Tais bandeiras encobrem a responsabilidade de uma esquerda que abandonou a luta de base radicalizada contra o Estado e o capital. Por Ana Elisa Corrêa

Pneumotórax
Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
– Diga trinta e três.
– Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
– Respire.
– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino

Manuel Bandeira

Um tango argentino

Nas ruas em luta de Buenos Aires militantes entregavam um panfleto com o título “Ajuste para la mayoría”. Ainda que estejamos pelejando por aqui com os ajustes anunciados pelo atual governo brasileiro, os dados sobre a situação social e econômica argentina impressionam: 375% de aumento do preço da água; 300% de aumento do gás; 440% da luz; 100% de aumento do transporte; aumento de 40% da inflação; aumento galopante do desemprego com uma média de 1.000 trabalhadores despedidos por dia, sendo que desde que assumiu Macri demitiu-se 150.000 trabalhadores dos setores público e privado; cortes na saúde, na educação, em programas sociais (programas de assistência a crianças, idosos, pessoas em situação de rua, jovens, etc); 32,6% de aumento da pobreza (1.400.000 novos pobres e mais 350.000 indigentes); repressão violenta desde o início do ano de manifestações em La Plata, Cresta Roja, Tierra del Fuego, Santiago del Estero, Mendoza, entre outras. E tudo isso acompanhado, segundo o mesmo panfleto, de investimentos e descontos em impostos bilionários para o agronegócio, a mineração e o consumo de artigos de luxo.

Com a campanha “no te dejes ajustar” os movimentos sociais considerados independentes ou autônomos em relação aos governos, inclusive em relação aos passados governos Kirchner, acamparam por quatro dias na Praça de Maio, em frente à Casa Rosada (Palácio do Governo) com uma lista ampla de reivindicações. Aí estavam movimentos originários da explosão social de 2001 que desembocou na formação de uma miríade de movimentos piqueteiros, isto é, movimentos de trabalhadores desempregados que utilizavam o bloqueio de estradas e vias como forma de protesto ao caos social vivido pela Argentina na crise que se iniciou em fins dos anos 1990. Os piqueteiros, ou movimentos dos desempregados, acabaram por dar origem a organizações de caráter múltiplo, com setores de atuação em áreas muito diversas como cooperativismo, luta estudantil universitária, luta sindical, luta antipatriarcal etc.

Assim formaram-se movimentos que parecem se caracterizar tanto como organizações coesas quanto como frentes de luta. Uma mescla, uma salada bem temperada da qual participam desde grupos mais focados em discussões políticas estratégicas até coletivos de ação pragmática, tendo em vista a precariedade das condições de vida da população perante a crise social em curso há mais de quinze anos. Dentre essas organizações de composição sui generis estão movimentos com características políticas distintas mas que compartilham a crítica ao governo e à institucionalização das lutas, e que se solidarizam em seus processos de luta, como é o caso da Frente de Organizaciones en Lucha (FOL) e da Frente Popular Dario Santillan. Esta última, que sofreu uma dissidência impactante há alguns meses, participou pontualmente de atividades do acampamento na Praça de Maio. A organização da atividade se deu pelas seguintes organizações: Frente de Organizaciones en Lucha (FOL), MTD Aníbal Verón, Movimiento Teresa Rodríguez, Frente Popular Víctor Choque, Federación de Organizaciones de Base (FOB), Votamos Luchar, Agrupación Clasista Lucha y Trabajo e Movimiento de Resistencia Popular (MRP).[1]

A lista de reivindicações é grande e tem um sentido amplo, mas na prática, a nosso ver, parecia focar a condição das cooperativas de trabalho e sua tensão com o Estado. A princípio expomos um elemento que consideramos extremamente relevante: na fala de alguns militantes durante roda de conversa sobre precarização do trabalho no “Acampe” Praça de Maio, estava clara a visão de que havia uma continuidade perversa da política econômica e social dos governos Kirchner e Macri. Ao observar esta explícita declaração de crítica ao kirchnerismo, nos perguntamos: de onde saiu tanta coragem de enfrentar o macrismo com uma crítica aberta ao kirchnerismo? Na Argentina, a “esquerda” não teria medo da afamada “volta da direita fascista e neoliberal” tão preconizada pelos brasileiros?

Antes de adentrarmos nas contradições que envolvem a relação entre movimentos sociais e Estado, principalmente com o programa “Argentina Trabaja”, talvez seja importante pinçar e expor algumas especificidades dos governos Kirchner e Macri, especialmente como estes trataram o desenrolar da luta piqueteira e suas organizações. Façamos uma pequena digressão sobre o kirchnerismo e a história da luta social na Argentina, cotejando quando possível com a realidade brasileira. Talvez levantemos assim mais ferramentas para pensar a resistência ao governo Macri e seus ajustes, bem como sua proximidade e especificidade perante a luta no Brasil. Talvez surjam apenas perguntas novas e cada vez mais difíceis de responder. Se assim for, que assim seja.

Uma comparação às avessas

A esquerda crítica e anticapitalista brasileira tem enfrentado grandes desafios, o que, aliás, não parece ser tão diferente do que tem se passado em diversos países. Para além de nos depararmos com uma conjuntura adversa a la “se ficar apenas na crítica o bicho dos ajustes come, se correr pro Fora Temer o bicho do PTismo pega”, a compreensão dos processos que nos levaram a esse deserto de expectativas ainda é, no mínimo, nebulosa. Aí se situa a necessidade de compreender as mudanças que ocorreram nas lutas e organizações das últimas décadas, marcadas por desagregações, dissidências, integrações e falências das históricas formas de luta. Porém, parece que o buraco é ainda mais embaixo. Muitos do que têm a oportunidade de conversar com militantes, estudar ou experimentar diretamente a cena política de outros países latino-americanos tendem ao sentimento de estar sobre um abismo que a tudo traga, ao constatar as enormes semelhanças com o Brasil quanto às crises política, econômica e social, bem como a crise das formas de resistência que ainda sobrevivem.

