Por Passa Palavra
Uma situação inusitada ocorreu recentemente em uma manifestação na capital paulista. Um grupo de estudantes fez um ato durante um seminário sobre educação organizado por empresas (Itaú Unibanco, Insper e Folha) para protestar contra a privatização do ensino público. Eis que descobriram, no panfleto oficial do evento, uma página inteira elogiando o movimento secundarista:
“Maior participação dos jovens na vida escolar pode melhorar gestão. (…) O movimento de ocupações de escolas por jovens em diversos estados reforçou a ideia de que não faz mais sentido algum, em pleno século 21, pensar em uma educação que não valorize o protagonismo dos estudantes em decisões que afetam suas vidas.”
Em uma das mesas, falava Raquel Teixeira, Secretária de Educação de Goiás, que encabeça o projeto de transferência da gestão das escolas para OSs (Organizações Sociais). Exatamente no dia seguinte àquele curioso seminário, Raquel mandaria a Polícia Militar despejar e prender sem autorização judicial dezenas de estudantes que ocupavam o Colégio Estadual José Carlos de Almeida, em Goiânia. Algum tempo depois, seria descoberta sua participação em um grupo de WhatsApp com a Secretaria de Segurança Pública para vigiar e perseguir estudantes e trabalhadores da educação.
* * *
Nesse episódio, chama a atenção o óbvio cinismo dos gestores – que nos salões elogiam o “protagonismo estudantil” e, na hora do conflito, mandam a polícia. Mas, se realmente quisermos entender essa contradição, não podemos resumi-la à simples “hipocrisia” de quem diz uma coisa e faz outra. O que vemos aí, na verdade, é um retrato do próprio funcionamento do capitalismo, que nunca dissocia repressão e cooptação.
Na medida em que as lutas da classe trabalhadora – e incluímos aí os estudantes, que são trabalhadores sendo produzidos – colocam em xeque as relações de exploração, o capitalismo precisa derrotá-las. Seu trunfo decisivo, porém, está em combinar a violência à assimilação: não se trata simplesmente de destruir os movimentos, mas de ao mesmo tempo incorporá-los, esvaziando sua dimensão crítica. A energia e a criatividade antes mobilizadas para o enfrentamento passam ser postas à serviço do capital. Assim, a cada conflito social o capitalismo se vê impelido a se modernizar, de modo a ser capaz de incorporar as demandas dos trabalhadores e, por isso, cada derrota dos trabalhadores alça o capitalismo a um novo patamar de produtividade.
Exemplo disso foi a postura do governo paulista depois do movimento contra a reorganização escolar de 2015: ao mesmo tempo em que perseguia estudantes que estiveram na linha de frente das ocupações, a Secretaria de Educação definiu como diretriz a eleição de grêmios em todas as escolas do Estado. Assim, ofereceu uma válvula de escape – dentro da ordem – para as exigências estudantis por mais participação na dinâmica escolar. “O grêmio tem de ser parceiro da diretoria”, disse o Secretário. Ao invés de simplesmente reprimir, o objetivo era capturar o engajamento estudantil para fortalecer a gestão escolar. Ou seria por acaso que, na reposição das aulas perdidas por causa da ocupação, a diretoria da E.E. Fernão Dias reorganizou as salas de forma “horizontal”, com as carteiras em circulo?
Os capitalistas de olho nas escolas
Nas ocupações, os estudantes mostraram que podem assumir o controle da escola e fazê-la funcionar, pondo em xeque o funcionamento normal da educação. Essa capacidade de auto-organização é ameaçadora, porque serve de exemplo de luta para outros setores da classe trabalhadora. Mas os capitalistas também assistiram ao movimento, e também se interessaram.
É o caso de Neca Setúbal, herdeira do Banco Itaú, para quem os secundaristas deram “uma aula de democracia”:
“Nesse contexto de mais democracia e de ocupação do espaço público, os estudantes de diversos estados ocuparam (e ainda ocupam) escolas, reivindicando maior participação nas decisões das políticas que os afetam, melhores condições de infraestrutura e/ou de merenda. (…) Os alunos, que em sua maioria não fazem parte de partidos políticos, organizaram também aulas com temas relacionados às principais questões do mundo contemporâneo, mostrando que valorizam o conhecimento e querem uma escola mais ligada ao século 21.”
