A grande característica das experiências de autogestão da Argentina atual é a conflituosidade com que nascem essas experiências. Por Lucas

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Terminamos esta breve série de casos com outro país latino-americano, a Argentina, que se destaca na região por ter sido industrializado já durante a primeira metade do século, e pela sua história marcada pelos movimentos de massas, com grande importância das organizações sindicais. Estas foram responsáveis por motorizar lutas, como no Cordobaço em 68, e também freá-las, especialmente durante os diferentes regimes militares, com os sindicatos interventores. A forte politização do mundo sindical na Argentina fez com que, durante sua história, grandes conflitos operários ocorressem em momentos de conflitos políticos amplos no país, como na resistência peronista após o golpe e a proscrição do peronismo, a partir de 55, ou durante os regimes militares da segunda metade dos anos 60. No entanto, aqui vamos tratar uma etapa diferente, que é a de 2001 até o presente.

Retomando alguns destes momentos de forte luta sindical no país, algumas primeiras experiências de autogestão existiram, mas com um caráter bastante limitado e, mais que nada, como uma medida de pressão. Um exemplo é a ocupação do frigorífico Lisandro de la Torre em 1959 (9.000 trabalhadores) como parte do plano de lutas da CGT contra a sua privatização (Central General de los Trabajadores, central sindical historicamente vinculada ao peronismo); a ocupação de fábricas na greve geral de 1964, também impulsada pela CGT; além da breve experiência de um cordão industrial no sul da província de Santa Fé, que contou com a ocupação e gestão operária da petroquímica PASA, em Rosário, durante um mês (Ruggeri 2014). Outro antecedente próximo aos casos que iremos analisar foram as empresas, privadas ou estatais, que passaram das mãos dos seus proprietários ou gestores para cooperativas de seus trabalhadores. A grande diferença entre estes casos, alguns tantos entre os anos 50 e os 80, e os que veremos é que com estes se tratavam de uma “transição limpa”, de mútuo acordo, formalizada, onde a empresa era entregue à nova gestão em condições normais.

A grande característica das experiências de autogestão da Argentina atual é justamente a conflituosidade com que nascem essas experiências, o que terminou forjando o próprio termo utilizado pelos trabalhadores destas empresas: ERT, Empresas Recuperadas por sus Trabajadores. Recuperadas, pois se tratam de empresas que faliram ou que passavam por um processo de “autofalência”, por meio do qual o patrão pretendia desfazer-se do empreendimento produtivo para realocar seu capital em outro investimento, sempre com o menor prejuízo possível. Isso envolve, nos casos menos nefastos, fim da produção, dos postos de trabalho, venda das maquinarias e das instalações e terreno. Nos casos mais sórdidos o processo começa com o não pagamento das horas extras, depois o atraso de quinzenas e finalmente, o grande objetivo, o calote na indenização, sempre com a alegação de que não há dinheiro disponível. O roteiro comum destas lutas, por parte dos trabalhadores, inclui o acampamento nos portões da fábrica para impedir a saída das máquinas, a ocupação da planta, no começo sem produção, ainda num período de instabilidade repressiva, e depois os primeiros ensaios de produção, inclusive como forma de pressão sobre a luta jurídica que necessariamente acompanha a luta contra a perda dos postos de trabalho. Quando (e se) finalmente a luta jurídica é ganha, ou conquistada até um patamar mínimo, constitui-se uma cooperativa formal para normatizar as condições de produção: os serviços como eletricidade, gás, água, telecomunicações, as documentações comerciais (recibos, contas bancárias etc). Entende-se então que a empresa que estava próxima a deixar de existir por desejo do proprietário é recuperada por seus trabalhadores, que voltam a colocá-la em funcionamento.

Este novo momento de experiências de autogestão na Argentina difere dos movimentos mencionados das décadas anteriores também por não estarem contextualizados em um período de grandes lutas políticas por parte do movimento operário, por serem essencialmente defensivas. Os primeiros casos mais parecidos com o padrão que será comum próximo ao 2001 são de metalúrgicas nos anos 80, quando a seccional Quilmes (zona sul da Grande Buenos Aires) da UOM (Unión Obrera Metalúrgica) adota a estratégia de conformar cooperativas para lutar contra a perda dos postos de trabalhos em pequenas empresas que fechavam. Durante os anos 90 também houve alguns casos, alguns do mais antigos de ERT ainda em funcionamento, mas foi a partir de 2001 que estas experiências alcançam novos patamares: antes de 2001, contabiliza-se que haviam ao menos 35 ERTs ativas. Em 2004 eram já 169. No último informe realizado pela iniciativa do Programa Facultad Abierta/Centro de Documentación de Empresas Recuperadas[1], em Maio de 2016, a nível nacional são atualmente 367 ERTs em funcionamento, com um total de 15.948 trabalhadores e trabalhadoras.