Que seria afinal essa onda que abarcou a América Latina no início dos anos 2000, levando à chegada de governos progressistas ao poder, e o subsequente apassivamento de suas principais formas de luta social? Apesar de, infelizmente, não estarmos perto de responder essa pergunta, é possível afirmar com segurança que a conjuntura que vivemos na última década e meia está longe de ser uma “onda vermelha”, uma guinada à esquerda na latinoamérica, preconizada por esperançosos intelectuais e militantes.

O caso argentino parece paradigmático e fértil para comparações. É grande a lista de semelhanças com a conjuntura brasileira. Análises diversas, acadêmicas ou militantes, buscaram uma aproximação entre os dois países, pensando as semelhanças entre seus movimentos sociais (piqueteiros e sem teto por exemplo) e a estrutura de seus capitalismos. Razoavelmente desenvolvidos nos parâmetros da segunda revolução industrial, passaram ambos pela abertura neoliberal, a desindustrialização, o desemprego massivo, e a posterior emergência dos governos “progressistas” no início dos anos 2000. Em análise que produzi no início de 2013, já havia a constatação desse mesmo quadro:

Há atualmente um debate em torno da noção de neodesenvolvimentismo que situamos a partir da descrição concreta da conjuntura política e econômica de Brasil e Argentina, países representativos da relação entre essas políticas estatais e os movimentos populares. Uma importante semelhança entre esses países é o grande desenvolvimento do capitalismo em ambos, pois apresentam um mercado interno razoavelmente bem formado, uma complexa estrutura de classes e uma indústria desenvolvida em relação aos outros países do continente. É também importante considerar que os dois países passaram por um processo recente de desindustrialização como consequência das medidas neoliberais e de posterior retomada do crescimento industrial com a emergência dos governos “progressistas”. [2]

Por fim, brasileiros e argentinos vivenciam o retorno de governos abertamente de “direita” (ainda que por vias distintas) que implementam a toque de caixa os tais “ajustes”, que em síntese são a escancarada precarização de direitos sociais e trabalhistas.

Apesar dos riscos, aqui tentamos esboçar uma faceta da conjuntura Argentina a partir de um breve estudo e do contato com militantes de movimentos sociais lá denominados “nova esquerda” ou “esquerda independente”. São estes os movimentos que mantiveram uma perspectiva crítica ao governo Kirchner e seguem, apesar de em alguma medida dependentes de recursos estatais, resistindo ao processo de institucionalização que se intensificou após a chegada à presidência de representantes de um peronismo supostamente progressista, o “kirchnerismo”.

Tanto os primeiros mandatos dos Kirchner como os mandatos de Lula buscaram construir um governo de conciliação de classes, combinando políticas sociais, ampliação do emprego e do poder de compra do salário mínimo, simultaneamente aos investimentos em setores do capital privado como o agronegócio e o setor energético (mineração, petróleo, etc). Segundo leituras à época (início dos anos 2000) otimistas:

Depois da moratória argentina, o presidente Kirchner redefiniu suas relações com a comunidade financeira internacional e transformou em prioridade absoluta de seu governo a criação de empregos e a recuperação da massa salarial da população argentina, utilizando-se da fórmula clássica da socialdemocracia européia, da “concertação social”, para conter a inflação. Além disso, voltou a proteger a indústria, estatizou vários serviços públicos e lançou, recentemente, um programa de reestatização opcional da própria Previdência Social. [3]

E no caso do Governo Lula:

(…) suas primeiras medidas e propostas são muito claras: seu objetivo estratégico não é construir o socialismo, é “destravar o capitalismo” brasileiro, para que ele alcance altas taxas de crescimento capazes de criar empregos e aumentar os salários de forma sustentada, fortalecendo a capacidade fiscal de investimento e proteção social do Estado brasileiro. Com esse objetivo, o governo Lula está retomando o velho projeto desenvolvimentista que remonta à década de 1930 e que só foi interrompido nos anos 90. Mas, ao mesmo tempo, está querendo criar uma vontade política por meio de uma grande coalizão social e econômica, que reúna as várias vertentes do desenvolvimentismo brasileiro, conservadoras e progressistas, que estiveram separadas durante a ditadura militar. [4]

Todo esse processo foi alimentado por uma conjuntura internacional favorável, principalmente pelo boom do mercado de commodities, característica também marcante da economia argentina nos anos 2000. Em um contexto de afluxo de capitais, ainda que de forma instável e temporária, foi possível o estabelecimento de governos de conciliação de classes. Nesse sentido, muitas foram as promessas de se estabelecer uma economia pujante que acabaria com a miséria, combinando (neo) desenvolvimento e políticas sociais. Em um trecho de manifesto escrito para um encontro de uma corrente do PT em 2011, essa expectativa é explicitada:

Foi necessário que o PT, nascido das lutas de enfrentamento aos patrões, chegasse ao governo para estabilizar um processo de desenvolvimento com inclusão social em um regime democrático burguês. (…) Estamos cumprindo uma série de tarefas de organização do estado, típicas das revoluções burguesas clássicas na Europa e na América do Norte. Para isso, optamos por construir um governo de colaboração de classes, onde o trabalho e o capital alcançam ganhos constantes, tais como: aumento do lucro, da massa salarial, do valor real dos salários e do nível de emprego. (…) Essa aparente sensação, de que todos ganham, só é possível porque a nossa presença no governo, combinado com o atraso secular do estado brasileiro possibilitou verdadeiros avanços comparativos para o conjunto da nossa sociedade. (I Congresso da Articulação de Esquerda, 2011)

