A única garantia de que as classes dirigentes possam deixar de existir é a aspiração cons­ciente das massas exploradas à derrubada de todas as classes dirigen­tes, quer sejam retrógradas ou progressistas. Por Jan Waclaw Machajski

Jan Waclaw Machajski (1917)
Jan Waclaw Machajski (1917)

Uma curta biografia de Jan Waclaw Machajski (pronuncia-se “marráisqui”) pode ser lida aqui.

O socialismo do século XIX não é, como afirmam seus crentes, um ataque contra os fundamentos do regime despótico que existe há séculos sob o disfarce da sociedade civilizada, do Estado. Não é mais do que o ataque a uma só forma deste regime: a dominação dos capitalistas. Mesmo no caso de vitória, este socialismo não su­primiria a pilhagem secular, não eliminaria mais do que a propriedade privada dos meios materiais de produção, da terra e das fábricas. Ele não suprimiria mais do que a exploração capitalista.

A supressão da propriedade capitalista, isto é, a posse privada dos meios de produção, não significa ainda a desaparição da proprie­dade privada familiar em geral. É justamente a instituição desta úl­tima que garante a pilhagem secular, que assegura à minoria possuidora e à sua descendência todas as riquezas e toda a herança cultural da humanidade. É precisamente esta instituição que condena a maio­ria da humanidade a nascer escrava, a uma vida de trabalho manual.

A expropriação da classe dos capitalistas não significa ainda, de ne­nhum modo, a expropriação de toda a sociedade burguesa.

Somente pela supressão dos capitalistas privados, a classe ope­rária moderna, os escravos contemporâneos, não deixam de serem es­cravos, condenados a um trabalho manual durante toda a vida; consequentemente, a mais-valia nacional, criada por eles não desaparece, mas passa pelas mãos do Estado democrático, como fundo de manutenção para a existência parasitária de todos os extorsionários, de toda a sociedade burguesa. Esta última, depois da supressão dos capita­listas, continua a ser uma sociedade dominante, tal como anterior­mente era a dos dirigentes e governantes cultos, a sociedade dos “co­larinhos brancos”; ela fica com a posse do lucro nacional, que se partilha da mesma forma que antigamente: “honorários” dos “tra­balhadores intelectuais”; pois graças à propriedade e ao modo de vida familiar, este sistema se conserva e se reproduz de geração em geração.

A socialização dos meios de produção não significa senão a abo­lição do direito de propriedade privada e da gestão privada das fá­bricas e da terra. Em seus ataques contra o industrial, o socialista não atinge em nada os “honorários” do diretor e do engenheiro.

O socialismo do século passado deixava invioláveis todos os ga­nhos dos “colarinhos brancos”, enquanto “salários dos trabalhadores intelectuais” e considerava a intelligentsia como “não interessada e não tomando parte da exploração capitalista” (Kautsky).

O socialista contemporâneo não pode e não quer suprimir a pi­lhagem e a servidão seculares.

Na segunda metade do século XIX, o socialismo procla­mou-se em toda a parte uma ciência social. Depois da economia política “proletária”, criou-se agora uma sociologia “proletária” e uma filosofia histórica “socialista”.

A ciência social não pode ser inimiga do regime de servidão que existe desde o desenvolvimento histórico da civilização. Ela não de­seja ser mais do que a analista imparcial deste desenvolvimento his­tórico; consequentemente, ela não é sua inimiga, mas sua tutora.

Entretanto, o socialismo tem experimentado uma irresistível ten­dência a converter-se numa verdadeira ciência social. Os sábios socialistas – afastando-se sem cessar e cada vez mais da ideia de que toda a história passada das sociedades civilizadas nada é senão a história da servidão da maioria da humanidade, de que as leis histó­ricas dos séculos passados, até nossos dias, são as leis fundadas sobre a pilhagem, a expressão da vontade da minoria dirigente – dedicam-se a analisar estas leis como leis objetivas do desenvolvimento da co­munidade humana, ocupando-se de “descobri-las e formulá-las com o fim de submeterem-se a elas”.

