudo indica que Lenin esperava primeiro acumular forças no interior do comitê, para depois forçar a transferência do poder para o comitê.

    O desfecho já conhecemos: Trotsky, enquanto presidente do Soviete de Petrogrado, mobiliza o Comitê Militar-Revolucionário e derruba o Governo Provisório às vésperas do Segundo Congresso dos Sovietes, que contou com protestos dos mencheviques e dos SRs quanto à derrubada do governo mas aprovou a formação de um Conselho dos Comissários do Povo, tendo à frente Lenin (conferir as obras citadas acima). Mesmo assim, segundo Daniel Aarão Reis Filho Lenin teve dificuldades em se fazer reconhecer chefe do novo governo, e em suas intervenções no congresso camponês de dezembro de 1917 Lenin foi recebido como delegado da fração bolchevique no congresso, não como chefe no Conselho de Comissários do Povo (obra citada, p. 71-72).

  11. Lucas, eu acho que devemos debater então o que é funcionar como núcleo ideológico. Quando o texto acima faz referência a uma conferência com presença de centenas de milhares de trabalhadores planejando uma atividade produtiva e elegendo delegados revogáveis, isso para mim é a mais pura expressão ideológica das práticas desenvolvidas pela base contra a direção imposta de cima. Para mim ideologia não é escrever livros, é expressar uma realidade institucional. A realidade institucional que esses trabalhadores estavam a expressar ideologicamente era a da construção do socialismo pela base e com autonomia, enquanto que a realidade institucional que os dirigentes bolcheviques estavam a expressar era da planificação econômica desenvolvida pelo Império Alemão. Além do mais, não concordo com essa separação entre economia e política. A gestão que esses trabalhadores tentavam impor à economia era fundamentalmente política, pois chocava-se diretamente com as tentativas também políticas dos bolcheviques de planificar a economia conforme o modelo alemão. Talvez a maior deficiência desses trabalhadores tenha sido a incapacidade de iniciar uma guerra civil contra os bolcheviques, que se afirmavam como novos patrões, a incapacidade de derrubá-los, de destruir de uma vez por todas o Estado russo, de eliminar uma política que tenta se colocar acima da produção econômica subordinando-a. Mas essa deficiência se explica: era uma ditadura. Enfim, a conferência acima mencionada produziu resoluções? Em caso afirmativo não são elas também ideologia? Os planos dos comitês de fábrica mencionados no texto acima também não são ideologia? Tudo isso também não é política?

  12. “os camponeses retomaram o programa de 1905. Queriam terra, toda a terra. Que fosse concedida aos que a trabalhavam, sob controle dos comitês agrários, em vias de constituição desde março. Parecia disseminar-se a consciência de que, afinal, chegara o tempo da utopia: uma grande e equitativa distribuição da terra (REIS FILHO, Daniel A. Uma Revolução Perdida: a história do socialismo soviético. São Paulo: Perseu Abramo, 2007, p. 62)”. O mesmo autor escreve mais à frente que “uma onda avassaladora do movimento camponês […] realizou a revolução agrária na prática. O galo vermelho, mais uma vez, cantou forte: as terras dos proprietários […], da Igreja e as propriedades particulares em geral, até mesmo dos pequenos e médios proprietários, foram expropriadas. […] O velho sonho igualitarista do camponês russo, afinal, realizava-se. A terra fora nacionalizada, subtraída ao mercado, não poderia mais ser objeto de compra e venda. Pertencia agora a todos os que nela trabalhavam, e somente a eles. E deveria ser igualitariamente distribuída, segundo parâmetros fixados unicamente por cada comitê agrário, e não mais pelo governo ou pelos homens da cidade. Além disso, ficava proibido o trabalho assalariado. Cada camponês usaria as próprias mãos e seus instrumentos de trabalho, podendo contar, no máximo, com a ajuda da família (obra citada, p. 70)”.

    Dizer que a terra foi nacionalizada continua sendo uma abstração em algum nivel se não se diz concretamente como ela era administrada e tocada localmente, como dizer que a estatização da propriedade significa que ela passa a ser dos trabalhadores, a questão é da analise das relações sociais de produção e não simplesmente dos decretos genericos acima deles.