Causa certo estranhamento que uma figura ligada ao capital financeiro se entusiasme tanto com a luta dos estudantes. Afinal, é comum em nossas mobilizações o entendimento de que a educação do povo seria uma ameaça aos poderosos – a ideia de que “o governo quer destruir a educação” porque “um povo com educação derruba o governo”. O que move, então, os elogios da acionista da Itaúsa, a segunda maior holding do país? Ora, ela sabe que a escola, em muitos aspectos, não se diferencia de qualquer outra empresa no capitalismo. A diferença entre uma metalúrgica e um colégio, por exemplo, é que enquanto uma produz peças de carro a partir do metal, a outra produz trabalhadores: disciplina, seleciona e capacita os jovens para que sua força de trabalho seja explorada.
Assim, mais do que “acabar com a educação”, interessa aos capitalistas que a escola seja eficiente em cumprir sua função – isto é, que os novos trabalhadores sejam produzidos de acordo com aquilo que as empresas necessitam. Desse ponto de vista, fica mais fácil compreender alguém como Neca Setúbal: formada em sociologia, ela coordena o Cenpec (organização “sem fins lucrativos” que desenvolve “projetos, pesquisas e metodologias” voltadas à escola pública), que atua próximo à Fundação Itaú Social. Mas Neca não é um caso isolado.
Existe todo um setor do empresariado interessado pela questão da educação no Brasil, que desde 2005 vem se articulando no movimento “Todos Pela Educação”, que reúne os braços “sociais” não só do Itaú Unibanco, mas também do Bradesco, Gerdau, Santander, Globo, AmBev, Gol, Vale, Natura, McKinsey, Telefônica, DPaschoal, HSBC, Microsoft, Abril, HSBC e outras grandes empresas, seguindo diretrizes do Banco Mundial. Não se trata de caridade ou filantropia, mas de uma estratégia com visão ampla e de longo prazo: se querem aumentar seus lucros, a escola precisa servir mais adequadamente aos seus fins, produzindo a mercadoria que precisam.
Na prática, a proliferação dessas fundações “sociais” e institutos “sem fins lucrativos” desde os anos 1990 permitiu que o empresariado constituísse uma verdadeira estrutura paralela ao Estado, capaz de intervir, sob uma fachada discreta e amigável, na implementação de políticas das mais diversas áreas. É exatamente isso que está acontecendo hoje com a educação no Brasil: projetos como a reforma do Ensino Médio não surgiram do nada. Muito antes da Medida Provisória de Temer ou das promessas de campanha de Dilma, a reforma já vinha sendo elaborada e preparada por essas empresas – por isso podemos considerá-la uma reforma «empresarial» do Ensino Médio.
Como mostrou um artigo recente do Passa Palavra, esses institutos financiam pesquisas e relatórios de consultorias privadas para embasar a necessidade de implementação das principais diretrizes da reforma: ensino integral, flexibilização do currículo, mudanças na forma de contratação de professores etc. Ao mesmo tempo, firmando parcerias com governos locais e secretarias, as empresas desenvolvem “laboratórios” de suas propostas em escolas-modelo país afora, que servem de vitrine para os governos das vantagens da intervenção empresarial na educação até então públicas.
Mas o que a luta dos secundaristas tem a ver com isso?
Invertendo o sinal da luta
Hoje vivemos um ciclo de mobilizações secundaristas e universitárias de dimensões inéditas, que chegou a somar mais de mil ocupações em todo país. Não podemos perder de vista o estopim que fez tudo começar: o anúncio do fechamento de escolas pelo governo de São Paulo em fins de 2015. A chamada “reorganização escolar” já representava, na prática, um primeiro passo para a implementação de um programa empresarial da educação. Ao mesmo tempo que o fechamento de turmas enxugava os gastos do governo, a segmentação dos colégios por ciclos preparava o terreno para um modelo de educação voltado para receber investimentos da iniciativa privada.