Graças a essa propagação da fé, chegam os sábios socialistas a convencer as massas operárias a que se submetam à marcha histórica objetiva, ao mesmo tempo que se submetem, indubitavelmente, às leis da natureza do século XIX, que nos têm preparado o paraíso socialista.

Sobre esta trilha, a ciência socialista se reconhece imediatamente como um simples meio de adormecimento do espírito de revolta dos operários; ela chega a ser, apesar de seu ateísmo, uma simples me­ditação religiosa e uma súplica pela vinda do paraíso socialista. Con­verte-se numa religião que obscurece o espírito e a vontade dos es­cravos do regime burguês.

A ciência socialista marxista tem criado uma verdadeira provi­dência socialista, cuja ação a “produção capitalista cava ela mesma sua própria sepultura”, se destrói ela mesma por seu próprio desenvolvimento; e as leis econômicas irreversíveis, independentes mesmo da vontade dos homens, levam diretamente ao “reino da igualdade e da liberdade”.

Os anos passam, e as previsões marxistas dos sábios socialistas revelam sua identidade com as previsões de todos os demais padres e pregadores. Eles prometem aos escravos da sociedade burguesa a felicidade depois da morte, eles garantem o paraíso socialista a seus descendentes.

A certeza inabalável da religião científica marxista no advento inevitável do reino socialista da liberdade abençoa, ao mesmo tempo, o progresso burguês, o “progressismo”, a “legitimidade”, a “confor­midade com os objetivos” do regime contemporâneo fundado sobre a pilhagem. A crença marxista na passagem inevitável do capitalismo para o socialismo; a crença no capitalismo, enquanto premissa indispensável para o socialismo, converte-se finalmente no equivalente a um alto grau de amor ao progresso burguês, ao desenvolvimento da dominação total da burguesia, à pilhagem burguesa total. Uns cren­tes, os verdadeiros socialistas proletários, permeados de religião mar­xista, chegam a ser os melhores combatentes pelo progresso burguês, os apóstolos mais calorosos e os participantes empolgados da revo­lução burguesa.

A “pureza” original do evangelho socialista, apesar de todas as deformações trazidas pelos maus pastores da social-democracia, não pode ser nem perdida nem esquecida. Os ensinamentos contempo­râneos do anarquismo colocam-se como tarefa voltar aos princípios inabaláveis do socialismo do século passado, em toda sua pureza. Ao invés do oportunismo da social-democracia que tem escandali­zado e corrompido as massas por sua aspiração à reforma e ao de­senvolvimento do regime atual, o ensinamento anarquista conclama as massas para a aspiração pura ao ideal, ao movimento direto, sem etapas, em direção à “meta final”.

Os anarquistas devem, primeiramente, não esquecer que neste terreno eles não inventaram nada de novo e que não escapam do círculo das idéias dos marxistas ortodoxos, os quais não esqueceram jamais, em todos os aspectos da ortodoxia, a “meta final”, inclinan­do-se, sem cessar, diante das práticas dos revisionistas, até que estas demonstraram-lhes no fim, resolvendo a “bernsteiniada”, que sua as­piração à “meta final” devia constituir uma mesma coisa com o re­formismo bernsteiniano, porque a “meta final” era o movimento – quer dizer, nada.

Quanto aos anarquistas, não podem negar a sentença de Bernstein, segundo a qual na “vida”, na luta prática e “real”, cada passo do socialista não pode evitar converter-se num compromisso e num desvio diante da doutrina; tanto mais que entre eles, os anarquistas, apareceu ultimamente uma “prática” específica (o anarco-sindicalismo francês). O anarco-sindicalista, só pela sua participação em qual­quer greve, atraiçoa os princípios, pois nesse caso ele não luta mais pela “meta final”, mas pelas “concessões”, pelas “reformas”.

Aparentemente, o socialismo do século passado não pode encon­trar uma via sem acomodamentos com a ordem burguesa existente.