(Fontes: Informe del Relevamiento entre Empresas Recuperadas por los Trabajadores 2003; Las empresas recuperadas por los trabajadores en los comienzos del gobierno de Mauricio Macri 2016)

Mas antes de dar mais detalhes à realidade destas empresas, entendamos um pouco como foi sendo determinado este movimento no ambiente socioeconômico.

Os anos 90 na Argentina começam com a lei de Convertibilidade, o famoso “uno a uno”, que estabelecia o câmbio da nova moeda argentina em igualdade com o dólar, vinculando o volume da moeda em circulação com as reservas da moeda estadunidense. Um dos principais objetivos deste plano era controlar a hiperinflação do final dos anos 80, que chegara a 3.000% e 2.400% anuais, respectivamente nos anos 89 e 90. A estabilização monetária e a aplicação das políticas econômicas da moda, avaliadas internacionalmente pelos EUA, pelo FMI e demais instituições financeiras, pretendia garantir um horizonte de expectativas positivas para atrair os investimentos estrangeiros, oferecer às empresas locais a possibilidade de modernizar-se com a importação de tecnologia e maquinaria a um preço barato, além de dar acesso aos bens de consumo importados à população. Durante os primeiros anos há um crescimento forte da economia, com uma média de 8% por ano, ao tempo em que as primeiras reformas vão sendo feitas, incluindo privatizações. Em 1995 há um deslize, com retração de 2,8% em boa parte devido à crise da dívida pública mexicana (prenúncio do que ocorreria com muitos outros países, incluída a Argentina) e também à má safra causada por uma seca. Até 1998 o país volta a apresentar crescimento, com uma média de 5% ao ano. No entanto, ao mesmo tempo em que o PIB aumentava de maneira aparentemente sólida, o desemprego também aumentava: de uma taxa de 6,5 em 1991 para 17,9 em 1997 – entre os diversos fatores estão as demissões em massa dos setores estatais, tanto por cortes como por privatizações; a modernização de alguns setores produtivos, que passavam a requerer menos mão de obra; e o fenômeno que foi comum na época, no qual empresas produtivas eram desmanchadas e se tornavam importadoras da mesma mercadoria que produziam anteriormente. A parte da população abaixo da linha da pobreza no país passa de 16% nos primeiros anos da década, logo após a Convertibilidade, a um patamar estável de 25% entre 95 e 99, chegando ao pico de 54% em 2003, na ressaca da crise.

O que ocorreu com a tão esperada “chuva de dólares” (a mesma que prometeu Macri em 2016)? Uma análise dos dados sobre os IED (Investimento Estrangeiro Direto) entre os anos 1992-2002 indica que a composição destes foi de 59% para compra de empresas (privatizações e transferências acionárias), 32% de aportes de capital, 8% de dívidas com empresas vinculadas e somente 1% de reinvestimento de lucros (Mecon, 2003). Existe uma grande entrada de investimento estrangeiros não tanto na ampliação da capacidade produtiva, mas na aquisição de ativos, seja pela compra de ações, seja pela compra direta de empresas. O período de desregulamentação financeira (que melhor deveria se entender como “regulamentação neoliberal”, Serfati, 2008, p. 48) promovida a partir dos anos 80 nos grandes centros capitalistas, mas principalmente nos 90 na periferia mundial, relaxou o controle estatal sobre as operações financeiras e promoveu uma abertura ao mercado de setores estratégicos antes protegidos pelos “interesses nacionais”. Em escala global, foram os serviços essenciais aqueles que receberam maior atenção das grandes empresas multinacionais, onde o consumo é constante e o ambiente monopólico é garantido pelos Estados: eletricidade, gás, água, transporte. Por outro lado, já em regiões específicas, as commodities ofereciam um grande atrativo de investimento/compra: a aquisição da YPF, companhia nacional de petróleo, no ano de 1999, foi o pico dos volumes de IED na década, alcançando a cifra de 23.986 milhões de dólares, mais do que o dobro do alcançado no segundo ano de maior fluxo de IED. Além disso, outras áreas privilegiadas foram as indústrias alimentícias – pela vantagem produtiva da proximidade com a matéria-prima (tanto vegetal como animal) – e a automobilística, visando o mercado regional estabelecido em 1991 pela criação do Mercosul.