Ou seja: a luta dos estudantes foi, desde o primeiro momento, uma oposição aos impactos dessas transformações empresariais na educação. Ao entender que “o que já tá ruim vai ficar pior”, os estudantes já reconheciam que, na prática, essas medidas de “modernização” e “racionalização” da escola só aprofundariam a situação de precarização à qual já estavam submetidos. Como qualquer trabalhador, os estudantes resistem às medidas de aumento da produtividade – que, via de regra, representam um aumento da exploração.
No primeiro round da luta, os estudantes de São Paulo saíram vitoriosos. De lá pra cá, a resistência ao projeto empresarial de educação esteve no centro de todas as batalhas: em Goiás, contra a transferência da gestão de escolas estaduais às OSs (Organizações Sociais); no Mato Grosso, contra a implementação de PPPs (Parcerias Público-Privadas) nas escolas; na Bahia, em apoio à luta das merendeiras e faxineiras, cujas empresas terceirizadas não pagavam salário; no Paraná e no resto do país, contra o projeto de MP da Reforma. Ao se colocar claramente contra os planos do empresariado, a luta dos estudantes ganhava claramente o contorno de um conflito de classe e tornava-se alvo da repressão. Mas ainda não se podia prever claramente por quais caminhos o capitalismo tentaria assimilá-la.
Voltemos à Neca Setúbal. Logo no início do movimento de ocupações de 2015, a herdeira do Itaú elogiou o “empoderamento” da “juventude em ação” e criticou o governo pela “falta de diálogo com a comunidade escolar” – a Secretaria de Educação teria “o dever de promover um debate horizontal sobre o tema”. Vale notar que ela jamais critica a reorganização escolar em si, mas somente a forma como o governo tentou implementá-la sem consultar os estudantes. “É preciso escutá-los”, dirá Neca ― e, de fato, o Cenpec e as fundações sociais do Itaú e Unibanco passarão a convidar estudantes do movimento para falar em debates e palestras, como lemos abaixo:
“Em uma roda de conversa organizada pelo Cenpec com estudantes que lideravam o movimento nas escolas paulistas, pudemos constatar que a luta dos alunos não se restringia à reorganização escolar e ao fechamento das escolas públicas, mas incluía sua participação nas políticas educacionais e nas decisões nas unidades de ensino” (“O que a ocupação das escolas tem a ver com a Base Nacional Curricular Comum?”, artigo de Neca Setúbal no jornal Nexo)
O relato sobre essa “roda de conversa” é muito revelador. Quando afirma que o movimento dos estudantes “não se restringia à reorganização escolar”, Neca reduz a importância da pauta dos estudantes, elogiando o movimento como um gesto de participação democrática. Quem lê o texto, fica com a impressão de que os secundaristas estavam, na verdade, lutando apenas por mais espaços de diálogo, e não contra o fechamento de escolas. Não podia ser diferente, afinal, o Cenpec e o Itaú estavam entre os maiores interessados na reorganização escolar! O título do texto também faz uma manobra retórica parecida, ligando as ocupações à aprovação da Base Nacional Curricular Comum – projeto-irmão da MP do Ensino Médio, que deve ser votado no Congresso em 2017.
Os capitalistas e gestores estatais mais atentos percebem que qualquer reforma escolar precisa, agora, manejar essa nova condição histórica imposta pelos estudantes. Após a derrota das tentativas de reorganização em São Paulo e da implementação de OSs em Goiás no final de 2015, eles entendem que é preciso reorientar seu discurso e atuação se quiserem vencer a guerra, mesmo tendo perdido aquelas batalhas. Com essa virada tática, a “crise” aberta (ou exposta) pelo movimento secundarista pode virar uma oportunidade de emplacarem os projetos de reforma escolar. Criticando o autoritarismo das imposições “vindas de cima”, esses capitalistas organizarão espaços de diálogo ― controlados por eles ― para tentar apresentar a reforma empresarial da educação como a resposta aos anseios dos estudantes.