Tal via se reencontra, inteira e exclusivamente, inscrita em filigranas no regime burguês contemporâneo. O socialismo do sé­culo XIX, mesmo em seu aspecto mais assustador, o anarquismo, converte-se num fato inteiramente legal, em uma república democrá­tica, na forma do sindicalismo e da “propaganda do ideal anarquis­ta”. Os anarquistas mais irredutíveis chegam a ser cidadãos bem intencionados – tanto como os social-democratas da sociedade con­temporânea – e já não mais podem conspirar contra as “liberdades” democráticas de expressão, de “imprensa” e “de associação”, que dão a possibilidade, segundo suas convicções (que nesta questão são as mesmas que as dos social-democratas), de uma preparação legal para a revolução social.

A atividade clandestina conspirativa chega a ser, para os anar­quistas, dentro de um Estado democrático, tão utópica, tão inocente como para qualquer social-democrata.

De fato, a derrubada da ordem de servidão existente como única via direta, como única via livre de qualquer compromisso com a le­galidade burguesa, é a conspiração clandestina para a transformação das greves operárias freqüentes e violentas em uma insurreição, em uma revolução operária mundial. Esta via encontra-se inteiramente fora dos limites do ensinamento socialista contemporâneo.

Os socialistas do século XIX declaram-se inimigos revolucioná­rios irredutíveis, não do regime contemporâneo de classes, não do regime burguês em geral, mas apenas da forma da sociedade civilizada que nasce no começo do desenvolvimento da produção capitalista, quando ela, explicam os marxistas, ainda não conseguiu revelar seu papel progressista, manifestando somente seu aspecto mais sombrio.

É justamente na medida em que o socialismo desenvolve-se como ciência, que se firma e se elabora a consciência dos socialistas na sua hostilidade irredutível a respeito, unicamente, da forma monstruosa da sociedade contemporânea, forma adquirida pela exploração capi­talista.

Como será mostrado adiante, o socialismo enquanto ciência não pode exprimir nada além da revolta contra as “anormalidades mórbidas” da sociedade contemporânea, não contra a sociedade civili­zada em geral.

Com efeito, quais são os motivos, as razões para atacar o regime burguês atual, segundo os ensinamentos socialistas? Em primeiro lu­gar, o agravamento da situação da população em comparação com seu estado dentro das formas sociais anteriores, conseqüência da ofen­siva da produção capitalista. Em seguida, o comportamento desordenado da economia, a “anarquia” da produção, a incapacidade da sociedade atual para garantir uma justa e constante evolução da vida econômica do país.

Os ensinamentos marxistas predizem a queda do capitalismo, independentemente da vontade dos homens e sustentam a necessi­dade objetiva do socialismo com respeito à sociedade existente. O objetivismo marxista é um sistema que está fundado inteiramente em postulados deste gênero.

O regime socialista converte-se numa necessidade para todos, pois as crises não permitem à sociedade existir na sua forma ante­rior. Não é para a derrubada da sociedade atual que os socialistas se revoltam contra o regime capitalista, mas para curá-lo dessas crises, o que não significa de nenhuma forma, pois, a queda do regime se­cular de servidão, mas, ao contrário, sua consolidação.

Os socialistas científicos declaram que o regime capitalista é incapaz de durar, porque não está em condições de cumprir o que realizaram os regimes de épocas anteriores, quer dizer, de ocupar toda a força de trabalho que, ao invés, esbanja-se pelo desemprego.

O capitalismo, enquanto pior estádio da sociedade civilizada, concentra, contrariamente ao passado, todas as riquezas nas mãos de um punhado de magnatas. Não somente ele não permite aos elemen­tos mais fortes das classes inferiores esperar por uma melhoria de sua situação, mas ameaça mesmo sua existência. Expropria os próprios capitalistas. Diminui o número de possuidores. Vem então a argu­mentação bem conhecida do socialismo científico: no final do século XIX havia um campesinato e um artesanato florescentes; os cam­poneses mais dedicados tinham a possibilidade de aceder à condição de mestres; as individualidades mais capazes detinham igualmente a possibilidade de se elevar a posições mais privilegiadas. As velhas formas da sociedade conservavam entre os explorados a esperança de que os mais hábeis dentre eles, um sobre cem, por exemplo, ou um sobre mil, pudessem converter-se em mestres. O capitalismo quase tem aniquilado essa possibilidade, e por isso mesmo ele tem-se condenado a desaparecer. É incapaz de multiplicar o número de mestres.

