Humilhar, atacar, julgar eis as palavras vãs que ele ia dispondo como cartas organizadas num tabuleiro que ele dispunha para ser o vencedor. Por Helo

A 2ª carta de Arthur a Helo pode ser lida aqui.

São Paulo, 15 de abril de 2016.

Meu amor,

Quando você me envia essas cartas, desaba na minha cabeça tanta coisa que me perco. Suas cartas por vezes fendem meu coração. Tu me escreves: “fiquei feliz que manifestasse saudades de mim”. Não compreendo o que quer dizer, mas não nego que tenho vontade, lendo essas palavras, de me atirar no seu colo.

Não devia, porém, lhe dizer isso. Nosso amor é gozado. É estranho e envelhece. Pode um dia morrer sem ter de fato uma vivência mais cabível? Eis um pensamento insuportável. É fato que fiquei contente em deixar nossa aldeia, mas triste de não poder mais me encontrar escondida contigo. Nossas oficinas e ensaios eram tão pecaminosos.

Não acredito que tenha ficado com Carla! Eu me vejo entre uma alegria perdida e uma tristeza curiosa, ambas causadas por um tiquinho de ciúmes em acreditar, inocentemente, que era a sua única, ilibada e rara amante. De padre, sempre acreditei que você tivesse muito, mas essa notícia começa e me demover dessa ideia.

Você tocou muito por cima de como se encontra seu livro. Tenho certeza que as pessoas o adorarão. Insisto em que o publique, mesmo tendo exposto ele no site daquele coletivo. Quem gosta daquele tipo de literatura irá comprar o livro independente dele já estar na internet. Fiquei iluminada pela sua discussão sobre Meister e concordo sobre sua reflexão sobre o tempo.

É preciso lembrar, no entanto, de que muitos problemas sérios precisam ser enfrentados para que a gente consiga avançar na discussão. Problemas teóricos que incidem na prática cotidiana.

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Aqui na cidade universitária encontro doentes, barulho, ocupações que me fazem esquecer nosso idílio. Tenho que te contar uma fofoca arretada e séria. Irás ficar boquiaberto e as laudas dessa carta não darão conta de transmitir aquilo que não se pode por palavras.

Se lembra do Vinicius? Desde o ano passado não o tinha revisto depois daquele escândalo cabeludo que, infelizmente, todos nós nos envolvemos. Lembra-se que quando cheguei no apartamento dele, lá na Vila Mariana, Fernanda — sua companheira — esperava-me na porta? Lembra-se também que ela chorou convulsivamente e me disse que ele havia tido um impulso violento e quase a agrediu? Lembra-se como fiquei chocada e com ódio feroz de toda aquela panaceia? Lembra-se, ainda, que quando tudo explodiu, e Fernanda foi pega com outro namorado, ele surtou e enviou aquela porcaria de e-mail? Lembra-se que falei boas verdades? Pois bem! Tudo parte daí!

Essa semana, por causa de Roger, que muito insistiu, tive de telefonar para Vinicius e convidá-lo a participar da revista. Fiquei desconcertada com a frieza e polidez distante de sua voz:

“Ficarei feliz de te ver. Você amanhã estará livre para vir aqui em casa?”

“Preferiria te ver noutro local para a gente conversar sobre a revista. Você não tem um horário?”

“Estou bem ocupado, me tornando um advogado de verdade”, riu e continuou, “Espere. Pode passar aqui no escritório depois do almoço?”

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“Para mim está muito bom. Combinado assim…”

Pela primeira vez, depois daquele escândalo terrível, Vinicius se achava tête-à-tête comigo quando me abriu a porta. Vestia um terno bem cortado da última moda, em grafite cinzento, e uma camisa branca com gravata amarela. Trazia um penteado alinhado, com uma espécie de topete milimetricamente bagunçado. Tinha um rosto bem-apanhado embora ocultasse certa tristeza no olhar.

“Como vai?”, perguntou-me com certa desconfiança, “Está feliz de viver na USP?”

“Estou muito contente sim. E você como tem passado?”

“Depois que Fernanda me deixou fiquei bem triste né!”, fez num tom que me pareceu cheio de subentendidos. Me olhava com uma expressão ao mesmo tempo desconfiada e de provocação: “Não acha que mudei?”

“Parece bem. E encarnou o figurino!”