    Quem definia as redistribuições periodicas (a distribuição de terras não era fixa depois de feita pela primeira vez) da terra eram o conselho de cada MIR (o conselho de cada aldeia) que distribuia entre as familias da aldeia todas as terras cultivaveis (ja depois das expropriações) que estavam até os limites das aldeias
    As distribuições eram feitas em torno geralmente de criterios de tamanho da familia e de capacidade de cultivo das familias. A distribuição da terra não significava tambem a distribuição de outros meios de produção pra alem da terra (então ja estavam colocado familias que tendo os outros meios de produção, recebiam mais terras nas redistribuições das que não), com essa não distribuição de outros meios de produção no campo se recoloca o aluguel desses instrumentos por partes das colheitas das familias mais pobres
    O cultivo era familiar e não socializado para alem disso e a apropriação da produção era feita tambem por cada familia.
    Fora das epocas de requisição forçada, as familias mais pobres tinham que vender todo seu produto nas epocas de colheita para pagar os debitos frente ao governo e o emprestimo de outros meios de produção de outros membros do MIR, as familias mais abastadas tendiam a comprar a produção das mais pobres esperando o inverno se aproximar e os preços subirem.
    Não existia uma relação de planificação e produção conjunta entre os MIRs e essa relação ja era fraca entre as familias, o que mediava essa relação entre os MIRs era o mercado pela venda das colheitas, com uma tradição de autonomia completa entre cada MIR existente.
    O trabalho assalariado foi abolido mas não eram raros os casos, nas familias mais abastadas, de adoções de crianças e jovens simplesmente para aumentar a força de trabalho das familias (sem a integração real dentro do nucleo familiar), alem de todos os problemas que se colocavam em certas relações individuais devido ao carater do MIR ser completamente em torno das familias (por exemplo o caso de relacionamentos de gravidez seguida de abandono pelo homen, uma pensão tinha que ser paga durante um certo tempo, mas não existir apropriação individual fazia com que as familias relutassem e resistissem em dar parte de sua renda devido as ações de um individuo da familia, assim como a pensão ter que ser continua mas os rendimentos dessa forma economica, por serem mediados pelo mercado em torno da colheita, acontecerem sazonalmente e não de forma continua. Ficava então o problema, vender os meios de produção ou outros bens da familia para pagar essa pensão e piorar muito a situação da familia a medio-longo prazo, vender ou matar os raros casos em que havia gado que arava a terra e dava outros meios de sustentação para pagar uma pensão)

    Se você ve grandes ligações entre essas relações sociais de produção e formas comunistas de produção, ficaria grato se indicasse onde. Tambem se indicasse como essas relações sociais de produção não geram a uma tendencia de acumulação por um setor das familias camponesas.

  13. Concordando contigo, Fagner, que essas formas de organização expressavam uma forma ideológica de controle pelas bases, ainda assim eu não posso ignorar a opinião do autor do texto, alguém que certamente estudou o tema e tirou esse balanço. O que você acha então que ele quis dizer quando diz que os comitês se focaram na economia e se abstiveram de fazer política?
    A tua pergunta eu acho que é muito boa: como funcionar como núcleo ideológico. Eu acho que, como continuação dos debates surgidos do outro texto que provavelmente animaram o Pablo a publicar essa tradução, analisar as incapacidades deste núcleo ideológico (se podemos considerá-lo assim) é mais valioso do que partir da premissa de que seu fracasso se deu exclusivamente devido ao poder bolchevique [que também se parece ao discurso stalinista de que a culpa é sempre da CIA e não das formas próprias do comunismo histórico].

    Quanto à guerra civil dos comitês contra os bolcheviques, que ocorre com aqueles operários que estão contra o conflito aberto? Serão expulsos da fábrica, expulsos dos comitês, proibidos de participar? Acaba aqui o espaço de base e surge uma nova organização insurrecionalista. A que preço? Me parece extremamente prejudicial a tendência de alguns companheiros libertários em tentar transformar espaços de base em partidos próprios dos “sem partido”.

  14. Arabel,

    Você pegou apenas o trecho do meu comentário que cita a obra do Daniel Aarão Reis Filho. As outras obras a que fiz referência também mencionam superficialmente como a terra expropriada era sujeita ao controle da comunidade: através dos comitês agrários. Mas já que você traz novas informações para o debate sobre o funcionamento do Mir, gostaria de saber que obras você indica a respeito. E também seria interessante situar essas informações no tempo e no espaço, sobretudo no tempo, mencionando ano, década etc. Como não disponho de uma leitura aprofundada sobre o Mir, não posso fazer qualquer comentário a respeito das características que você lhe atribui. Apenas afirmo que levando em conta os estudos que citei acima, que fazem referência à propriedade coletiva da terra e ao seu controle por comitês eleitos pelos próprios camponeses, isso me parece muito mais próximo do comunismo que o modelo estatizado e centralmente planejado instituído pelo stalinismo, e também me parece muito mais próximo do comunismo que os apelos de Bukharin para que os camponeses acumulassem capitalisticamente, o que era na verdade um desdobramento possível da NEP leninista. Fico aguardando as indicações de leitura.