Os socialistas são os inimigos da ordem existente, porque ela não sabe gerir racionalmente a economia, porque é incapaz de progredir, porque os governantes são muito ignorantes e incapazes de resolver os problemas da vida, que cada vez mais nascem e se desenvolvem.

O Manifesto comunista esforça-se em apresentar tudo isto o mais claramente possível:

“Sem dúvida, a burguesia é incapaz de continuar desempenhan­do o papel de classe dirigente e de impor à sociedade, como lei su­prema, as condições de vida de sua classe. Ela não pode exercer seu domínio, pois não pode assegurar a existência do escravo, no inte­rior mesmo de sua escravidão: ela é forçada a deixá-lo cair tão baixo que tem de nutri-lo em lugar de ser nutrida por ele. A sociedade não pode mais viver sob a burguesia, o que quer dizer que a existência da burguesia e a existência da sociedade chegaram a se tornar in­compatíveis”[1]

Basta lembrar novamente a natureza da polêmica entre os “or­todoxos” e Bernstein, para confirmar tudo o que tínhamos dito antes.

Para provar que não tem sentido ser revolucionário na Europa Ocidental, que a social-democracia, como defensora da classe operá­ria, deve tornar-se reformista, Bernstein tinha que demonstrar que o capitalismo contemporâneo não representava um agravamento do re­gime social em comparação com aquele que o tinha precedido. Todos os ortodoxos reconheceram que a existência do socialismo científico estava ligada muito intimamente à resolução deste problema, em qual­quer sentido que seja.

A derrubada da ordem atual não pode ser possível e sensata a não ser quando ela degenera ou se debilita.

Kautsky o reconhece muito ingenuamente. Se fosse verdade, diz, que, como afirma Bernstein, a crise que ameaça incessantemente o mundo industrial chegasse a desaparecer, que o capitalismo não ani­quilasse as classes médias, que o número dos possuidores não dimi­nuísse, então não teria sentido derrubar a ordem existente e ser em geral socialista (ver seus artigos contra Bernstein em Vorwärts).

A degeneração das classes dirigentes, para um marxista ou para qualquer outro socialista contemporâneo, representa a premissa in­dispensável para a supressão da escravidão. Se a sociedade burguesa é capaz de desenvolver-se, sua derrubada torna-se impensável. Não se pode aspirar a uma revolução violenta se alguém não acredita, para si mesmo, e se não pode convencer aos outros, que a burguesia é débil, que o regime burguês “decompor-se-á” depressa e inevita­velmente a si próprio.

Os ortodoxos que sentem a necessidade de acalmar a intransi­gência dentro de seu exército, dirigido unicamente contra as leis e as autoridades que impedem o progresso burguês (é nesta posição que se encontra a social-democracia russa diante do tzarismo), são leva­dos a originar a crença em uma “bancarrota da burguesia” inevitável e imediata, a despeito de todos os passes de mágica a que isso os obriga. Assim, para Parvus, aquele mesmo que considera a revolução socialista tão longínqua, como para todo bernsteiniano, só uma revo­lução burguesa é possível na Rússia, por agora; o mesmo Parvus de­monstraria imediatamente, apoiado em números, que a “catástrofe industrial e a bancarrota definitiva da burguesia produzir-se-ão obri­gatoriamente bem cedo”.

O marxismo espera atestar seu revolucionarismo de outra maneira, menos lutando com real intransigência contra o regime de pilhagens. Contenta-se com demonstrar que o momento histórico mesmo, as leis mesmas da sociedade humana, independen­tes e à margem dos homens – é uma verdadeira predição socialista – não fazem senão condenar a sociedade burguesa à ruína e ao des­falecimento e lhe dar ao mesmo tempo a possibilidade de libertar o mundo da servidão.