A crise econômica argentina dá as caras no ano de 1998, após as grandes turbulências das crises financeiras na Rússia, no Sudeste Asiático e no Brasil (entre 97-98): a partir de 1999, o país terá retração na produção por quatro anos seguidos, finalizando com uma cifra negativa de -10,8% no ano de 2002. A maior cautela dos investidores internacionais após as crises das dívidas soberanas e de fortes desvalorizações de moedas abala a economia nacional, o que vai gerando um efeito dominó: a atividade econômica cai e também a arrecadação, o que leva o governo a tomar duas medidas. Por um lado aumenta os impostos (aprofundando a queda da atividade) e contrai mais dívidas para poder seguir negociando as existentes que não estavam sendo pagas com a baixa arrecadação (Crisis económica… 2003). Assim, a dívida pública aumentava a cada ano e se tornava cada vez mais difícil a sua renegociação, até que no dia 1º de dezembro de 2001 é anunciado o famoso “Corralito”, o congelamento dos depósitos bancários, que seria o golpe fatal na atividade econômica (não havia mais dinheiro disponível para os consumos básicos) e eventualmente no âmbito político – o presidente De La Rua impõe o Estado de Sítio no dia 19 de dezembro para impedir as reuniões públicas e manifestações que tomam já as ruas do país, mas a única coisa que consegue é uma viagem apenas de ida da Casa Rosada no helicóptero presidencial.

É no seio desta experiência social e econômica que os setores da classe trabalhadora vão tendo diferentes reações: as principais organizações sindicais estão impotentes pela pressão do desemprego, se não vendidas por apoio às medidas dos governos de turno, como no caso da CGT; a esquerda peronista tem pouca força (ou moral) para fazer uma verdadeira oposição à direita peronista no poder (Menem), e está perdida e fragmentada já na oposição aos outros mandatos presidenciais para o final da década; o trotskismo, principal tendência da esquerda marxista, está fragmentado com a implosão do partido criado por Nahuel Moreno após a ditadura, o MAS, que foi possivelmente um dos maiores partidos trotskistas já existentes. Enquanto os setores organizados sofrem com sua baixa capacidade (ou interesse) em dar alguma direção para os protestos de massas, nos bairros dos setores médios vão surgindo assembleias populares que tentam ensaiar a criação de espaços de poder popular, mas que têm um peso bastante maior na solução de problemas econômicos diretos resultantes da crise: eram os clubes de troca de mercadorias e serviços, chegando até ensaios de criação de uma moeda “popular” alternativa. O setor que mais se mobilizou e que marcou a época dos anos 90 foram os bairros pobres das periferias e das cidades pobres das províncias, que contava com grandes contingentes de desempregados. A miséria crescente empurrou estes bairros à auto-organização, e o bloqueio de estradas com barricadas de pneus, o famoso piquete, se tornou a medida de força que mais foi repetida pelo país a fora. Alguns casos particulares apresentaram também a força e a criatividade de ensaiar soluções produtivas para o problema do desemprego – como a criação de padarias, construção de tijolos e outros pequenos empreendimentos populares –, a fim de gerar renda para o bairro e oferecer alguns bens de consumo baratos aos moradores. Estes foram os experimentos e grupos mais associados ao “autonomismo” em seu momento, enquanto a maior parte do setor piqueteiro, dominado por influências estatais ou partidárias, lutava diretamente por planos sociais e pequenas dotações emergenciais (coisa que viria a ser institucionalizada como programa de governo após o 2003[2].

Frente à crescente pobreza e à incapacidade e falta de vontade do sindicalismo, os trabalhadores das fábricas viam as condições dos setores desempregados e entendiam o destino que lhes esperava, gerando uma maior disposição para lutar pela manutenção de seus postos de trabalho; somando isso aos primeiros casos famosos de recuperação, como as fábricas IMPA, Brukman e Zanon (atual “fasinpat”), gestou-se uma experiência acumulada que renovava a perspectiva de luta nos conflitos entre patrão e trabalhadores – especialmente naqueles casos que apresentavam os traços clássicos de falsa falência, até que o movimento tomou mais volume e deu lugar à criação de organizações que unissem estas fábricas[3].

Desde a explosão de ERTs na crise de 2001 até hoje, é possível relacionar alguns dados da economia nacional com as variações verificáveis no campo das recuperadas. A relação com a variação do PIB é bastante clara:

(Fonte: Las empresas recuperadas por los trabajadores en los comienzos del gobierno de Mauricio Macri 2006)

Em proporção de ramos da produção, as empresas metalúrgicas são em maior número e também as que têm o maior número de trabalhadores (ambos 20% do total). Em número de empresas, são seguidas por Alimentação (13%), Gráficas (10%), Têxteis (7,6%) e Gastronomia (6,8%). Em número de trabalhadores o segundo lugar é da Indústria de Carne (13%), depois Gráficas (9,5%) e Alimentação (9%). No último período pode-se constatar certa constância das proporções, mas com um aumento de recuperadas do ramo de Alimentação, e uma diminuição gradual do setor de manufaturas dando lugar a cada vez mais recuperadas do setor de serviços, como Educação, Gastronomia e Comércio – fato provavelmente relacionado com a proteção à indústria nacional estratégica, especialmente a automobilística, no plano de governo da última década e meia. O aumento do setor de serviços apenas acompanha a tendência geral da economia – seriam falências mais “autênticas”, às vezes com e às vezes sem calote, mas essencialmente de negócios mal geridos ou muito pouco lucrativos, de baixo capital como comércios, escolas de idiomas, pizzarias etc.