Na medida em que o movimento secundarista criticou um modelo de escola arcaico e pouco eficiente, esses capitalistas concordaram: afinal, eles também querem “melhorar a educação” genericamente. Para incorporar demandas e formas organizativas criadas pelos estudantes em luta, é preciso tirar delas todo conteúdo crítico que carregavam quando foram forjadas, nos enfrentamentos com as diretorias, polícia e governos. Assim, a própria reforma do ensino médio promete realizar, de forma distorcida, os princípios das ocupações:
a) A possibilidade de “decidir sobre seu próprio destino”, que nas ocupações se realizava nas assembleias coletivas, reaparece às avessas nas promessas de maior “protagonismo” e “participação”;
b) A crítica ao velho currículo engessado e distante do cotidiano, que nas ocupações era substituído por um calendário de atividades voltadas à luta, reaparece no “currículo flexível”;
c) A “doação de aulas livres”, onde qualquer um poderia ser professor, reaparece na contratação por “notório saber”;
c) Por fim, é a própria ocupação da escola dia e noite que ressurge invertida na proposta de “ensino integral”.
Montando as armadilhas
Para construir a legitimidade de seus projetos, empresários e gestores tem articulado eventos para debater as diretrizes da reforma escolar junto a representantes (selecionados) dos alunos. Como se fossem “conferências participativas” da iniciativa privada, os institutos e fundações parecem tentar “fazer o diálogo” que o governo não fez.
Em um Seminário sobre Educação Integral realizado em agosto, o Itaú Unibanco reservou uma mesa para o “movimento de ocupação de escolas”, convidando secundaristas que participaram do movimento em São Paulo, Rio de Janeiro e Goiás para debater junto a uma representante da Secretaria de Educação de Minas Gerais. Outro seminário desse tipo ocorreu em outubro, com o tema “Gestão escolar para a equidade/Juventude negra”. Na página do Facebook, chama atenção como o banco descreve um dos debatedores: “estudante do 1º ano do Ensino Médio da rede pública do Rio de Janeiro. Integra o Coletivo RUA – Juventude anticapitalista, que atua junto aos movimentos sociais por mais direitos. Participou de ocupações de escolas de Ensino Médio do Rio de Janeiro em 2016”. A naturalidade com a qual os capitalistas apresentam um militante de um “coletivo anticapitalista” no evento de um banco é impressionante.
O que significa a presença de jovens militantes, por vezes até ligados a correntes radicais, em mesas como essas? Não podemos encarar isso como uma questão pessoal e despolitizá-la, taxando esses companheiros de “pelegos” que “traíram a luta”. Afinal, o que tem de errado gastar alguns minutos para falar sobre as ocupações diante de uma plateia? A armadilha é complexa, e por isso deve ser debatida como um problema coletivo do movimento.
O fato é que esse tipo de situação revela uma falta de amadurecimento coletivo do movimento secundarista para lidar com esse tipo de agente empresarial, que através de seus braços “sociais” se apresenta sob uma fachada amigável e com intenção de dialogar. O movimento já é capaz de identificar e rechaçar um pelego, expulsando das ocupações as entidades e partidos que tentam colaborar com o governo. Mas e quando se trata de uma empresa privada ou uma ONG? Sem entender o papel-chave desses grupos nos projetos de reforma de educação, cairemos sempre no seu canto de sereia.
Alguns companheiros poderão dizer que é importante “ocupar esses espaços”. Esse argumento sedutor sugere que, já que o espaço está aberto, devemos “usá-lo a nosso favor” e ir lá falar, mesmo que “para fazer a crítica”. A questão aí é: quem está usando quem? Seria uma ilusão acreditar que a fala de um secundarista numa mesa possa fazer os maiores banqueiros do país desistirem de seus promissores negócios na área da educação. Pelo jeito, não estamos “usando” ninguém para nada: até agora, a participação nesses eventos não trouxe nenhum ganho político, nem tático, ao avanço da luta secundarista.
O empresariado, por sua vez, sabe muito bem o que está fazendo. No dia seguinte à palestra de Ana Julia – a secundarista do Paraná que ganhou notoriedade nas redes sociais após defender o movimento na Assembleia Legislativa – em um evento do Itaú Unibanco, Neca Setúbal anunciou: “Há muitas Anas Julias pelo Brasil afora”. Traduzindo: eles estão de olho nesses jovens de todo país que, “apesar dos nossos baixos indicadores educacionais”, são “tão engajados”. Vendo a potência da ação secundarista, um setor empresarial aposta que pode usar essa mesma força a favor do desenvolvimento do capitalismo no país.