Mas não há clarividência socialista, não há nenhuma lei de desenvolvimento da sociedade independente da vontade dos homens. Não há forças da natureza que possam recompensar os “bons” opri­midos em razão de suas infelicidades, e que punissem os opressores injustos por suas más ações. Os socialistas indignam-se e lutam con­tra o agravamento do regime de classes; sua luta, somente ela, pode suprimir esse agravamento, e não o próprio regime de classes.

É por isso que a despeito das expectativas e esperanças dos in­gênuos crentes, o socialismo científico não pode senão colaborar ativamente com o desenvolvimento do progresso burguês. Isto se torna neles uma consciência específica muito profunda. A social-democracia incorpora nele, com suas profissões de fé, todos os elementos capazes e competentes da sociedade burguesa contemporânea. Nos Interesses de classe, Kautsky declara:

“(…) Se a social-democracia chegasse a ser o único partido lu­tando pelo progresso social, deveria ao mesmo tempo converter-se no partido de todos os que aspiram ao desenvolvimento posterior da sociedade.

”(…) Atualmente, somente o proletariado e seu partido represen­tam os interesses do progresso social e, ao mesmo tempo, os inte­resses vitais de toda a sociedade (…) Os interesses proletários coincidem atualmente com os da nação.“

Da mesma maneira que a religião cristã, depois de ter conde­nado o mundo do mal, o tem encarnado ela mesma com maior con­seqüência, os partidos socialistas, que têm condenado à ruína a ordem existente, tornam-se, com grande dano para os ortodoxos, os partidos do progresso burguês.

A fé socialista impulsionou seus fiéis para lutar pelo progresso burguês, pelo fortalecimento e desenvolvimento dos Estados burgue­ses constitucionais. A democracia industrial e política, a obra cultu­ral nas prefeituras, as cooperativas e os sindicatos, tudo isso deve preparar os operários para a vida socialista.

Os anarquistas irredutíveis vão começar, evidentemente, a dizer que o mundo do mal burguês corrompeu unicamente aos social-democratas, que a queda e o oportunismo destes apresentam-se como conseqüência da sua participação nos órgãos legislativos atuais. Quanto a eles, os anarquistas, preconizando a não-participação na política, estão ao abrigo dessa degenerescência.

O que acima dissemos sobre a natureza de todo o ensinamento socialista prova toda a vaidade das esperanças e confiança dos anar­quistas. O fundamento do ensinamento socialista – a fórmula da socialização como panacéia – em qualquer forma pura em que seja considerado, não é em si mesmo mais do que uma ofensiva contra uma das formas de pilhagem, e não contra a pilhagem secular na sua totalidade. Não há nada que esperar de diferente da doutrina anar­quista, pois ela tenta conservar, da mesma forma que as outras, o evangelho socialista revelado desde longo tempo, e nisso se isola.

Com efeito, o principal teórico do anarquismo contemporâneo, Kropotkine, chama a todo mundo para a revolução, salientando os mesmos motivos que os socialistas científicos. Podemos ler nas Pala­vras de um rebelde[2] o que segue:

“Nós constataremos que dois fatos predominantes se evidenciam: o despertar dos povos, diante da quebra moral, intelectual e econômica das classes dominantes; e os esforços impotentes, agonizantes das classes abastadas, para impedir, esse despertar. Estas classes do­minantes, sempre medrosas, sempre com o olhar voltado ao passado, sempre mais e mais incapazes de realizar qualquer coisa de perma­nente. Uma enfermidade incurável corrói a todos: é a senilidade. Se as classes dirigentes pudessem ter o sentimento de sua posição, certa­mente elas se apressariam a marchar ao encontro das aspirações no­vas dos povos. Porém, envelhecidas em suas tradições, sem outro culto que os polpudos bolsos, elas opõem-se com todas suas forças a esta nova corrente de idéias”.

“O trabalhador enxerga a incapacidade das classes governantes: incapacidade de compreender suas aspirações novas; incapacidade de gerir a indústria, incapacidade de organizar a produção e as trocas.”