Com relação à “viabilidade” das empresas recuperadas, o que se vê é em realidade uma baixa quantidade de recuperadas que fecham suas portas, sendo a maioria destes casos decorrentes de problemas econômicos, mas também por desalojamento policial; algumas por conflitos internos, compra ou outras causas judiciais. Mas se é certo que a maioria se mantém em atividade durante os anos, são poucas as que chegam a poder produzir com 100% da capacidade instalada, os principais problemas relatados são a dificuldade de colocar sua produção no mercado, falta de matéria-prima e falta de capital.

(Fonte: Las empresas recuperadas por los trabajadores en los comienzos del gobierno de Mauricio Macri 2006. Em azul o total acumulado de ERTs criadas, em verde o total acumulado de ERTs fechadas e em vermelho o total de ERTs ativas por período)

No presente, as ERTs encaram um grande desafio na medida em que a região atravessa uma retração econômica, e especificamente na Argentina um grande aumento do preço dos serviços de luz, água e gás, que deixam de ser subsidiados pelo Estado. Isto somado à baixa atividade econômica coloca em cheque a economia produtiva gerida pelos trabalhadores, tem levado as organizações de ERTs e cooperativas em geral à necessidade de mobilizar suas bases a fim de pressionar o Estado por melhores condições para a produção, quando também o fantasma do desemprego volta a rondar.

Agora que terminamos os casos analisados, fecharemos a série com o próximo texto onde encontrará-se um ensaio de análise comparativa e algumas reflexões.

Notas:

[1] Disponível aqui; ver também aqui para todos os informes já publicados.

[2] Ver, por exemplo aqui. É importante aqui a figura do puntero político na Argentina, uma mistura entre liderança territorial e capanga, o principal mecanismo de chegada dos grandes partidos nos territórios pobres.

[3] A história das organizações de empresas e fábricas recuperadas mereceria um capítulo à parte. Apenas mencionamos que a importância do fenômeno foi tal que atraiu todo tipo de oportunismo, chegando a extremos como a construção de uma organização, o Movimento Nacional de Fábricas Recuperadas por seus Trabalhadores, conduzida por um advogado membro da Opus Dei, que se empenhava em consolidar a gestão das ERTs já estabalecidas, atraindo ERTs sob sua órbita por meio de conflitos internos e promessas de soluções para os problemas jurídicos e financeiros. Outros exemplos de organização são a Red Gráfica Cooperativa, que agrupa as ERT do ramo gráfico – modelo de rede de cooperativas que depois foi adotado por outros ramos – e a FACTA (Federação de Cooperativas de Trabalhadores Autogestionados), que agrupa não apenas Empresas Recuperadas, mas também cooperativas autogestionadas que não tenham surgido de processos de recuperação.

Textos consultados:

Calvo Vismara, Juan Pablo (2008) Evolución de la Inversión Extranjera Directa en Argentina. Una comparación entre la década del ’90 y el periodo post-crisis (2008); Tese de Bacharelado, Universidad Nacional de Mar del Plata.

Crisis económica de Argentina: causas y cura (2003) Joint Economic Comitte – United States Congress (trad. Estrella Perotti).

Informe del Relevamiento entre Empresas Recuperadas por los Trabajadores (2003) Programa Facultad Abierta, Universidad de Buenos Aires.

Las empresas recuperadas por los trabajadores en los comienzos del gobierno de Mauricio Macri (2016) Programa Facultad Abierta/Centro de Documentación de Empresas Recuperadas.

La Inversión Extranjera Directa en Argentina 1992-2002. (2003) Dirección Nacional de Cuentas Internacionales, Ministerio de Economia de Argentina.

Ruggeri, Andrés (2014) ¿Qué son las empresas recuperadas? Autogestión de la clase trabajadora. Ediciones Continente, Buenos Aires.

Serfati, Claude (2008) A economia política da finança global em “Dinâmica do capitalismo pós-guerra fria”, (org.) Costa Lima, Marcos. Editora Unifesp, São Paulo.

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