Não é preciso, para isso, necessariamente “cooptar o movimento”. As empresas já possuem seu próprio “trabalho de base” em escolas-modelo espalhadas por todo país – são casos em que os grupos privados, a partir de parcerias com governos locais, se inserem nas escolas para desenvolver suas propostas educacionais. Tanto é que, naqueles seminários, além dos secundaristas do movimento, também foram convidados participantes do Programa Jovem de Futuro. Trata-se de um programa em que o Unibanco, em parceria com as secretarias de educação, fornece toda uma tecnologia de suporte a um grupo de escolas selecionadas, visando “melhorar os resultados dos estudantes” e “estimular o aprimoramento contínuo da gestão escolar”.
Temos outro exemplo desse “trabalho de base” empresarial no município de Sobral, no Ceará, onde a prefeitura firmou em 2014 um convênio com a Natura para implementar o modelo de escolas integrais. Há poucos dias, essa mesma cidade sediou um evento chamado IUHACK (Instituto Unibanco Hack), “uma jornada intensiva de aprendizagem permeada pela tecnologia digital e com foco na gestão escolar”, que reuniu Jovens de Futuro de todo Brasil. Na página do Instituto, lemos o seguinte relato:
“No Ceará, um indivíduo curioso é mais conhecido como ‘fuçador’. No IUHACK em Sobral, esse traço dos estudantes logo viralizou e forjou um meme repetido algumas vezes ao longo do fim de semana: “IUFUÇA”. Na tarde deste domingo, ao final das oficinas e das experimentações, os jovens apresentaram oito protótipos, em um ensaio de soluções para os desafios de gestão da escola”
Vemos aí o engajamento dos estudantes sendo colocado, literalmente, à serviço do aperfeiçoamento da gestão da escola. Os estudantes são mobilizados para reforçar a própria estrutura de dominação. É essa a ideia: há várias Anas Julias por aí, então vamos colocá-las para trabalhar a nosso favor antes que comecem a ocupar escola e nos causar problemas ainda maiores.
Fica claro que nesse tipo de evento, seja lá qual for o conteúdo das falas dos alunos, a conclusão tirada pelos “especialistas” será sempre a de enxergar convergências com as propostas já elaboradas por eles mesmos (gestores e empresários). O que pode ser feito por eufemismos e uma linguagem escorregadia que resumem o gesto de recusa dos estudantes à mera reivindicação por espaços de fala e participação, mas também pode incluir espaços de decisão efetiva dos estudantes, desde que a finalidade de produção da força de trabalho não seja alterada.
Erguer a trincheira
O futuro da luta nas escolas está em aberto. Aos estudantes, o primeiro desafio neste tabuleiro é ter claro quem é cada ator e quais seus interesses, isolando toda iniciativa empresarial ou estatal para o outro lado da trincheira – o lado dos inimigos a combater. A recusa a toda forma de “participação”, rechaçando os convites para espaços do empresariado, é um gesto ativo de resistência. E não se trata só de resistir às tentativas de cooptação e assimilação. Para enfrentar o avanço dos projetos de reforma da educação, será preciso ir além da reivindicação ao Estado, colocando os alvos empresariais na mira da ação dos movimentos.
Algo de podre no ar: quando as empresas elogiam a luta secundarista.
Bem como:
Algo de podre no ar: quando as empresas elogiam a luta ecologista
Algo de podre no ar: quando as empresas elogiam a luta identitária
Algo de podre no ar: quando as empresas elogiam a luta etc, etc, etc…
E, nos últimos tempos, as empresas não poupam elogios a uma série de lutas… afinal como “diz” a Natura, “Toda relação é um presente”…
fica bastante claro que a gestão da escola pelos estudantes em nada amedronta os gestores e os altos empresários. Isso me faz lembrar uma pequena discussão nos comentários que se deu em um texto publicado aqui há algum tempinho já, sobre as pautas do movimento estudantil universitário. Num caso particular, setores “libertários” pediam a auto-gestão das residências estudantis. Oras, em um contexto de normalidade capitalista, do que se trata isso, de tentar mostrar que os estudantes fazem uma gestão melhor que os burocratas universitários? É um jogo de blefe político — tais setores “libertários” só colocam essa pauta na mesa para parecerem radicais, porque sabem que a universidade não concederá, especialmente a estes setores do estudantado. Agora, quando realmente aparece o risco de que o Estado de fato “conceda” a gestão estudantil, começamos a ver que o buraco é mais embaixo.