O fato que isto esteja sob a bandeira do socialismo científico ou do anarquismo não vai levar os trabalhadores a se levantarem contra as “classes governantes” unicamente porque elas são “incapazes de gerir a indústria, organizar a produção e as trocas”, unicamente porque elas tornaram-se irreversivelmente “senis”. A atitude do anar­quismo diante do regime secular de pilhagem, como o leitor pode comprovar, não é mais hostil que a dos “socialistas parlamentaristas” corruptos. Muito pelo contrário, Kropotkine, ainda que seja inimigo de todo governo, com respeito às classes dominantes, revela uma in­genuidade de criança, que sem trabalho poder-se-ia encontrar-lhe equi­valente nos social-democratas “corrompidos”. Ele pensa que se “as classes dirigentes” não se tornassem “senis” e se “pudessem ter o sen­timento de sua posição, certamente elas se apressariam a marchar ao encontro das aspirações novas”, e que seriam “capazes de realizar al­guma coisa de permanente”. Tudo isto fica muito confuso; sobre que base Kropotkine declara-se, ele e seus ensinamentos, hostil a todo governo, enquanto ao mesmo tempo se indigna apenas contra as clas­ses dominantes senis? Governos progressistas apareceram mais de uma vez no desenvolvimento histórico, governos que “compreendiam” as aspirações novas, compreendiam igualmente, segundo seu enten­der, as necessidades do povo e garantiam o bem-estar às massas populares.

Mas que aconteceria se as classes dirigentes “senis” fossem subs­tituídas por outras, novas, jovens, nem impotentes nem ignorantes? Nesse caso, os fundamentos para realizar a revolução, para derrubar o governo e para ser anarquista, perderiam a razão de ser. Este resul­tado fatal perfila-se diante do anarquismo com tanta força quanto diante do socialismo científico, como em geral diante de todos os so­cialistas do século passado. Na história das revoluções, frequente­mente são eliminadas as classes dirigentes “senis” para substituí-las por novas. Onde se encontra a garantia de que as classes dirigentes possam deixar de existir completamente e por própria vontade?

A única garantia de que isso possa acontecer é a aspiração cons­ciente das massas exploradas à derrubada de todas as classes dirigen­tes, quer sejam retrógradas ou progressistas.

Segundo o raciocínio dos socialistas, a rebelião dos escravos mo­dernos origina-se não da existência das classes dirigentes em geral, mas por causa de sua degenerescência. Isto significa, pois, que pelo momento há uma verdadeira força de indignação e de luta, unicamente dirigida contra a estagnação e a degenerescência da sociedade dominante. Onde se encontra a força que derrubaria a totalidade da sociedade dominante? Que suprimiria a própria existência das classes dirigentes? É uma força extra-humana, é uma meta histórica predes­tinada, com a qual se promete transformar o protesto contra a dege­nerescência e a quebra da ordem atual deste século em uma luta con­tra a dominação em geral. Os marxistas esforçam-se em desenvolver esta crença por meio de considerações e promessas “científicas” e “econômicas”; quanto aos anarquistas, eles o fazem por meio de uma simples propaganda religiosa do ideal anarquista.

De uma maneira semelhante à fé cristã que não gerou nada do reino celeste sobre a terra e não fez senão contribuir com o regime de pilhagem e santificá-lo, a religião socialista não criou o paraíso socialista, e não faz senão contribuir para o progresso burguês, para o nascimento de novas e jovens classes dirigentes, cuja ausência motiva sua luta.

O socialismo do século XIX esforça-se para compreender ape­nas o debilitamento e o processo de decomposição da forma contem­porânea de dominação. É compreensível, em conseqüência, que o mistério da dominação em geral não seja nem percebido, nem reve­lado. O socialismo não demonstra outra coisa que a “incompetência” e inadequação da sociedade dominante contemporânea, o que ainda não prova em nada a “inadequação”, o parasitismo e a pilhagem de todos os dominadores na história. Muito pelo contrário, o marxista considera como sua tarefa principal provar a necessidade, para a comunidade humana, das classes dirigentes que foram aparecendo na história.