A política do “todos ganham” também fez parte do repertório argentino, assim como sua subsequente derrocada. As debilidades estruturais, a heterogeneidade produtiva e a dependência da dinâmica do mercado internacional, em especial da então pujante economia chinesa, são marcas indeléveis dos dois países. E mesmo o mercado de commodities, assim como os investimentos estatais de grande monta, sempre esteve enredado no processo de financeirização e suas bolhas especulativas. A crise que se inicia no mercado internacional em 2008, e que abaterá os mercados latino-americanos a partir de 2012, instaura a impossibilidade de manter a política do “todos ganham”.

Poucos se perguntaram neste período como podia um país, que já passava a habitar o brejo das almas das nações quebradas pela corrida da globalização, manter uma balança comercial superavitária exportando predominantemente commodities? O ‘bilhete da sorte’ do governo Lula foi tirado em 2002, quando se iniciou uma bolha especulativa com o preço das commodities. Entre este ano e 2008 os preços não pararam de subir, quando, em razão do estouro da bolha imobiliária nos EUA e do agravamento da crise mundial, os preços caíram, para voltar a subir rapidamente em 2010 e voltar a cair desde 2012. Estes movimentos dão uma base mais consistente para se entender diversos fenômenos, como a popularidade dos governos do PT neste período e a razão sem volta do dissenso atual. [5]

Parece-nos que o processo brasileiro e o argentino carregam enormes semelhanças. Afinal, ambos os governos prometeram uma onda aparentemente anacrônica de desenvolvimento que chega a sua derrocada logo em seguida a sua pública inauguração. No momento subsequente, seja através do impeachment ou do voto, chegam aos governos representantes de uma política de ajustes que promoverá, em nome da recuperação econômica, a precarização dos mais variados aspectos da vida social.

Especificidades argentinas I: o “progressismo” do peronismo kirchnerista

Após essa aproximação analítica entre os dois países, indicamos algumas diferenças importantes no processo argentino em relação aos anos de petismo no planalto no Brasil.

Os Kirchner promoveram a estatização de uma série de serviços como os correios, os trens, uma parte da indústria petrolífera e dos serviços aéreos [6]. A estatização é algo impensável no caso brasileiro e com grande aparência progressista, afinal uma política estatista lembra-nos dos processos desencadeados pelas Revoluções Socialistas ao longo do século XX. E cabe pontuar que no Brasil, apesar dos governos petistas terem mantido um discurso estatista, sua política socioeconômica se estabeleceu a partir de uma ampliação considerável das parcerias público-privadas. Explícitas ou veladas, as PPPs, implementadas via Organizações Sociais (OSs), passaram a operar tanto nos serviços públicos quanto nos empreendimentos de grande monta, como no caso da exploração de petróleo do pré-sal.

Já as estatizações argentinas, a nosso ver, guardam um interesse por parte das empresas, pois estão em grande parte ligadas à intervenção estatal em setores de pouco interesse da iniciativa privada, consequência da enorme disparidade cambial entre pesos e dólares a partir de 2001, que dificultou o investimento privado no país.

Afirmou-se, por parte do governo, que se estaria buscando reparar a prestação precária de certos serviços como no caso dos transportes (trens e aviões) e dos correios. Ao mesmo tempo parecia estar presente o interesse estatal em setores estratégicos, como a indústria petrolífera. Todavia, para além das aparências iniciais e do quadro de “boas intenções” que compuseram a propaganda social dos governos kirchneristas, notemos que pouco depois da estatização da então deficitária YPF, maior empresa petrolífera do país, o governo concedeu sua concessão de exploração para a Chevron-Texaco, uma das maiores exploradoras internacionais de petróleo. Vale lembrar que a Chevron-Texaco enfrenta uma disputa judicial há vários anos em torno dos impactos ambientais causados no Equador, caso no qual o governo argentino interviu a favor da empresa, já que com esta iniciava negociatas para exploração de petróleo na região de Neuquén, sul da Argentina [7].

Aqui, mais uma vez, observamos a tentativa de implementar a política do “todos ganham”, na medida em que o governo compra serviços de empresas em crise, as remodela, para concedê-las em parte novamente à iniciativa privada, ao mesmo tempo em que melhoraria os serviços oferecidos à população argentina. Esta parece ter sido também a toada da estatização dos correios e das empresas de trem e avião. No caso da criação da Aerolineas Argentinas, criou-se de fato linhas aéreas antes inexistentes, conectando distintas regiões do país, porém vale lembrar que estas são acessíveis apenas aos estratos mais altos da população devido ao custo ainda alto das passagens aéreas.

Outro elemento distoante do caso brasileiro foi a tentativa de intervenção nas leis que regulam os meios de comunicação do país. A “lei de medios” previa a necessidade de controle dos monopólios midiáticos, em especial do grupo Clarín, enorme conglomerado de meios de comunicação que se posicionava frontalmente contra o kirchnerismo. Essa lei previa a divisão igualitária das concessões, sendo 1/3 para a inciativa privada, 1/3 para o Estado e 1/3 para organizações da sociedade civil. Nesse processo, o debate foi judicializado pelo Clarín e arrastou-se por alguns anos entre decisões, apelos e instâncias. Ao mesmo tempo, o governo buscou redirecionar as concessões para empresas privadas que declaravam seu apoio ao kirchnerismo, abriu canais de transmissão antes apenas disponíveis na TV a cabo, como o canal de esportes que transmitia as partidas de futebol (paixão nacional argentina) e criou a AFSCA (Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual).