“Fernanda foi quem me deu de presente!” — falou com uma expressão de tristeza olhando para o próprio terno e encerrou; “É um Armani!”

self-portrait-in-florence-1907Embora, eu deteste homem de terno, não havia nada a dizer contra aquele corte requintado, nem contra a elegante camisa. Aquela tristeza o deixava até bonito. Talvez fosse apenas porque eu não estava habituada ao seu novo estilo: me soava muito estranho como um rapaz de esquerda se enquadrasse tão bem naquela personagem. Vinicius sentou-se, cruzou as pernas, acendeu um cigarro e indicou uma poltrona para que me sentasse.

“Você sabe”, disse sorrindo tristemente, “Sou um novo homem”.

Eu não soube muito o que dizer, e via o sofrimento dilacerar sua alma, mas respondi tolamente:

“Influência do rompimento?”

“O rompimento foi um pretexto doloroso. Embora tenha sido um escândalo horrível”, Vinicius lançou um olhar para um dos quadros de seu escritório e quando pousou novamente em mim, vi uma espécie de ódio em seus olhos, “As pessoas são muito mais surpreendentes do que imaginamos. Quando a gente pensa que são nossas amigas, elas nos abandonam no pior momento de nossas vidas”, Olhou-me de um jeito ácido e concluiu: “Você deveria ir conosco ao Canaille[1] essa noite”.

“Talvez”, redargui covardemente constrangida e com uma certa raiva por ele ter tocado num assunto cuja maior crítica eu tinha tecido, inclusive incitando Fernanda a abandoná-lo, “Lá vai quem?”

“Hum! Todo mundo”, respondeu ele com uma voz irônica.

Houve um pequeno silêncio. Vinicius, com voz seca disse:

“Mas, foi pra outra coisa que você veio, né?”

“Claro, foi para que você me diga se vai ou não participar do corpo editorial da revista?”

“Estou escrevendo, mas não sei!”

“Já é alguma coisa!”, disse eu carregando a voz de alegria, mas em verdade triste por estar naquela situação.

“Não me considero um escritor como teu amigo Arthur”, disse ele com certo alívio. “Mas, dizem que isso se constrói com empenho.

“E sobre o que está escrevendo?”, perguntei.

“É sobre a Revolução Russa”.

“Mostrou o artigo a seu orientador?”

“Claro que não. Apenas informei que queria pesquisar isso, mas não disse mais nada.”. Ele encolheu os ombros: “Tenho certeza de que ele não concorda nem um pouco comigo. Nunca procurou olhar a coisa de outro modo. Além disso, o que estou descobrindo, devo fazer sozinho”, de repente ele parou virou-se para outro lado e concluiu: “Descobri viver só!”.

“Está arrependido de ter sido desagradável com todos?”, perguntei a queima roupa e um tanto chateada.

“Não acho que exista algo de que tenho que me arrepender!”, fez agastado e com um agressividade incomum levantando-se bruscamente, “Vá ao Canaille hoje à noite e te dou a resposta se vou ou não fazer parte da revista!”.

“Está bem!”, disse com raiva contida por aquele mistério idiota e me retirei.

* * *

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Chamei Carol e Alice para irem comigo e estas aceitaram prontamente o convite. Ao entrar no bar, numa razoável noite de cheiro alegre, senti um grande frêmito de alegria por estar com Carol. Já não sentia mais nada por ela, mas sua simplicidade me era tocante.

O bar estava naquele tom amarelado e com um delicioso perfume advindo da cozinha. Ao chegarmos, duas moças estavam na porta tragando deliciosamente um cigarro e empunhando uma taça de vinho. “Boa noite!”, me dirigi a elas, que foram simpaticamente recíprocas.

Os lugares na dianteira do Canaille estavam todos ocupados e por isso, nos dirigimos para os fundos, cruzando um palco improvisado por um pequeno grupo de Jazz. Alice com suas sardinhas avermelhadas na bochecha estava tão encantadora que deixei que ela me guiasse sendo acompanhada por Carol.

Nossos sorrisos se encontravam calmos quando contemplamos Vinicius e Tulio ao fundo. Nos aproximamos e os saudamos com alegria embora aquele fantasma da tarde, e a história que ele consigo trazia, me incomodasse bastante. Dizer a verdade: isto até o momento, pelo que sei, nunca havia suscitado sérios problemas. E, por isso, me sentei sendo acompanhada pelas duas moças e por um sorriso alegre de Tulio.

Em parte os diálogos transcorriam sem problemas, mas ao ir no banheiro, nossos convivas não voltaram mais. E assim me ergui pedindo licença e fui atrás deles. Fui dar com Vinicius no exato momento em que ele dizia a Tulio, apontando duas jovens que se encontravam na mesa detrás:

“Detesto moças que se empiriquetam e posam de revolucionárias!”.

