Por Michel Goulart da Silva

No dia 28 de junho de 2004, teve início em Florianópolis uma revolta popular que, na época, foi comparada à Novembrada, ocorrida na capital catarinense, quando a população se mobilizou contra a presença na cidade do ditador João Figueiredo, em 1979. Contudo, os dois processos guardam importantes diferenças. Fazendo menção à luta de 2004, um de seus ativos participantes afirmou que essa “foi a maior revolta ou movimento popular da história das últimas oito décadas desta cidade porque conciliou quantidade (adesão), formas contundentes de ação direta e um certo nível de organização e consciência” [1].

O movimento popular ocorrido em 2004, chamado de Revolta da Catraca, tinha como causa imediata o aumento no valor das tarifas do transporte público. Essa mobilização foi seguida, poucos meses depois, pela aprovação da lei municipal que concedeu o passe livre para os estudantes e, no ano seguinte, por outra revolta contra uma nova tentativa de aumento na tarifa do transporte urbano. Embora tenham ocorrido ações espontâneas, a Revolta da Catraca teve um certo nível de organização e, embora tendo suas ações mais destacadas na região central de Florianópolis, impactou toda a cidade.

Essas duas edições da Revolta da Catraca foram precedidas por uma violenta explosão popular espontânea, ocorrida em 1999. Naquele ano, a Câmara de Vereadores, na gestão da prefeita Ângela Amin (PP), aprovou uma lei que concedia sem licitação a exploração do transporte coletivo da cidade por um período de dez anos, prorrogáveis por igual período, a algumas poucas empresas. Por ocasião da votação houve mobilização para impedir que a lei fosse aprovada, sendo necessário que a polícia cercasse o prédio da Câmara de Vereadores para possibilitar a entrada de alguns vereadores.

Outro processo que impactou diretamente na eclosão da Revolta Catraca foi a inauguração, em agosto de 2003, do Sistema Integrado de Transportes (SIT), controlado pela Companhia Operadora de Terminais de Integração (Cotisa), um consórcio formado pelas mesmas empresas que exploravam o transporte da cidade. Quando da implantação do SIT, foi implementado um primeiro aumento das passagens, que acabou, depois de intervenção do Ministério Público, ficando em 15% (a prefeitura queria um reajuste de 24,5%). Logo se viu a recepção negativa por parte da população com o SIT, na medida em que muitos percursos ficaram mais demorados. O SIT, que deveria funcionar com nove terminais, utilizou apenas 6, pois alguns terminais, construídos com recursos públicos, não foram ativados. Por outro lado, ao entregar a implantação e a gestão operacional dos terminais para a Cotisa, por um período de 20 anos, o transporte de Florianópolis continuaria a ser explorado pelas mesmas empresas que controlavam esse serviço havia anos.

O projeto de mudança no transporte, iniciado na gestão da prefeita Angela Amin (PP), era mais amplo, com vistas a buscar solução à desordem provocada na cidade pelo crescimento do tráfego urbano. Este projeto incluía desde melhoria da pavimentação de vias até a instalação de sistemas de monitoramento de semáforo e de controle de circulação de ônibus, lombadas eletrônicas, terminais urbanos e elevados. Submetido ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a fim de obter financiamento para as obras, a análise demonstrou que a capacidade de endividamento do município não era suficiente para atender a todo o projeto (que necessitava um total de R$78 milhões em investimentos).

Outro dado relevante para entender o processo que levou à eclosão da Revolta da Catraca passa pela análise do impacto que o gasto com o transporte público tinha na renda da população. Na época, mais da metade da população assalariada de Florianópolis (algo em torno de 115 mil pessoas, num universo de cerca de 165 mil) recebia entre um e sete salários-mínimos, ou seja, na época, entre R$260,00 e R$1820,00. Considerando que os valores das passagens, na época, variavam de R$1,15 a R$3,00 (sendo a maioria usuária das regiões cujos valores estavam entre R$1,60 e R$2,50), percebe-se a piora que qualquer reajuste na tarifa colocaria para as finanças cotidianas da parcela mais pobre da população.