Apesar do aparente avanço na luta contra os monopólios e a abertura democrática à participação nos meios de comunicação do país, vale mencionar que a abertura de concessões à sociedade civil em alguma medida facilitou a atuação aberta de movimentos sociais da comunicação que seguiam organizados desde 2001.

Porém, a possibilidade de conquistar uma concessão não considerava a diferença de condições entre um movimento social e uma ONG milionária, o que de fato dificultou a inserção ampla de organizações à esquerda no espectro audiovisual. Além disso, possibilitou-se o acesso às políticas de comunicação a organizações kirchneristas como a FARCO (Federación Argentina de Radios Comunitarias), ou próximas ao kirchnerismo, como a AMARC (Asosiación Mundial de Radios Comunitarias). Enquanto uma rede que reúne diversos grupos de audiovisual que compõem a esquerda independente, a RNMA (Rede Nacional de Medios Alternativos), por exemplo, não pode acessar os benefícios previstos na “lei de medios”, aparentemente impedidos por trâmites burocráticos.

Mesmo aqueles que acessaram tais benefícios, fizeram-no sob condições temporárias e atreladas ao fato do peronismo seguir no poder de Estado. Com a eleição do governo Macri, revoga-se a “lei de medios” e a lei argentina digital, que regularia a TV a cabo, e cria-se a lei de convergência das comunicações, segundo a qual os monopólios privados não necessitam mais se desmembrar.

Cria-se a Enacom (Ente Nacional de Comunicação) e o Ministério das Comunicações que substituem a AFSCA, criada pelos Kirchner. Há uma tentativa de resistência um tanto quanto personalista de Martin Savatela, diretor da AFSCA, que se mantem no edifício onde funcionava a entidade por dois dias. Porém, toda forma de resistência dura pouco, e os meios alternativos da esquerda crítica seguem resistindo, assim como o fizeram durante os anos de kirchnerismo.

Um último elemento que pretendemos mencionar como especificidade da política kirchnerista é a aprovação da lei de “matrimônio igualitário”, que prevê o reconhecimento legal da união de casais homossexuais. Esta foi uma conquista importante do movimento LGBT argentino. Vale mencionar que a Argentina é um país essencialmente católico, com uma presença ínfima de igrejas evangélicas. Entretanto, o conservadorismo propagado pela religião ainda está muito presente, principalmente se consideramos que, com a eleição do papa argentino, setores conservadores da igreja católica ganharam força no país. Ainda assim, não encontramos na Argentina o nível de inserção de grupos religiosos nos espaços de representação política e institucional como podemos facilmente identificar no Brasil.

Por fim, a política social dos governos Kirchner foi desenvolvida principalmente em resposta aos enormes índices de desemprego do início dos anos 2000 e à pressão exercida pelos movimentos piqueteiros nos anos seguintes. Entretanto, tanto estas medidas sociais quanto as acima citadas carregam consigo as contradições da tentativa de agradar interesses conflitantes, através de uma política de mediação, de conciliação de classes. Nesse sentido, toda e qualquer política social ou progressista acaba por conformar-se em uma política de contenção das lutas sociais e administração social da barbárie, portanto, em medidas pró-capital, de manutenção de uma ordem social desigual e em uma crise da qual não logramos visualizar os meios de superar.

Há grande semelhança entre as medidas destinadas aos movimentos piqueteiros e as políticas de contenção implementadas pelos governos petistas no Brasil, porém a Argentina possui suas especificidades. Tratemos destas.

Especificidades argentinas II: Argentina Trabaja?

Os piqueteiros foram a maior expressão da luta social argentina a partir do fim dos anos 1990. E, diferentemente dos movimentos sociais brasileiros que surgiram ainda na década de 1980 nas lutas pela redemocratização, é parte da história recente argentina. As primeiras manifestações dos piqueteiros apareceram embrionariamente em 1996, como consequência das políticas neoliberais implementadas nos governos Menem (1989-1999). Foram tentativas de contenção da crise hiperinflacionária de 1989 e tinham como marco o Plano de Convertibilidade (1 peso = 1 dólar) combinado com privatização de serviços públicos, abertura comercial e precarização trabalhista. Essas medidas não contiveram a crise que já se manifestava em âmbito mundial. Pelo contrário, parecem ter aprofundado os elementos que levaram a uma das mais graves crises econômicas da história argentina. A contração do PIB, dos lucros e dos salários desembocou em uma grave crise política com a queda de cinco presidentes em apenas dez dias, os quais tomaram medidas de urgência como a moratória da dívida e o confisco dos depósitos bancários. As consequências para os trabalhadores foram um altíssimo nível de desemprego [8], precarização das condições de trabalho e concentração de renda. [9] Forjaram-se diversas formas de resistência e luta social que se unificaram neste momento sob a consígnia “Que se vayan todos!”.