Tendo isso em mente, que tipo de ativistas, quadros, militantes, etc, são mais importantes que se formem? Os aspirantes à apparatchik parecem não ver contradições em frequentar os círculos dos empresários (talvez tenha a ver com aquele outro texto postado aqui, sobre os militantes da performance); aqueles amantes da escola e da implicação de “corpo e alma” à gestão direta dos espaços que frequenta parecem ser de fato o público alvo destas atividades e rodas de conversa asquerosas promovidas pelas empresas. Como escapar do mero imperativo da gestão direta?
Muito interessante o texto!! Mostra como o capital tem a capacidade de se apropriar das lutas em benefício próprio. Que não é possível ficar lutando apenas por reformas, pois elas serão incorporadas pelo sistema para sua melhor reprodução… Nesse sentido, me interessa muito a citação trazida pela herdeira do Itaú:
“Nesse contexto de mais democracia e de ocupação do espaço público, os estudantes de diversos estados ocuparam (e ainda ocupam) escolas, reivindicando maior participação nas decisões das políticas que os afetam, melhores condições de infraestrutura e/ou de merenda. (…) Os alunos, que em sua maioria não fazem parte de partidos políticos, organizaram também aulas com temas relacionados às principais questões do mundo contemporâneo, mostrando que valorizam o conhecimento e querem uma escola mais ligada ao século 21.”
Lendo essa citação, não consegui parar de pensar em certos trechos de Que Fazer?… Lênin já ensinava no começo do século passado que o movimento sindical, para a burguesia, não é algo de todo ruim. Muito pelo contrário, a burguesia chegava mesmo a importar o movimento sindical de outros lugares… Como o texto muito bem demonstra, o movimento sindical não só não é desagradável à burguesia, como também pode ser utilizado por ela. É nesse sentido que a citação é tão interessante: para a herdeira, não havia problema em os alunos estarem ocupando suas escolas, valorizando a educação, etc. Porém, se se organizassem em partidos, aí sim seria um problema. Eis o que é intolerável para o capital…
Em outro trecho do texto, há a citação da apresentação do Itaú sobre o coletivo Rua – Juventude Anticapitalista. O texto nota a peculiar tranquilidade da burguesia em fazer referência à um coletivo explicitamente anticapitalista. Nesse mesmo sentido, não há problema nenhum em os estudantes se organizarem em coletivos. Não é aqui que se está o problema…
E, nesse mesmo sentido, durante todos os movimentos de massas dos últimos tempos, a burguesia lançou mão e se apropriou da questão antipartidária/apartidária. Novamente, para a burguesia não há necessariamente um problema em milhares saírem as ruas para ocuparem escolas, se enfrentarem com a polícia, etc. Porém, partidos? Já isso é intolerável. O movimento, dirá a Globo, é antipartidário, e os presentes são encorajados a reprimirem as organizações partidárias que estiverem construindo a luta…
Por fim, o texto conclui que como resposta à incorporação da pauta pela burguesia, os alunos devem resistir recusando-se a participar desses espaços controlados pela burguesia. Deixo a pergunta: será isso o suficiente para fazer uma resistência efetiva?
Ao comentador Marcos K, que acredita ter encontrado em velhos pergaminhos a fórmula mágica contra a assimilação das lutas pelos capitalistas, vale lembrar que o RUA – Juventude Anticapitalista é a organização coleteral de juventude da corrente trotsksista Insurgência, filiada ao PSOL.