    Lucas,

    Imagino que o autor se referia aos trabalhadores nos comitês de fábrica não terem disputado os sovietes aos bolcheviques. É preciso ter em mente que os sovietes não foram abolidos quando a ditadura bolchevique se instalou. Pelo contrário, os sovietes foram incorporados ao novo Estado e transformados em transmissores de ordens vindas do alto (sobre essa transformação do papel dos sovietes, posso remeter à mesma obra de Daniel Aarão Reis Filho, página 75). Note-se: os sovietes eram uma espécie de parlamento pluripartidário disputado por diversos partidos de esquerda até que os bolcheviques instituíram um regime de partido único. Seja como for, entendo porque os trabalhadores que confrontavam as orientações dos bolcheviques no plano da economia acabaram deixando de disputar tais espaços, se é realmente isso o que quis dizer o autor, já que em momentos de polarização social as diferentes classes vivem mais ou menos apartadas, deixando de frequentar os mesmos espaços. Na medida em que os bolcheviques se afirmavam como gestores, seria natural que os trabalhadores deixassem de frequentar os espaços por eles hegemonizados, sobretudo se pretendiam desenvolver práticas completamente antagônicas e inconciliáveis (é pela mesma razão que hoje uma parcela da esquerda se recusa a disputar eleições para disputar o parlamento). Quando me referi a uma guerra contra os bolcheviques, é preciso ter em mente que tal guerra já estava sendo travada na verdade, de modo que talvez a deficiência desse movimento dos comitês de fábrica tenha sido justamente a de não abrir uma nova frente de batalha. Quanto aos trabalhadores que não se colocam em conflito aberto, não sei dizer: não sei dizer nem se você está tratando da Revolução Russa e da guerra civil ou da atualidade. Seja como for, na luta as pessoas têm que assumir um lado, não é mesmo? A luta não pode ficar à espera de quem fica em cima do muro e/ou faz jogo duplo, não é mesmo?

  15. Obras pra olhar isso são “Luta de classes na URSS 17-23” de charles bethelleim, “Mulher, estado e revolução” de Wendy Goldman sobre a superestrutura na URSS e suas relações com a estrutura, “O partido bolchevique” do pierre brué, alem disso da pra pegar os textos da Rosa de critica do processo Russo depois que ele estora em 17, nesses textos ela bate em 2 coisas bastante, na posição mantida por lenin e pela URSS de “autodeterminação dos povos” (que pra ela significava que a burguesia de cada pais tinham direito de ser determinada pela sua propria burguesia dado que elas ainda se mantinham no poder nos outros paises) e sobre a reforma agraria/adoção do programa social-revolucionario de esquerda e não coletivização da terra como um passo atras rumo a socialização de toda a produção agraria(que ela vai colocar que era uma medida necessaria no contexto russo mas não por isso boa por si mesma) mas imagino que tem muito mais lugar pra ir ler sobre esse funcionamento, imagino que mario pedrosa, vito letizia tem textos dedicados mais diretamente sobre o campo na URSS dado que pesam na sua analise da URSS as relações de capitalismo no campo.
    Durante épocas do comunismo primitivo como Engels coloca no “historia da familia, propriedade privada e Estado” a terra era controlada pelo comite da aldeia e não era propriedade individual mas seguia a mesma lógica defendida la, ela era redistribuida sazonalmente entre as familias, assim tambem é o modelo que é tentado retomar pela tradição russa agraria em oposição ao feudalismo e capitalismos mais modernos.

    Sobre outros pontos nos trechos que você colocou, acho que o determinante são as relações sociais de produção da vida e não qualquer relação social, nesse sentido as lutas travadas pelos camponeses traz pequenos elementos sobre possibilidades (e seria possivel outros setores fazerem lutas parecidas rumando para outras relações sociais de produção) mas o determinante é olhar para as relações sociais de produção implementadas a partir do momento que tomam a terra durante 1917

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