Um dos marcos do governo Menem foi a privatização das empresas de petróleo, em especial a YPF, a mesma “reestatizada” e depois entregue à Chevron nos anos kirchneristas. As privatizações engrossaram as fileiras do altíssimo desemprego do período e, como consequência, produziram manifestações populares históricas. Os primeiros piquetes massivos ocorreram a partir de 1996 nos estados petroleiros de Neuquen, Salta e Jujuy. Nesse momento surgiram como métodos de luta os piquetes como “cortes de ruta” (travamento de rodovias e ruas) e se conformou uma tradição de luta radicalizada que transcorreu os anos seguintes. Os piquetes se concentraram inicialmente no interior do país, e em seguida se expandiram para a “conurbação boenaerense”, a “grande Buenos Aires”. Em 2001, aí se concentrava 36% da população total e 45% da população urbana do país. Essa região sofreu diretamente com o processo de desindustrialização (trabalhadores da indústria caem de 31% para 17% da PEA – População Economicamente Ativa) e é foco de altos índices de desemprego, que chega a 22% em maio de 2002 [10]. Em 1999 terminou o mandato de Carlos Menem e em 2001 se intensificou o processo de crise econômica e política que levou à queda seguida de vários presidentes. De La Rúa (1999-2001) tentou garantir seu governo construindo uma Frente Ampla, a Alianza, com os partidos conservadores, mantendo o mesmo ministro da economia do governo Menem, Domingos Cavalo, membro da escola neoliberal de Chicago.

O movimento piqueteiro passou a exigir a ampliação de políticas sociais, os chamados “Planes Sociales”, e que esses fossem repassados diretamente e administrados pelos movimentos, sem a intermediação das redes clientelistas controladas pelo Partido Justicialista, o que se expressava na figura de intermediadores que atuavam nos bairros periféricos, os chamados “punteros”. A conquista dessa relativa autonomia durante o governo De la Rúa, fortaleceu e ampliou o movimento piqueteiro para todo o território nacional. Muitas são as organizações piqueteiras que surgiram neste período pós-2001, contudo, nos anos seguintes, também muitas desapareceram e a maioria sofreu diversos rachas e dissidências. A influência do Governo Kirchner nesse processo de fragmentação do movimento piqueteiro parece ser direta e deliberadamente uma política de governo como forma de controle das organizações e estabelecimento de uma certa “normalidade” social. [11]

Identificamos dentre essa gama de organizações duas que são bons exemplos de subordinação direta ao governo kirchnerista: a Federación Tierra y Vivienda (FTV) e o Movimiento Barrios de Pié (MBP). Estas são consideradas significativas no movimento piqueteiro e tiveram uma relação estreita com os governos Kirchner, compondo a Frente por la Victoria, coligação político eleitoral encabeçada pelo Partido Justicialista, o partido peronista por excelência.

Estas organizações não apresentam um projeto que reúna a maior parte da esquerda e estabeleça uma relação prévia com o Partido Justicialista de Kirchner, como é o caso do Programa Democrático Popular no Brasil, que aglutinou ao seu entorno as principais organizações da esquerda dos últimos trinta anos (CUT, PT e MST). Contudo, não podemos deixar de mencionar a influência do “peronismo”, tradição populista que se iniciou na década de 1940 com o governo de Juan Domingo Perón (e a primeira-dama Evita Perón) e que é um marco quanto às conquistas para os trabalhadores. Os Kirchner clamavam que seu governo seria a encarnação do verdadeiro peronismo e que estariam fundando um Estado de Bem-Estar Social na Argentina. Assim, a referência histórica é importante, pois influencia diretamente as organizações de esquerda imersas no ideário popular. A região de La Matanza do conurbano boenaerense, uma das regiões onde atuam a FTV e o MBP, é uma região com forte tradição peronista. [12]

Assim, após a chegada dos Kirchner ao poder, observamos a constituição de uma relação com o movimento piqueteiro muito parecida com a relação entre os governos petistas e os movimentos sociais brasileiros. A primeira constatação é o direcionamento de recursos públicos assistenciais a organizações que se alinham ao projeto da Frente para la Victoria, e redução de recursos a organizações que não fazem parte deste projeto nacional e popular. A FTV tem uma característica emergencial e atrelada, desde seu nascimento, à estrutura estatal, focada em demandas imediatas, que vão de planos sociais (bolsas) e ajudas alimentícias (comedores) até melhoria da infraestrutura dos bairros. A relação direta com o governo Kirchner pode ser atestada pelo número de Planes Sociales obtidos pelo movimento. Em uma ocasião, movimentos críticos ao kirchnerismo, o Movimiento Teresa Rodriguez e a Corriente Clasista y Combativa, receberam respectivamente 5.000 e 45.000 “planes”, enquanto a Federación Tierra y Vivienda recebeu nada mais nada menos que 80.000. [13] Além disso, esses movimentos peronistas/kirchneristas, FTV e MBP, indicaram militantes para trabalhar diretamente como funcionários nas esferas federal, estadual e regional. O Movimiento Barrios de Pié passou a integrar uma secretaria do Ministério de Desenvolvimento Social da nação e alguns dirigentes passaram a executar tarefas diretas como funcionários públicos. Assim se construiu uma referência forte nesses militantes, em especial em Luís D’Elía, da FTV, que ocupou cargos públicos como o de vereador, deputado estadual, subsecretário da Secretaria de Terra e Habitação, além de ter sido candidato a governador de Buenos Aires. Vale por fim mencionar que, nos anos subsequentes, o governo criou seu próprio movimento piqueteiro, o MTD Evita.

Aqui há um paradoxo da relação entre piqueteiros e Estado que achamos fundamental ressaltar. Essa relação estabelecida através dos Planes potencializou a emergência e consolidação de organizações piqueteiras, porém, nos anos subsequentes foi também o principal motivo de seu enfraquecimento, fragmentação e desmobilização. Mesmo alguns dos movimentos piqueteiros que se mantiveram críticos ao kirchenrismo se converteram em alguma medida, e à revelia de sua vontade, em gestores da miséria social que desejam combater.

