A aprovação do La Vue foi mais um caso que demonstra a atuação do IPHAN Bahia em favor de interesses do mercado imobiliário. Por Articulação de Movimentos e Comunidades do Centro Antigo de Salvador, CEAS, IDEAS e Rio Vermelho em Ação

“Pense num absurdo; a Bahia tem precedente”. A velha frase de Octavio Mangabeira nunca se aplicou tão bem a um dos muitos absurdos ocorridos em terras baianas quanto no caso da interferência do ministro golpista Geddel Vieira Lima na liberação da construção do edifício La Vue (“a vista”, em francês), denunciado pelo golpista demissionário Marcelo Calero; assumiu em público que teve medo de ser alvo de alguma investigação e saiu do governo feito o defunto alcaguete de Bezerra da Silva (quem duvida, clique aqui e leia mais). Estamos, claro, no momento de denúncias e acusações recíprocas por parte dos envolvidos, mas cabe resgatar alguns fatos – porque mesmo os absurdos ocorridos na Bahia têm precedentes, também absurdos.

IPHAN e La Vue

A aprovação do La Vue foi mais um caso, entre vários, que demonstram a atuação do IPHAN Bahia em favor de interesses do mercado imobiliário.

Em janeiro de 2015 foi finalizado e enviado ao então Superintendente do IPHAN-BA, Carlos Amorim, o parecer para delimitação de uma poligonal de entorno, como instrumento de salvaguarda de bens protegidos por tombamento em Salvador. Tratava-se de edifícios e conjuntos arquitetônicos e paisagísticos situados entre a ladeira da Barra, seguindo da Igreja da Vitória pela orla até a região do Morro do Cristo. O estudo assinado pelo arquiteto Felipe Musse, então Chefe do Escritório Técnico do IPHAN em Porto Seguro, foi elaborado junto à equipe técnica[1] da Superintendência do IPHAN-BA.

O documento afirma utilizar como base a Nota Técnica nº 001/2011/DEPAM[2], o Parecer Técnico 003/2012 DEPAM, o Decreto Lei nº 25 de 1937, e o diagnóstico desenvolvido pelo órgão em 2009. Segundo o parecer 0012/2015 foi considerado como parâmetro para delimitação desta poligonal “preservação das visuais, de e para os bens, e dos elementos que influenciam ou que possam prejudicar nessas visuais, tais como o gabarito, volumetria, revestimentos e engenhos publicitários, pois, conforme o levantamento realizado, a vizinhança é composta predominantemente por edificações contemporâneas cujas características não interessa preservar” (pág. 01). A proposta da poligonal foi dividida em 6 setores, sendo que o setor 4, compreendido entre a Igreja de Santo Antônio da Barra, o Forte de São Diogo e o Morro da Mansão Mariani, permite um gabarito máximo de dois pavimentos acima da Ladeira da Barra, objetivando “(…) homogeneizar as formas de intervenção e evitar a ampliação dos imóveis existentes (…)”(pág.32). Este setor compreende parte do terreno destinado ao La Vue, que pretende alcançar aproximadamente 100 metros de altura.

Apesar de o estudo para delimitação da poligonal da Barra ter sido iniciado em meados de 2009, e o parecer final da poligonal enviado ao DEPAM Brasília em 2015, o empreendimento La Vue foi aprovado em 2014 pelo então Coordenador-técnico e atual superintendente do IPHAN-BA, o engenheiro Bruno Tavares, sem aprovação da poligonal em nível federal. O parecer favorável do órgão (nº 0627/2014) foi referendado pelo então Superintendente Carlos Amorim, alegando “tratar-se de intervenção em área fora de poligonal de entorno dos bens tombados da Barra, além de estar em área com ocupação bastante heterogênea”.

A autorização para a construção do La Vue ocorreu apesar do parecer contrário do ETELF (Escritório Técnico de Licenças e Fiscalização, criado com representações das instâncias municipal, estadual e federal de salvaguarda do patrimônio, em atendimento à Lei Municipal nº 3.289/83). O ETELF, certamente não por coincidência, foi extinto em outubro de 2014, após o parecer contrário ao La Vue.

No início do mês de dezembro de 2015, o Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento Bahia (IAB-BA) iniciou tratativas com o IPHAN Nacional, solicitando via ofício e em caráter de urgência a revisão de parecer técnico da Superintendência do IPHAN-BA, observando as legislações vigentes, das variáveis e fatores envolvidos na aprovação do projeto. Nesse mesmo mês, o IAB-BA requereu, liminarmente, a suspensão temporária da execução das obras e da comercialização de novas unidades, pedido posteriormente indeferido após manifestações do IPAC, do IPHAN e do Município de Salvador. O IAB-BA recorreu ao Tribunal Regional Federal da Primeira Região, mas o pedido de renovação de liminar foi indeferido.