Em conseqüência, o socialismo do século XIX não põe a nu, e não tem nenhuma ambição de fazê-lo, o fundamento de toda domi­nação, fraca ou forte. Ele não quer nem reconhecer, nem tomar cons­ciência e perceber como verdade a pilhagem constante que tem repre­sentado e representa a existência mesma de ambos no curso de toda a evolução histórica.

Ele não tem nem a força nem a vontade de criar as verdadeiras premissas humanas que engendrariam a queda do regime secular de pilhagem e violência. Ao invés, sua tarefa essencial consiste em adquirir a confiança das massas e insuflar-lhes a fé inquebrantável no fato de constituir ele precisamente a única via de derrubada do regi­me de opressão. Eis sua tarefa específica: convencer do advento ine­vitável do paraíso socialista, “independentemente da vontade dos ho­mens”, simplesmente provocado pela marcha histórica, pela ação de leis históricas e objetivas.

Essa é a tarefa clássica de toda religião, e a religião socialista desempenha-se nisso muito brilhantemente. A ciência positivista e ateia do século XIX não tem preservado os socialistas de inventar uma substância sobrenatural e uma nova forma de providência. Muito pelo contrário, no momento mesmo em que o socialismo percebeu a necessidade incontida de tornar-se a ciência que revela e explica as leis de desenvolvimento social, pôs-se a elaborar ficções religiosas. A ciência socialista trouxe os mesmos frutos que a ciência dos sacerdo­tes pagãos ou dos teólogos cristãos.

Os anarquistas esforçam-se para demonstrar que se a ciência marxista se revelou tão fatal para o socialismo revolucionário, é por­ que não utilizou os fundamentos e os métodos da ciência moderna, mas os da metafísica desacreditada, e principalmente dos ensinamen­tos trôpegos dos hegelianos. Os anarquistas, ao contrário, puseram como fundamento de sua doutrina um positivismo rigoroso, o “ver­dadeiro método científico das ciências naturais, o método indutivo-dedutivo, que afasta o perigo de toda metafísica e garante a infalibi­lidade do ensinamento socialista”.

Os anarquistas, com sua aspiração à “cientificidade”, tanto como os marxistas, não fazem o socialismo sair do domínio das crenças. A ciência socialista cumpre aqui uma função comum a todas as reli­giões, decorrente de sua aspiração à “cientificidade”, à objetividade, e de seu caráter onisciente e obrigatório para tudo e para todos.

Notas [1] In. Karl Marx, Oeuvres. Economie, Paris, Gallimard, 1965 v. I, p. 173.
[2] Piotr Kropotkine, Paroles d’un revolté, Paris, Flammarion, 1978.

Trecho da obra O trabalhador intelectual publicada originalmente em 1905, este artigo foi traduzido por Horácio González, revisado por Heitor F. da Costa, Aníbal Mari e José E. Andrade e publicado originalmente na coletânea Marxismo heterodoxo organizada por Maurício Tragtenberg (São Paulo: Brasiliense, 1981). Este e outros escritos de Jan Waclaw Machajski jamais foram reeditados em língua portuguesa. Este artigo faz parte do esforço coletivo de traduções do centenário da Revolução Russa mobilizado pelo Passa Palavra. Veja aqui a lista de textos e o chamado para participação.

2 COMENTÁRIOS

  1. Este texto sempre me influenciou, sendo que todas as vezes que esqueci dele enveredei por este “socialismo do século XIX”, que é mesmo do século XX todo. Onde ele diz “a uma vida de trabalho manual”, qualquer um pode entender quando transposto para os desenvolvimentos do capital posterior a este texto, que é “a uma vida de trabalho que executa as ordens de fato”.

  2. Cheguei a esse post pesquisando contrapontos para um outro artigo (https://bit.ly/2MnW3RV), mas me surpreendi. Apesar de não ser exatamente o que procurava, gostei da abordagem usando a religião como metáfora. Conteúdo riquíssimo e um estímulo a seguir buscando mais e mais conhecimento!

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