A relação atual com o governo Macri não é muito distinta da estabelecida com os Kirchner para estes movimentos que se mantêm ainda com alguma autonomia em relação às estruturas estatais. Não é à toa que essa tenha sido a toada do discurso de muitos militantes em espaços de debate no “Acampe Plaza de Maio”: “lutamos nos governos Kirchner, seguiremos lutando no governo Macri”. Uma reivindicação central dos militantes é o aumento do valor das bolsas trabalho, os Planes Sociales que compõem o programa “Argentina Trabaja”, criado durante a gestão Kirchner. Há também uma reivindicação de incorporação dos trabalhadores das cooperativas estatais, no sentido de alcançar a superação da terceirização dos serviços e precarização do trabalho. Todavia, ainda que seja uma importante bandeira a ser levantada, é uma reivindicação que emerge em um contexto adverso, já que Macri demitiu, só nesse ano de 2016, 100.000 funcionários públicos com o argumento de que era necessário um corte de gastos devido ao desequilíbrio das finanças estatais.

Diferentemente da enorme desagregação da base dos movimentos sociais no Brasil, na Argentina os movimentos sociais ainda permanecem com um nível de territorialização considerável, o que parece ser possível se manter principalmente devido aos próprios Planes concedidos pelo Estado. Ainda que sejam concedidos em menor quantidade às organizações críticas ao peronismo, induziram à constituição de cooperativas de trabalho organizadas autonomamente por esses movimentos sociais.

Neste ponto, deparamos com dilemas devido à relação de dependência, ainda que crítica, do financiamento estatal, os quais nos lembram das relações contraditórias dos sem-terra com os programas de crédito rural e dos sem-teto que se converteram em “entidade” para acessar as moradias do “Minha casa, minha vida” durante os governos petistas. Ao se colocarem como interlocutores do Estado e administradores de uma verba – no caso dos piqueteiros destinada a bolsas-trabalho -, os dirigentes dos movimentos sociais e suas lideranças de base passam a ser os “cadastradores” dos beneficiados pela política social, isto é, os que mapeiam a pobreza nas regiões mais críticas e selecionam aqueles que irão receber o auxílio, os “verdadeiramente” necessitados. É importante notarmos que essas reorganizações dos movimentos para acessar os recursos estatais respondem em grande medida às necessidades de uma base social territorializada. Um movimento por casa deve ser capaz de efetivar a conquista por casa; um movimento que luta pela terra deve ser capaz de efetivar a posse da terra, e mesmo a estrutura para que o trabalhador possa ali viver e trabalhar; e um movimento por emprego deve ser capaz de viabilizar estes postos de trabalho. Tudo isso, entretanto, se dá por meio de termos impostos pela institucionalidade estatal, e aí não há por onde correr, ao menos não aparentemente. No caso dos piqueteiros há um outro elemento relevante, a disputa do território. Os “punteros”, já citados anteriormente, são atravessadores que mediaram historicamente a relação da população pobre com o Estado, conformando uma relação profundamente assistencialista. A demanda da gestão de recursos por parte dos movimentos é, em alguma medida, uma tentativa de eliminar essa figura que nada contribui para a luta social crítica, já que promove um desserviço em relação à construção de relações de autonomia da população local.

Entretanto, o caso do movimento piqueteiro, incluindo os setores mais à esquerda, está imerso em relações de dependência que se ocultam por trás da aparência da conquista de autonomia na gestão dos recursos e das lutas. Há uma “autonomia” em relação ao Estado na definição de quantas horas de trabalho serão cumpridas por cada trabalhador, o que em geral, aparentemente, é compreendido pelos militantes como uma “conquista”. O gerenciamento do processo de trabalho (tempo de trabalho, produtividade, justificação de ausências etc) está assim a cargo do movimento social e suas estruturas organizativas. Há inclusive relatos de que algumas organizações chegaram a aplicar multas (como desconto salarial) em trabalhadores que se ausentavam do trabalho ou mesmo não participavam de reuniões políticas organizativas locais que envolviam direta ou indiretamente a cooperativa.

Saltam aos olhos as contradições em que estão metidos os movimentos piqueteiros, não tão distintas das identificadas nos movimentos sociais brasileiros. Os piqueteiros se mantêm territorializados e com uma base social relativamente consolidada, porém isso é possível em grande medida justamente por sua “juventude” (já que se consolidam ao longo dos anos 2000) e por terem conseguido se organizar em cooperativas de trabalho (produção e serviços) nas periferias urbanas. Entretanto, em meio à formação política de militantes, da necessária resposta econômica aos trabalhadores desempregados, e mesmo a resistência crítica ao kirchnerismo, acabam por cumprir o papel de gestores de uma miséria social promovida pelas estruturas que pretendem combater.

Desde que assumiu o governo via voto popular, em fins de 2015, Macri tem enfrentado um ritmo galopante de aumento do desemprego. E, portanto, não deixou de conceder novos Planes para as organizações de desempregados: 10.000 no total, sendo 1.400 para os movimentos da “esquerda independente”. Está claro que essas bolsas são insuficientes para conter os níveis de desemprego atuais. Como vimos no início deste texto, só durante o governo Macri foram demitidos 150.000 trabalhadores.

Assim, os movimentos tornam-se aglutinadores daqueles que, na luta pela sobrevivência, buscam uma bolsa-trabalho, sem intenção de se organizar politicamente, legitimando uma política social compensatória, temporária e insuficiente para responder às necessidades básicas da população argentina.