Saindo da extrema-esquerda, temos o exemplo da própria Neca, que foi a mulher-forte por trás da candidata Marina Silva (Rede Sustentabilidade), e a participação de vários nomes ligados ao Partido dos Trabalhadores nas mesas dos Seminários, como Djamila Ribeiro (secretária de direitos humanos da prefeitura de Haddad) e Gabriel Medina (no governo Dilma, secretário nacional de juventude) – este último, vale notar, ligado à corrente Democracia Socialista, filiada à tradição mandelista do trotskismo.
Pelo jeito, não são os partidos que estão a incomodar os capitalistas…
sou professor de geografia da rede pública, esse interesse dos bancos e fundações empresariais em relação à educação é algo que nós professores nos perguntamos há muito tempo.
só achei estranho o artigo mencionar o Cenpec, fiz uma pesquisa e encontrei alguns links:
http://www.cenpec.org.br/2015/12/01/25-organizacoes-assinam-manifesto-com-reorganizacao-da-rede-de-ensino-paulista/
http://www.cenpec.org.br/2015/11/17/reorganizacao-das-escolas-em-sao-paulo/
http://wwwold.cenpec.org.br/noticias/ler/Pelo-direito-%C3%A0-manifesta%C3%A7%C3%A3o-em-S%C3%A3o-Paulo:-carta-de-rep%C3%BAdio-%C3%A0-viol%C3%AAncia-policial
E eu que trabalho pro Gerando Alckmin?
Pois é José Eduardo, realmente cheira estranho quando há algo de podre no ar. Sobre esses links que você postou, não é exatamente disso que o artigo fala, dos capitalistas elogiando as lutas secundaristas e as ocupações de escolas? Vasculhando o mesmo site, podemos achar parcerias do Cenpec – a ONG de Neca Setúbal – com a Natura, Telefônica Vivo, Itaú Unibanco, Fundação Roberto Marinho (Globo), Gerdau, Fundação Victor Civita (Abril), Samsung, embaixada dos EUA e organizações internacionais multilaterais, em projetos de educação que coincidem, curiosamente, com os mesmos pilares da aqui chamada “reforma empresarial do ensino” – por exemplo: educação integral, reforma curricular, participacionismo, etc.
Olho atento: mesmo quando vão criticar a reorganização ou a reforma, vejamos que a posição deles é, via de regra, a crítica à “falta de diálogo” com a sociedade civil na hora de implementar as medidas. Ou seja, se tivesse tido um amplo processo “participativo”, com conferências, conselhos nas escolas, que fosse aprovar um projeto igualzinho, aí seria tudo bem?
Agora, você colocou a questão que realmente importa: pra nós, trabalhadores, só resta trabalhar – pro Alckmin, pros Setúbal, pra onde der. Como o texto diz, o projeto “empresarial” que os governos, empresas e ONGs apresentam hoje para educação pode ser considerado uma “modernização”, do ponto de vista capitalista. Mas, na prática, o que trará essa modernização? Objetivamente, a questão que fica pra nós enquanto trabalhadores é: em que cenário teremos condições melhores de trabalho?
Alguém me ajuda a entender esse trecho?
“Como qualquer trabalhador, os estudantes resistem às medidas de aumento da produtividade – que, via de regra, representam um aumento da exploração.”
1. Qualquer trabalhador resiste ao aumento da produtividade? Mesmo quando ele se sente “empreendedor de si mesmo” ele resiste?
2. O que é aumento da produtividade na escola? Mais aulas? Mais alunos formados? Mais adequação às necessidades imediatas do mercado de trabalho? Nos últimos casos, jovens periféricos não veriam com bons olhos esse aumento da produtividade, por aumentar as suas chances de emprego, e empregos melhores?
Cara Brenda,
Obrigado pelo comentário.
No bojo das mobilizações secundaristas o texto se referia à resistência empreendida pelos estudantes em relação às reformas educacionais e empresariais na educação. Neste sentido, identificava a prática estudantil de resistir abertamente às iniciativas didáticas propostas.
De fato, esse boicote por parte dos alunos pode, como você aponta, ir contra os interesses deles em relação à futura inserção no mercado de trabalho. As lutas são travadas, muitas vezes, de formas profundamente contraditórias.