Ainda em dezembro foi realizada reunião com a presidente do IPHAN para reforçar a solicitação oficiada pelo IAB-BA, sendo-lhe entregue em mãos laudo técnico elaborado pelo professor da Faculdade de Arquitetura da UFBA, Heliodório Lima Sampaio, avaliando os impactos do empreendimento à paisagem e aos bens tombados. Em maio de 2016 o IPHAN Nacional emitiu o Parecer nº 003-2016/GAB.GEPAM recomendando a revogação do parecer do IPHAN-BA, oferecendo ao empreendedor a possibilidade de apresentar novo projeto, desta vez com altura máxima equivalente a dos edifícios vizinhos de maneira a não mais causar impacto nos bens tombados; recomendou ainda a imediata reavaliação da minuta de portaria contendo critérios para preservação da área de entorno dos bens tombados federais (processo nº 01502.002472/2013-31).

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No dia 10 de novembro, o Ministério Público Federal ajuizou Ação Civil Pública, requerendo a suspensão imediata da execução das obras do La Vue até o julgamento definitivo da ação civil pública, sob pena de aplicação de multa diária no valor de R$ 5.000,00; a suspensão, também imediata, da comercialização das unidades habitacionais do La Vue até o julgamento definitivo da ação civil pública, sob pena de aplicação de multa no valor de R$ 100.000,00; e determinando que as empresas Porto Ladeira da Barra Empreendimentos Spe Ltda. e COSBAT Construção e Engenharia Ltda. depositem em conta judicial os valores referentes à comercialização das unidades habitacionais do empreendimento La Vue eventualmente já comercializadas.

Este vaivém de fatos acontecia enquanto o golpista Geddel Vieira Lima, segundo o golpista demissionário Marcelo Calero, o pressionava para a liberação da construção do La Vue. Mas não pensem que o problema está em Geddel, em Calero, na Cosbat, no La Vue. Não pensem, também, que a recente liminar da Justiça Federal suspendendo a construção do La Vue – que comemoramos, com certeza! – é a solução definitiva para o caso. Não. O problema é mais embaixo.

Poder Público e mercado imobiliário em Salvador

Os conchavos dos poderes públicos com o capital imobiliário em Salvador já vêm sendo apontados há tempos por movimentos sociais.

Para ficar no caso La Vue, quando a Prefeitura concede um alvará de construção, isto deveria significar que o empreendimento está respeitando a regulação urbanística e um ordenamento do uso e ocupação do espaço orientado pelo princípio do direito à cidade. Infelizmente, em Salvador são frequentes exemplos de ambiguidades, inconformidades, descumprimentos, ilegalidades e ou arbitrariedades da regulação urbanística vigente. Neste sentido, nos chama atenção o fato da SUCOM ter concedido o alvará de construção para a construção do empreendimento La Vue sem respeitar os preceitos de ordenamento territorial estabelecidos pelo próprio município! O La Vue se localiza em Área de Borda Marítima – ABM, compondo a faixa de terra de contato com o mar, compreendida entre as águas e os limites por trás da primeira linha de colinas ou maciços topográficos que se postam no continente. A definição de ABM busca preservar a imagem ambiental urbana que define a silhueta da Cidade. O empreendimento La Vue com a sua verticalização permissiva orientada para os interesses privatistas do mercado imobiliário, se confronta com um ordenamento territorial sensível com a proteção da paisagem singular de Salvador e do seu acesso público.

Caso bastante semelhante havia ocorrido alguns anos antes, quando da emissão da autorização para as alterações do empreendimento de luxo Cloc Marina Residence (localizado na Rua Democrata, n. 45, bairro 2 de Julho, constituído por um casarão e seis edifícios), que teve suas últimas alterações reprovadas pelo ETELF através do parecer nº 0317/09 e aprovadas unilateralmente pelo IPHAN-BA na gestão do Superintendente Carlos Amorim (parecer de nº 0366/09), desrespeitando o ETELF e a Lei Municipal nº 3.289/83. Este projeto e a atuação do IPHAN-BA são objeto da Ação Civil Pública nº 18848-10.2013.4.01.3300, movida pelo Ministério Público da Bahia.