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A coisa era simples, mas uma náusea percorreu meu estômago como uma onda que se choca em vão contra pedras indiferentes. Tive a um só tempo horror por Vinicius e por mim mesma que tivera disposição de convidar aquele rapaz, a despeito de todos os fatos que já se somavam, para a revista. Não era uma questão moral, mas central, de novo uma redução desse nível? Voltei a meio caminho e Carol sentiu meu constrangimento.

Permaneci ali, a contragosto, por causa da alegria ainda viva no rosto de minhas duas amigas. Mas, era tal minha indisposição que para saná-la pedi duas garrafas de vinho e as bebi inteirinhas. Naturalmente isso não me ajudou nem um pouco. A coisa foi tão ruim que tinha vontade de insultar alguém. Reconciliar-se, perdoar, desculpar, que ilusão e sacanagem. Esquecer a ofensa não era o bastante. Sempre nos esquecemos. Esquecemos os ofensores e chamamos de deslizes bobos a ofensa. Mas a dor de ofendidas é monopólio de nosso sofrimento.

Num canto confortável no bar me instalei. Segura por Carol a minha frente e Alice do meu lado que, em sua beleza estonteante conjugada com simpatia singular, tornava aquele espaço mais tolerável. Vinicius tornara a mesa e continuava se embriagando. Abraçava Tulio pelo pescoço. Era claro o mal-estar deste último. Não me interessava sobre o que conversavam. Mas durante a noite pude notar um olhar malévolo de Vinicius. Desde que ouvi aquilo me afastei e notei que Tulio se incomodava e queria vir conversar conosco.

De repente, a banda de Jazz começou a animadamente tocar Aretha Franklin e Alice em sua simpática embriaguez me pegou pelas mãos, me puxou e se pôs a dançar comigo. O vinho, o calor e o hálito perfumado de Alice tornaram tudo mais oxigenado. Dançávamos com alegria I say a little prayer e até esse momento eu me esquivava de qualquer assunto com Vinicius.

“Eu te acho tão linda!”, cochichou Alice em meu ouvido, “É uma pena não ter te conhecido antes!”

tumblr_m92jrmXizS1rpvjjio1_1280“Linda é você!”, respondi, sem graça, quando percebi que Carol nos observava ansiosamente e, pode-se dizer, com aflição.

“Eu gosto tanto de dançar”, fazia me tocando e me levando ao sabor de seu movimento, “Direto fico entediada com o campus, mas ele sempre me faz descobrir pessoas fantásticas como você”, dizia me pegando pelas mãos quando seu rosto se iluminou por uma ideia e concluiu: “Você dá uns dois? Será que achamos algum lugar aqui pra fumar?”

“Eu quero muito fumar um fino”, redargui quando a música findava e fui para a mesa sendo seguida por Alice, “Acho que se sairmos lá fora fumaremos tranquilamente. Essa rua é meio deserta né?”

Não quis me desassossegar, convidei Carol, e levantamos com nossas taças repletas de vinho rumando para fora do Canaille. A rua estava deveras deserta, um calor natural transcorria misturando-se a luz de tom ocre dos postes.

Carros escassos passavam alheios a nossa diatribe. Carol ansiosa buscava minhas mãos e se agarrava ao meu braço. Quem botou foi Alice. Estávamos ansiosas e com esse medo ridiculamente naturalizado.

Com três tragos, minha cabeça parecia mais pesada que o normal. Minhas mãos começaram a formigar e um sorriso vertia no rosto gostosamente desfigurado de Carol. Sem muitas delongas, ela me tomou pelas mãos e me fez uma peruana. Rimos as três, e começamos a trocar peruanas numa verdadeira orgia maconheira.

* * *

Voltamos para o bar já incorporadas. E fomos tomadas de surpresa pela forte discussão entre Tulio e Vinicius:

“Como pode defender um sistema como aquele?”, dizia Tulio balançando negativamente a cabeça, “Aqueles planos quinquenais eram verdadeiras máquinas de triturar gente… ignorar isso durante os anos 30 e 40 do século XX, ainda era desculpável dado o contexto histórico, mas, hoje em dia? Ignorar que essa foi uma das maiores derrotas que já houve na história das revoluções sociais é vazio!”

“Esse gênero de discussão representa sempre um atraso. Primeiro, porque em grande parte se baseia numa história oficial; depois, porque, uma vez fora do contexto, não se pode esperar que os ataques a URSS sejam justos!”, por sua vez, disse Vinicius com uma voz que parecia estar se quebrando.

“Do que exatamente estão falando?”, perguntou Alice.