Estas contradições não são exclusividade da realidade argentina, nelas estão imersos os movimentos sociais territorializados que obtiveram conquistas na última década durante os governos latino-americanos dos anos 2000. Não é necessariamente portanto uma questão de culpa ou peleguismo de suas direções, ainda que alguns casos possam ser assim explicados, é em geral um condicionamento de um tempo histórico mediante a realização de uma estratégia de luta com perspectivas anticapitalistas e radicais, mas que parece ter infelizmente fracassado em seus propósitos originários. Ainda, é claro, que não saibamos o futuro das lutas sociais na Argentina, arriscamos imaginar seu trilhar, ao seguir na toada atual, como não muito distinto dos movimentos sociais brasileiros que se amoldaram à ordem, como é o caso do maior movimento social da América Latina, o MST [14].

“Nunca Macri” e “Temer Jamais”

“Nunca Macri” foi uma consígnia utilizada durante a última disputa eleitoral por setores da centro-esquerda argentina, isto é, setores que buscam ainda disputar o peronismo como ideologia e forma de fazer política, dentro ou fora do Partido Justicialista. Ainda assim, Macri venceu as eleições. Chegou ao poder por meio do voto popular. Muito diferente do caso brasileiro, impugnado pelo impeachment de Dilma Roussef, Macri passou a realizar a toque de caixa ajustes e reformas muito semelhantes às promovidas pelo governo “golpista” Temer. Sejam os governos dignos ou indignos, legítimos ou ilegítimos, ambos estão aí para implementar as medidas exigidas pelo capital, nacional e/ou internacional, produtivo e/ou financeiro, argentino, brasileiro, latino-americano, yankee. Tudo isso se dá mediante uma crise econômica mundial que migra pelo globo pairando e tomando setores inteiros via bolhas especulativas, que passam da Nasdaq ao mercado imobiliário norte-americano [15], pela indústria chinesa [16], chegando às commodities dos países periféricos, e tomando de assalto Estados Nacionais, do centro e da periferia, que assumiram para si dívidas sem precedentes em sua história, abarcando porcentagens estratosféricas de seus respectivos PIBs.

Tudo o que é necessário deve ser feito em nome da salvação do sistema econômico nacional e seus efeitos inegáveis no sistema mundial, o que atingiu um nível de integração nunca antevisto, nem mesmo por Lenin ou Hilferding, que precocemente descreveram o sistema financeiro mundial e sua integração com a estrutura produtiva. A burguesia mundializada interfere, mais uma vez, na dinâmica econômica e política da latinoamérica. O curioso é que, de fato, nunca deixou de fazê-lo, afinal por qual motivo abandonaria seus focos de interesse à ingerência de supostas burguesias locais? Diga-se de passagem, estas estão ainda vivas justamente pela sua fusão absoluta e irreversível com o mercado de capitais: nacionais, internacionais, produtivos, especulativos.

Seja o momento Petismo-Kirchnerista, seja o Temer-Macrista, sempre estiveram aí presentes os interesses da valorização do valor, da pujança sistêmica, do controle social, das aves de rapina que mantêm seus interesses em voga, seja em momentos de “welfare” ou de “warfare”, na guerra de todos contra todos ou na “pax social” [17]. Não são apenas momentos distintos e subsequentes que servem ao mesmo propósito, mas de fato inseparáveis. E têm sido apresentados pela esquerda como polos opostos, o que tem sustentado uma “auto-chantagem”: a necessidade de apoiar um afamado petismo que surpreendentemente se renova mediante a ameaça de “retorno” da direita liberal e neofascista ao poder de Estado. Entretanto, nos parecem polos, sim, distintos, porém desgraçadamente complementares, que se fortalecem e revivem apenas mediante a constituição e fortalecimento de seu polo opositor.

Esta condição já foi descrita há décadas por Adam Przeworski, ex-comunista arrependido, em suas sinceras análises sobre o papel da social-democracia europeia. Com a diferença de que, aqui, o que tivemos nos “progressistas” anos 2000 estava muito longe de um estado de bem-estar como o europeu do século XX. As medidas de reparação social implementadas pelo progressismo latino-americano são eliminadas com rapidez ainda maior que sua implementação, já que nem ao menos se aproximaram de mexer na estruturas do Estado e de sociedades tão desiguais. Não só essas bolsas, programas, benefícios são tendencialmente eliminados, como a estrutura anteriormente existente, já precarizada em termos de direitos trabalhistas e sociais, passa a ser atacada e desmontada.

“Nunca Macri” e “Temer Jamais” (ou “Fora Temer”, ao gosto do freguês) criam um nevoeiro que personaliza inimigos e encobre a responsabilidade histórica de uma esquerda que abandonou a luta de base radicalizada contra o Estado e o capital, progressivamente institucionalizou-se, transformou seus militantes em gestores da miséria, rebaixou pateticamente suas expectativas e estabeleceu alianças com setores burgueses, que agora supostamente “traem” o governo no caso do impeachment de Dilma Roussef.

As políticas de austeridade que estão sendo implementadas – não apenas por Macri e Temer, mas por muitos Estados, inclusive europeus – têm a força perversa de condicionar as lutas sociais. Na medida em que retiram aquilo que já era uma conquista de anos anteriores, circunscrevem a luta na tentativa de recuperar o que que se perdeu, e mesmo defender a manutenção de uma estrutura já falida, ao lutar para impedir que seja ainda mais precarizada, como é o caso do ensino público brasileiro, por exemplo. Aqui nos encontramos limitados pelo risco de “rodar em falso”, presos no tempo do interesse imediato de manter as coisas como estão para não ficarmos ainda pior. Os desafios estão à mesa. Estes limites estão aí para controlar toda e qualquer forma de luta que se apresente. Uma conjuntura válida inclusive para alguns movimentos que ousaram romper recentemente com dinâmicas já relativamente controladas da luta social das décadas anteriores, questionando as antigas formas de luta e a relação dos movimentos sociais com o Estado, como o Movimento Passe Livre com a tática da revolta popular, ocupando as ruas em 2013 [18] e o movimento secundarista com a ocupação das escolas em 2015 [19].