Outro caso amplamente denunciado por movimentos sociais e instâncias da sociedade civil foi a autorização expedida pelo IPHAN-BA para demolição de 31 casarões históricos em maio de 2015, dentro de um perímetro de tombamento no Centro de Salvador. O IPHAN-BA agiu de maneira oportunista, em conluio com a Prefeitura Municipal de Salvador, através da SUCOM, aproveitando o período de chuvas em Salvador para “limpar a área” após décadas de abandono e degradação do patrimônio histórico. Além de mortes por desabamento, assistimos com grande indignação tentativas de intimidação e expulsão de pessoas que moram e trabalham há décadas em vários pontos do Centro Antigo e a demolição de imóveis sem a apresentação dos laudos técnicos, também eles assinados pelo engenheiro Bruno Tavares, que supostamente subsidiaram as referidas autorizações.

No II Ato Nacional da Jornada de Lutas da Frente de Resistência Urbana, em 06/08/15, o IPHAN-BA foi ocupado pelo Movimento dos Sem Teto da Bahia (MSTB), Artífices da Ladeira da Conceição, Movimento Nosso Bairro é 2 de Julho (MNB2J), entre outros movimentos e moradores do Centro Antigo de Salvador, tendo como principal reivindicação a saída de Carlos Amorim e Bruno Tavares. Esses movimentos também denunciaram à Comissão de Cultura da Câmara de Deputados a demolição dos 31 casarões e a expulsão e intimidação de moradores pela Prefeitura e IPHAN, que em resposta realizou audiência pública em 24/09/2015. Após a audiência, os movimentos emitiram nota de repúdio, apontando a devastação do Centro Antigo pelas articulações do IPHAN, IPAC e Prefeitura.

A gestão de ACM Neto na Prefeitura Municipal de Salvador tem legitimado a atuação do capital imobiliário na cidade de forma muito contundente. Destaca-se a edição de leis municipais como a 8.655/14, que desafetou e autorizou a alienação de 61 imóveis públicos de uma só vez em áreas valorizadas da cidade; a lei que instituiu o Programa de Incentivo ao Desenvolvimento e Inovação (PIDI), que trata de atração de investimentos e empreendimentos para áreas como orla e Centro Histórico, utilizando imóveis subutilizados ou vazios, através de incentivos fiscais a empresas; e o novo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano que traz três mega poligonais, englobando o Centro Antigo e a Orla Atlântica, com indicação de Operação Urbana Consorciada.

Já o Governo da Bahia assume, em seu Plano de Reabilitação Participativo do Centro Antigo de Salvador, que 3 mil famílias de baixa renda moradoras do Centro Histórico serão removidas para as franjas do Centro Antigo, e outras 5 mil famílias com renda superior a 5 salários mínimos serão atraídas para morar no Centro Histórico. E mesmo as obras habitacionais para comunidades como Vila Nova Esperança, Chácara Santo Antônio, Pilar e São Dâmaso custam a sair, como que para vencer o povo pelo cansaço e fazê-los desistir de morar no Centro.

Como se vê, são absurdos de cima a baixo, todos à vista para quem queira vê-los. E não cansaremos de denunciá-los e combatê-los, até conseguirmos superar todos os obstáculos que nos impedem de construir uma cidade mais justa, livre e solidária – desde o racismo institucional e a segregação socioespacial até os conchavos palacianos. E assim seguiremos!

ASSINAM ESTA NOTA:

1) Articulação de Movimentos e Comunidades do Centro Antigo de Salvador, composta por:

  • Artífices da Ladeira da Conceição da Praia
  • Associação Amigos de Gegê da Gamboa de Baixo
  • Coletivo da Vila Coração de Maria
  • Movimento dos Sem Teto da Bahia (MSTB)
  • MNB2J – Movimento Nosso Bairro É 2 de Julho

2) Centro de Estudos e Ação Social (CEAS)

3) Instituto de Desenvolvimento de Ações Sociais (IDEAS)

4) Rio Vermelho em Ação

Notas:

[1] “Participaram da elaboração da poligonal e da respectiva definição dos critérios de intervenção o arquiteto Felipe Musse de Oliveira, Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UFBA – especialidade: Gestão de Sítios Históricos), a arquiteta Karina Monteiro de Lira (Doutoranda e mestra em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA, Especialista em Intervenções em áreas históricas – FADIC e em Gestão do patrimônio cultural integrado na UFPE) – atualmente é Coordenadora de Identificação e Proteção da Coordenação-Geral de Cidades, do Departamento do Patrimônio Material e Fiscalização do IPHAN em Brasília e arquiteta Flor-de-Lis Dantas e Cardoso (Arquiteta e Urbanista, pela UNIT; especialista em Conservação e Restauração, pela UFBA e em Artes Visuais, pela UFS).

A elaboração dos estudos contou ainda com a Supervisão do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do IPHAN, através da então Coordenadora Geral de Normatização e Fiscalização do DEPAM, Carla Rabelo Costa, que visitou as áreas objeto das delimitações nesta Superintendência” (ver aqui).

[2] DEPAM – Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do IPHAN Nacional.

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