“Falamos da Revolução Russa e seus desdobramentos”, disse Tulio, “Há uns meses Vinicius pesquisa o tema.”

“Há alguns meses não!”, interferiu embriagado, “Há alguns anos!”.

Tulio teve um gesto de impaciência:

“Tá bom, você estuda a Comuna de Paris, não Alice?”

“Sim! Sim, e acredito na sua total integridade como luta socialista!”, respondeu Alice sentando-se e tomando um gole de vinho com o olhar de viva atenção, “A insurreição popular de março de 1871 com certeza foi um dos fatos mais notáveis do século XIX!”

“Só perde para a Revolução de Outubro!”, fez Vinicius interferindo Alice.

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“Não acredito que a questão aqui seja uma competição entre revoluções”, redarguiu Alice agastada e olhando para Carol, “No entanto, isso não me deixa à vontade para dizer que a Revolução Russa tenha sido algo fantástico… teve seus dias gloriosos sem dúvida, mas já em sua raiz havia algo de infame proposto pelos bolcheviques!”

“Afff!”, redarguiu Vinicius um pouco brutal, “Lá vem esse papinho!”.

“Tudo o que não concorda com você é papinho!”, redarguiu Tulio com impaciência. “Para quem defende a política bolchevique, tudo contrário a eles é esquerdismo doença infantil blá! blá! bla!”.

Rimos da tirada de Tulio até que interferiu Vinicius embriagado:

“Se vocês sabem mesmo das coisas, porque a única revolução que triunfou foi a bolchevique? Porque eles conseguiram expulsar diversas potências estrangeiras e ainda organizar o caos generalizado que se instaurou na sociedade russa devido a guerra civil? Existiria algo possível de se manter se Nestor Makhno e seus anarquistas triunfassem?”

“Concordo muito em partes com essa ideia de triunfo, pois o que a revolução bolchevique legou foi a construção de um Estado moderno na Rússia e nada mais!”, retruquei e Alice continuou a despeito da raiva visível nos olhos de Vinicius.

“Acredito que há uma diferença essencial entre a Comuna e a Revolução Bolchevique!”, disse Alice, “Não apenas porque a Comuna ocorreu num país de tradição revolucionária e embora, ainda economicamente capenga, era politicamente muito avançado; como também, porque sua estrutura se baseou não apenas na tomada dos meios de produção como na imediata transformação do modo de produção desses meios de produção”.

“Vá lá!”, cortou bruscamente Vinicius, “Lá vem vocês com ideias anarquistas!”

“Somente um marxista vulgar pensa desse modo!”, por sua vez disse Alice. “É fato que depois da Comuna, Marx reviu o seu manifesto, superando inclusive suas posturas no que concerne a tomada do poder por etapas, isto é, a transição, e a centralização do Estado pelo proletariado!”

“Esta não é a questão aqui”, disse Vinicius, bebericando vinho, enquanto nós apenas olhávamos para o debate com um certo enfado quando continuou, “Mas de fato a revolução em Paris trouxe para Marx uma postura nova, que o fez rever suas ideias dentro do Manifesto… sim! Sim! Vá lá! Mas, temos que tomar extremo cuidado ao dizer que diabos é isso de transição, pois essa transição, embora muitos descordem será efetivada com o transcorrer do progresso dos meios de produção e, diferentemente das ideias anarquistas, Marx não considera que houve dentro da Comuna a abolição do Estado, mas sim a construção de um Estado Revolucionário emergindo em seu âmago elementos de democracia direta!”

fc98293bedf785669fa9557251e6fbec“A questão não é simplesmente uma abolição sem mediação do Estado e você insiste nesse ponto porque me tem como um adjetivo!”, redarguiu Alice. “A transição e a revolução são passos na marcha histórica indissociáveis da crítica de Marx aos princípios adotados no Manifesto. Isso não quer dizer que ele, pura e simplesmente, abandona elementos de sua obra, mas que supera as limitações para se reencontrar num desdobramento superior de seu pensamento. Isso não quer dizer, também, que acredite utopicamente na abolição tácita do Estado e, é exatamente por isso que sua voz se ergue dois dias depois do esmagamento da Comuna; primeiro, para não a tomarem como um sonho que não foi realizado por desentendimentos e dissensões na comunidade ou sei lá o que era aquilo que havia se projetado no solo parisiense; segundo para que não a tomassem como algo irrealizável!”

“E aí eu insisto nesse ponto fraco que você insiste em argumentar”, triunfante disse Vinicius e continuou, “Mesmo porque, não houve na Comuna a abolição das classes, em partes devido a seu esmagamento e não continuidade… Em partes por sua formulação garantir organizações no interior do Estado que garantissem atribuições a cada revoltoso de Paris!”