Para não deixar de lado nossos inseparáveis jargões, compondo o receituário que nós, da esquerda, não cansamos de consultar, agora tragédia e farsa parecem ocorrer simultaneamente, uma complementando a outra, em um processo de desagregação social que apresenta à esquerda e aos trabalhadores latino-americanos um desafio impensado. Entretanto, parece-me que não é mais possível abrirmos mão e taparmos os olhos para o desafio de enfrentarmos a nós mesmos e a forma como até hoje fortalecemos o monstro contra o qual lutamos. Afinal, como diria um camarada sobrevivente da fragmentação das lutas sociais no Brasil: o que não fazer?

Notas:

[1] Estas e outras informações sobre o Acampe da Praça de Maio podem ser encontradas aqui.

[2] Ana Elisa Corrêa, La nueva gestión de la miseria: piqueteros y sin-tierra frente a los gobiernos neo-desarrollistas, Revista Herramienta, v. 16, 2015.

[3 e 4] José Luis Fiori, As vitórias da esquerda na América do Sul, Margem Esquerda nº 9, Dossiê: América Latina: continuísmo ou rupturas?, 2007, p. 58.

[5] Marildo Menegat, O fim da gestão da barbárie, Revista Territórios Transversais nº 3, São Paulo, setembro de 2015.

[6] “Estatização ganha fôlego com Kirchner”, Folha de S. Paulo, outubro de 2004.

[7] Ver aqui.

[8] Até 1986 os índices de desemprego nunca tinham ultrapassado os 6%, já a década de 1990 é marcada pelo índice de desemprego de dois digitos (dados de Amorim, 2006).

[9] Ver M. Féliz e E. López, Proyecto Neodesarrollista en Argentina, Buenos Aires: Colecion Cascotazos, Editorial El Colectivo y Ediciones Herramienta, junho de 2012.

[10] Amorim, Movimentos de desempregados e (des)mobilização: escruzilhada das políticas sociais no governo de Néstor Kirchner, em: F. Rodrigues; H. Novaes; E. Batista (orgs.), Movimentos Sociais, Trabalho Associado e educação para além do capital. São Paulo: Outras Expressões, 2012.

[11] M. Svampa, Las Fronteras del Gobierno Kirchner: entre la consolidación de lo viejo y las aspiraciones de lo nuevo, em: Cuadernos del CENDES, maio-agosto, vol. 24, nº 65, Universidad Central de Venezuela, Caracas, Venezuela, 2007, p. 39-61.

[12] M. Thwaites Rey e M. Cortés, Los movimientos sociales y el Estado: tensiones y contradicciones de una relación. Notas sobre la Argentina reciente, em: Simposio Nº10: “El rol de los movimientos y organizaciones sociales en la actual coyuntura política latinoamericana. Su relación con el Estado. ¿Integración o conflicto?”, Instituto de Estudios de América Latina y el Caribe, UBA, 2012.

[13] Ver, novamente, o artigo de Amorim.

[14] Sobre o que ocorreu com o MST ver Passa Palavra, MST S/A.

[15] Um interessante vídeo sobre a transferência das bolhas especulativas no mundo é o “Overdose: the next financial crisis”.

[16] Sobre a bolha especulativa chinesa ver “ESTARÁ A CHINA NA IMINÊNCIA DE UM COLAPSO?” de Tomasz Konicz; e “Economista americano prevê fim do ‘milagre chinês’ e colapso para mineradoras” por Marcos Mortari, 17/10/2013.

[17] Referências a trechos do texto “Depois de junho a paz será total” em Paulo Arantes, “O novo tempo do mundo”, Boitempo, 2014.

[18] Ver Caio Martins e Leonardo Cordeiro, “Revolta popular: o limite da tática”, publicado no Passa Palavra, maio de 2014.

[19] Ver Danielle Maciel e Tatiana Oliveira, “Saresp e Reorganização do ensino: faces do projeto escola-empresa”, publicado no Passa Palavra, novembro de 2015.

4 COMENTÁRIOS

  1. Interessante o texto, sou brasileiro e moro desde 2009 na Argentina e pude observar algumas das dinâmicas apontadas no texto. No entanto é importante fazer a correção no nome do general Perón, que se chamava Juan Domingo, e não Aníbal como no texto.

  2. Já que mexeram recentemente na estrutura do site, deixo um sugestão:
    Não sei exatamente como funciona para incluir o corpo do texto na página, mas seria bacana se as notas tivessem links, seja para te mandar um outro site, seja para te mandar até o fim da página e te colocar de volta na leitura.

  3. Caro Renato Borghi, obrigado pela advertência. Corrigimos o erro.

    Sugestão, o site está em reformulação e iremos pensar em como incluir sua proposta.

    Cordialmente,
    Coletivo Passa Palavra

  4. Some-se às contradições entre autonomia e dependência estatal 2 questões: a primeira é que praticamente todos estes “movimentos sociais” são frentes territoriais de organizações políticas com diretrizes ideológicas as vezes bem explícita, por exemplo a FOB que é anarquista e o Mov. Tereza Rodriguez, guevarista.
    Por outro lado, estas organizações que gestionam cestas básicas e planos sociais em espécie (comida) são as que garantem a comida, ao menos as primeiras refeições, de diversas ocupações de fábrica e lugares de trabalho.

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