“Gente é sério mesmo que vão discutir isso a noite toda?”, perguntou Carol tomando-me pelas mãos.

“Deixe eles discutirem!”, redargui, “Está é uma querela interessante!”, finalizei rindo, ao que Vinicius continuou sem nos dar a mínima:

“A origem da doença está nas relações sociais, meus amigos, que são produzidas e reproduzidas pelo capital”, parou nesse ponto para tossir, “A existência do Estado se baseia em dois pontos, não somos tolos para conceber isso diferente, nem muito menos adolescentes para identificar o inimigo como um rei que basta cortar a cabeça… por um lado ele surge pelo domínio da natureza que ao projetar uma segunda natureza estabelece as relações do Dever-ser… Olha só que Genial!”, fez rindo, “Não é à toa o imperativo categórico nem a formação do direito… e, por outro lado, isso forja as nossas próprias relações sociais, ou melhor, as organiza… Por isso, para que o Estado desapareça são as próprias classes que tem que desaparecer…”

“E para que isso ocorra é preciso transformar o modo de operar os meios de produção e não simplesmente tomar os meios de produção por uma determinada classe como fizeram os bolcheviques!”, disse num sorriso triunfante Alice.

“É claro que concordo contigo nesse ponto, no entanto, tudo é mais fácil quando se olha pelo retrovisor!”, desanimando respondeu Vinicius, “Me parece que tudo isso não passa de verborragia! Uma jargão aparentemente revolucionário mas que perde toda a mediação do contexto histórico!”

“Não se trata disso!”, friamente exclamou Alice, “Acredito sim na importância da revolução russa, no entanto, temos que criticar seus erros para que não sejam cometidos mais!”

“Sei! Sei!”, fez agastado Vinicius, “E essa conversa não tem fim, não é?!”, levantou-se, de repente, e sem pedir licença bradou, “Nada se diz sobre a recepção das ideias bolcheviques nas massas trabalhadoras, especialmente entre os operários, e é engraçado que isso revela muito sobre a crítica que se faz aos bolcheviques. Em suma, o que não se diz acaba se tornando mais importante…”

“Nessa toada não se sai do lugar… a questão fica sempre girando em torno de si!”, exclamou Tulio entrando com os dois pés no debate. “As condições ou eram difíceis e por isso a revolução não deu certo, ou embora as condições fossem difíceis todos os esforços eram feitos em busca de um salto qualitativo que nunca houve. Nesse “salto” é preciso pôr em questão a coletivização forçada stalinista e propugnada pela NEP leninista, por um lado, e por outro, antes que já se ouça o chavão da crise de direção, é preciso não esquecer da militarização do trabalho imposta por um dos epígonos e heróis bolcheviques, enfim… Fecho com Alice, não neguemos infantilmente a Revolução Russa, mas não sejamos saudosistas como muitos professores… entre eles o tal Coggiola!”, fez tomando um gole de vinho e emendou com graça, “Vocês acreditam que fui num encontro lá na Sé, da Unesp…

* * *

Tulio começou a narrar com alegria o que se sucedera quando eu disse a Alice e Carol que já estava cansada e precisava ir para casa. Não me sentia à vontade de me dirigir novamente a Vinicius, não apenas por seu comentário que me soou, imbecil e descabido, como também a soma dos fatores que alteram todo o casuísmo das coisas.

De repente, entretanto, ele se aproximou de mim e disse para que o acompanhasse porque gostaria de falar a sós comigo. Cedi, ainda que contrariada, e me afastei de todos quando ele começou:

“Quero muito conversar com você, mas se é para sermos amigos novamente queria que você tivesse a mínima noção do mal que me fez… Coisa que parece não ter! Eu tinha uma grande amizade por você, mas você ainda não sabe como dói minha separação de Fernanda! Essa separação desencadeou uma série de eventos que provavelmente sem sua intervenção não teria ocorrido daquela maneira”

“Acho que esse assunto já deu né!?”, fiz sobressaltada pelo peso que ele impunha a minha participação no problema, “Ademais talvez você tenha bebido demais!”

“Olha!”, Vinicius redarguiu com impaciência, “Se você não pode desfazer o que houve, pelo menos poderia tentar compreender e se desculpar pelo que lhe cabe! Não subestime o dano que causou e como foi leviana comigo. Sem discutir tais questões não poderei ser seu amigo novamente, nem participar da revista!”

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“Você é bem maluco!”, redargui rindo pelo ridículo da conversa e pela postura de Vinicius em encontrar uma saída de todos os seus males em mim e continuei, “Toda essa história me é bem indiferente — não o dano ou estrago que fez em você — mas, a história em si mesma. Me soa até como um romance de banca de jornal. Você ter pego Fernanda com outro é banal e risível, vivia apregoando que gostaria de uma relação aberta, pois então, ficasse tranquilo e soubesse levar a escolha que ela fez e que você mesmo enchia o peito para bancá-la. Foi o que pensei que faria. Nunca tive, depois disso, sua amizade em demérito… nem depois do ridículo escarcéu que fez!”

“Se, para você é indiferente, saiba que é algo que me lembro todos os dias há sete meses e que mudou completamente a minha vida! Imagina se fosse a sua separação e que ela fosse daquela maneira! Sua indiferença é um tanto mais preocupante e mostra total falta de empatia conosco. Pergunte para o Renan e para a própria Fernanda… ambos se assustaram com sua reação, o jeito que fez…

“Cara!”, fiz agastada e já expressando chateação, “Você sumiu e na boa, eu não vou implorar para manter uma amizade. O modo como enxergo a vida é bem distante disso. Eu ainda tentei, contra todos os meus princípios, entrar em contato uma ou duas vezes, mas você se mostrou arredio e frio. Então…

“Eu estou te explicando!”, falou exaltado e Carol e Alice se entreolharam e nos observaram de longe com constrangimento, “Você não tem que implorar porra nenhuma! Mas tem que ser mulher e entender o que fez!”

“Então me diga o que fiz?”, disse-lhe tranquilamente rindo por toda aquela situação.

“Leia novamente a mensagem que nos enviou naquele dia e verá tudo com clareza!”

“Cara!”, exclamei, “Eu apaguei a mensagem, tu queres me reenviar?”

“Você trata a todos com petulância e tratou meu relacionamento como se fosse um lixo!”

“Nunca julguei seu relacionamento desse modo!”, redargui.

“Lógico que julgou, veja só o que escreveu. Me humilhou a ponto de a própria Fernanda se sentir atacada”.

De repente, me distanciei daquela cena tragicômica. Vi apenas Vinicius alvoroçado balançando o corpo e tremendo tomado por viva raiva. Humilhar, atacar, julgar eis as palavras vãs que ele ia dispondo como cartas organizadas num tabuleiro que ele dispunha para ser o vencedor. Tudo aquilo me nauseou mais do que podia, mas meu rosto permanecia tranquilo e minha impassibilidade o deixava mais furioso.

“Entendi… entendi!”, disse tomando mais um gole de vinho, “Claro que sim!”, ri, “Na real a culpa foi toda minha”, gargalhei, “Eu fui a causadora de tudo! Se isso te deixa feliz: me perdoe!”

“Você é louca!”

“Má fé explica tudo… você está transferindo a culpa para se sentir aliviado, pois bem! Eu sou a ponte, como o doador de Kafka! Vamos lá atravesse para se sentir melhor!”

“Você me humilha e me humilhou quando eu estava no chão! Me chutou como um cão quando eu mais precisava”, redarguiu com uma dor que beirava o melodrama e a seriedade de um Werther.

“Meu amigo!”, fiz rindo, “Millôr Fernandes disse algo muito lúcido: a amizade não resiste a sinceridade! Achei que tivéssemos cumplicidade e que vocês fossem maduros para suportar críticas e seguir adiante”

“Você não fez críticas, Heloisa, e nem se desculpou de uma maneira sincera, não tem um terço do entendimento que Renan tem da questão!”

“Ajoelhar? Jamais! Me desculpei pelo que achei que exagerei e não mais!”

“Mentira sua, Heloisa!”, bradou revirando os olhos embriagados, “Tudo o que eu quis era o diálogo!”

“Mentira minha? Eu sempre entrei em contato com você!”

“Leia a carta que eu escrevi. Você me procurou pelo exterior, fingindo que não acontecera nada, talvez, para você não tenha acontecido. Mas, a mudança da minha vida toda, estava naquele ponto do qual você participou de maneira muito ruim!”

“É claro!”, ironizei, “Eu que ajudei a detonar o castelo de teu destino, pois é! Me desculpe!”

“Eu só gostaria que tivesse noção do que fez! Não tem um dia que eu não sinto falta da Fernanda e nenhum dia que não me lembre de tudo. Olhando de onde vejo as coisas se esclarecem um pouco… lembra-se aquele dia em que você despejou seu excesso em mim naquela discussão sobre Hegel na frente da Andreia? Você fez igual quando aquilo ocorreu, mas sem ter noção da gravidade do assunto em questão e de suas consequências!”

“Meu Deus!”, bradei com impaciência na voz, “Agora eu sou a destruidora de lares!”

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“Você parece ter se aproveitado do momento de minha total fragilidade para descontar não sei bem o que!”, redarguiu com sofrência Vinicius, “Foi, sem dúvida, a pior mensagem que já recebi em minha vida. Se quer que voltemos a amizade você tem que saber valorizar isso! Caso contrário, é melhor ficar longe!”

“Temos conceitos diferentes de amizade!”, redargui prosélita, “Amizade, do meu ponto de vista, significa, sobretudo, companheirismo inclusive na hora de apontar os erros. Ser dura sem perder a ternura. Mas, jamais, e em hipótese alguma, se omitir por convenção, para tornar mais suave o que se pensa a respeito de uma ação errada. Ser eufemista é um porre! Eu acreditava que erámos amigos e por isso poderia falar o que eu pensava daquela pataquada toda!”

“Você não fez isso!”, gritou brutalmente Vinicius chamando a atenção de todos e deixando uma tensão perversa no ar, “Não fez mesmo”, balançava a cabeça desvairadamente no ar, “Você me atacou de maneira totalmente desmedida e banal. Não foi franca, foi puro ataque. Renan e Fernanda me confirmaram isso…”

“Oras, se foi banal pra você ou puro ataque para os demais tudo bem!”, respondi querendo ir para casa, “Acontece ué! Fui mal interpretada! Mas não posso me desculpar de uma má interpretação em que, aliás, nem foi me dado o direito a resposta!”

“Você me atacou simplesmente!”, fez perdendo a paciência com o dedo em riste.

“Qual o que!”, bradei dessa vez perdendo o fio das estribeiras, “Que ataque que nada! Você criou isso para se defender de si mesmo. Da merda que fez, eu não tinha porque te atacar… Se liga!”

“Você fez como fez naquela discussão teórica, me atacou de graça, desceu muito o nível!”

Nesse momento dei uma gargalhada enxuta e perdi o controle do riso chamando as minhas amigas para se aproximarem. O olhar de todos era o de mais viva atenção quando retruquei:

“Eu sou mesmo igual as minhas ciganas!”, e, de repente, silenciei continuando em seguida, “Você mistura as bolas, sua neurose é grave mesmo! Você está viajando!”

“Você quem mistura!”, redarguiu de pronto, “Deveria ter humildade de olhar o que me escreveu… não tem nenhuma!”

“Eu vou olhar, prometo! Mas, supera isso!”, fiz já com raiva me animando rapidamente para ir embora.

“Olha Heloisa, na real, acho que a admiração teórica que você teve por mim, gera, ao mesmo tempo, um tipo de frustração em você. Essa frustração foi liberada no pior sentido. O excesso do dia do Hegel e esse, que aconteceu entre Fernanda e eu, são bem parecidos. Acho, talvez, que algo em mim te incomode muito. Não estou preocupado com você levar essa história adiante e mobilizar um escracho contra a minha pessoa. Todas as suas falas eram na época nesse sentido, ou melhor, no sentido de que eu me tranquilizasse que essa história não sairia de nossa cozinha!”

“Falei isso para te tranquilizar, exatamente porque você passava esse medo!”, respondi com asco ao que Vinicius parece nem ter escutado e continuou:

“Eu não deixo passar e nem deixei. Você agiu muito errada comigo e se não reconhece isso, melhor não te ter como amiga mesmo!” Novamente dei risada, dessa vez, com um misto de amargor por ter meu amor próprio ofendido e respondi:

“Então, você acha que minha admiração por você me fez ser agressiva, por uma suposta frustração que essa admiração me causa?”, sorrindo com escarnio, conclui: “Você é um pequeno burguês mesmo! Você é uma pessoa injusta e insensível!”

Naquele instante novamente me distanciei da cena e, é como se a tivesse vivido de longe. O garçom com copos sujos levando a bandeja. O olhar de ansiedade de minhas amigas, os risos nas mesas ao lado. As velas queimando dentro das taças, a vermelhidão dos lábios intoxicados por vinho. Então encerrei a conversa que culminaria num rompimento público dizendo:

“Seu mundinho é regulado pela concorrência. Não é possível desenvolver qualquer coisa próxima de fraternidade com pessoas como você que, ao invés da solidariedade, se baseiam na competição e se recusam a assumir as responsabilidades pelos próprios erros. Que você era competitivo disso sabia, agora concorrer ou achar que as próprias camaradas concorrem com você, é demais! É intolerável e explica sua formação e sua fraqueza em superar seus atuais problemas! Pense bem moço! O que você atribui a mim, diz muito sobre você mesmo. Não acredito que poderá compreender isso, talvez, algum dia sim! Será tarde, acredito, mas até lá não o quero perto de mim… apesar desse rompimento óbvio, quero que fique bem e reflita. Me desculpe por ter falado o que pensava daquela enfadonha história e fique com seus demônios que muito diz sobre sua personalidade. Como te quero bem, a despeito de sua infantilidade, aceite um conselho: supere-os. Até nunca camarada!”

Agarrei as mãos de minhas amigas e dei um leve beijo de despedida nas bochechas vermelhas de Tulio quando escutei o biltre Vinicius dizer o seguinte:

“Você não pode dizer nada sobre amizade Heloisa! Quem entrou em concorrência comigo foi você dragada pelo seu senso de inferioridade. Desejo-lhe o bem e que não apunhale mais um amigo por vaidade como fez comigo!”

Fiz um sonoro: “Piffff”, e lhe dei as costas com um joia. Me direcionei ao balcão bravamente para pagar a conta. Fiquei de olhos bem abertos. Não estava sequer encolerizada: não compreendia, no que ele havia dito, coisa alguma. Sem dúvida alguma, era a mim que Vinicius visava, quando dirigia aqueles olhos malévolos durante toda a noite. Seus rancores permaneceram vivos e constrangedores: mas, nesse caso, ele deveria ter despejado tudo antes. Foi-me tão insuportável esta ideia, que quis chorar. Minhas lágrimas, porém, prendiam-se orgulhosas nas pupilas dilatadas. A noite estava arruinada e poderia terminar naquele instante. Mas, sabemos: não há limites para a desgraça.

Meu doce, como já me estendi bastante, conto o resto da noite fatídica na próxima carta. O inferno se completou com a discussão que tive com Carol. Seu feminismo excludente e proto-seletista foi a cereja do bolo da noite em desgraça.

De tua aristocrata sem-terra,
Heloisa.

*Post scriptum – detestei essa carta, do ponto de vista estético está horripilante. Prometo que me preocuparei com a forma e conteúdo na próxima, e não somente com o conteúdo como fiz aqui. Por outro lado, aqui estão as vozes do meu coração.

Nota [1] Trata-se de um bar em São Paulo.

As imagens que ilustram a carta são de Max Beckmann.

Leia aqui a 3ª carta de Helo a Arthur.

4 COMENTÁRIOS

  1. “O que você atribui a mim, diz muito sobre você mesmo”

    Em psicologia, projeção é um mecanismo de defesa no qual os atributos pessoais de determinado indivíduo, sejam pensamentos inaceitáveis ou indesejados, sejam emoções de qualquer espécie, são atribuídos a outra(s) pessoa(s) (wikipédia).

    Portanto, o que eu(nós) atribuo(ímos) a outro(s), diz muito sobre mim(nós) mesmo(s)…

  2. poxa heloisa, mó cartão tu escreve, e depois não gosta?
    foi a melhor até agora!

  3. “La conclusión que podríamos sacar de este cruce de enfoques es que, dada la industria estatizada y el hecho de que el Estado soviético encarnara (al menos hasta finales de los veinte) las tradiciones de Octubre, le dieron a la dirección del Partido un peso determinante para operar el giro hacia la colectivización y la industrialización. Pero una vez dicho esto hay que tener conciencia que entre Stalin y el campesino que era obligado a entrar en el koljós, o el obrero que era sancionado por llegar tarde al trabajo, existieron las instancias sociales y políticas que menciona Manning, que actuaron como correas de transmisión y motores de la política del Politburó. Y hubo, además, un extendido sentimiento de que, de alguna manera, se estaba avanzando hacia un futuro mejor. Como hemos afirmado en una parte anterior de la nota, este es el elemento real que reflejaron también muchos militantes de la Oposición de Izquierda que viraron hacia el stalinismo después de 1928, y que también refleja Trotsky, cuando caracterizó el giro de 1928 de progresivo, a pesar de sus problemas y las críticas que le merecía. Es necesario analizar entonces cómo se articuló, concretamente, esta “revolución desde arriba” con elementos de legitimación y apoyo en sectores de la población.”
    https://rolandoastarita.wordpress.com/2016/06/23/trotsky-el-giro-de-1928-9-y-la-naturaleza-social-de-la-urss-17/

  4. IDEIAS FORA DO LUGAR (para o astaritrosko): “Não há pior servidão do que a esperança de ser feliz.” Carlos Fuentes

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