Entre 28 de junho e 8 de julho de 2004, eclodiu a primeira Revolta da Catraca, contra o aumento de 15,6% da tarifa autorizado poucos dias antes pelo Conselho Municipal de Transportes. A revolta foi marcada por grandes manifestações, especialmente na área central da cidade, e teve como imagem marcante o fechamento por milhares de manifestantes das pontes que ligam a ilha ao continente, inviabilizando, no horário de maior movimento de carros, o trânsito. Também ocorriam outras iniciativas por parte dos manifestantes, como pular catraca, abrir as portas de trás do ônibus para que as pessoas que estivessem no ponto pudessem entrar sem pagar e as assembleias realizadas em praças públicas, além do enfrentamento com as forças de repressão policial. Depois de dez dias de mobilização intensa, triunfou o movimento contra o aumento das tarifas. Muitas dessas ações, ainda que tivessem um caráter espontâneo, contaram com a convocação e a impulsão de organizações como a Juventude Revolução Independente (JRI), a União Florianopolitana de Entidades Comunitárias (UFECO) e o Centro de Mídia Independente (CMI).

Em 2004 também ganhou fôlego a campanha pelo passe livre estudantil, inicialmente organizada pelo grupo JRI. Depois de abaixo-assinados e de uma jornada de lutas realizada nos anos anteriores, um projeto de lei construído pelo movimento em torno da campanha do passe livre e apresentado pelo vereador Márcio de Souza (PT) foi aprovado, em outubro de 2004. Em janeiro de 2005, impulsionado pelo vitória das lutas ocorridas em Florianópolis, foi criado o Movimento Passe Livre (MPL), em âmbito nacional, durante o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre

No final de maio de 2005, pouco antes de completar um ano da primeira revolta, um novo aumento na tarifa do transporte desencadeou outro conjunto de manifestações, mais radicalizadas tanto por parte dos manifestantes como por parte da repressão policial. Havia uma nova conjuntura política na cidade, depois das eleições ocorridas no final de 2004, quando todos os candidatos procuraram vincular seu nome a propostas de mudança na situação dos transportes. Dário Berger, vinculado na época ao PSDB, baseou sua campanha no lema abrir a “caixa preta” do transporte, apropriando-se demagogicamente de uma reivindicação dos movimentos sociais da cidade. Berger ganhou a eleição no segundo turno, derrotando Francisco de Assis (PP), antigo secretário dos transportes da cidade e apoiado pela prefeita Ângela Amin. Embora vitorioso nas urnas, Berger logo de início enfrentou uma greves no serviço público municipal e nos trabalhadores do transporte coletivo.

Em 2005, novamente a Revolta da Catraca foi duramente reprimida pela polícia, havendo uma série de denúncias de violações de direitos humanos. Como resposta, a população também radicalizou em suas ações, apedrejando a sede da COTISA e bancos no centro da cidade e ateando fogo na Câmara dos Vereadores. Diante das mobilizações, a opinião pública se viu dividida entre os que criticavam os “baderneiros” e os que enxergavam legitimidade nas ações daqueles que protestavam. Essa segunda edição da Revolta da Catraca também conquistou a redução da tarifa. Contudo, por outro lado, a lei que concedia o passe livre aos estudantes acabou não sendo implantada.

Por mais que nos anos seguintes se tenha conseguido mobilizar novamente centenas de pessoas, por diferentes lutas, as mobilizações nunca se repetiram como em 2004 e 2005. Nas duas edições da revolta não houve uma organização que encabeçasse as lutas de forma consciente, sendo a tênue direção do processo fragmentada entre diferentes frações de esquerda ou mesmo entidades das mais diferentes naturezas. Esses protestos podem ser entendidos como uma explosão popular, em que a parcela da população que mais sentia o aumento da tarifa de ônibus – especialmente os jovens oriundos de famílias trabalhadoras – se mobilizaram, conquistando apoio massivo de outros setores da população.

Nessas jornadas não se forjou uma direção política que unisse as reivindicações mais imediatas com um programa estratégico e organizasse em um único programa os anseios mais sentidos tanto pelos jovens mobilizados como pelos trabalhadores que encabeçavam outras lutas. Lutava-se pela redução da tarifa, como programa geral, e, como parte disso, pelo passe livre, como uma bandeira específica. Nas mobilizações, poucos setores defendiam propostas como a ampliação do passe livre para os desempregados ou mesmo a expropriação das empresas privadas de transportes. Não se questionavam os fundamentos que regem ainda na atualidade os transportes, tanto em Florianópolis como em outras cidades, baseados na concessão para um setor privado de um serviço público essencial e na lógica de lucro das empresas.

Há quase vinte anos, Florianópolis viu duas revoltas populares modificarem a política da cidade, mas sem apontar para um programa mais geral de transformação social. Contudo, isso não minimiza a importância dessas lutas para a história da cidade e seu papel na organização da juventude e dos trabalhadores. Passados todos esses anos, deve-se lembrar dessas jornadas não como um acontecimento distante, mas como um conjunto de lições que fortalecem as lutas da atualidade.

Nota

[1] Leo Vinicius. A guerra da tarifa. São Paulo: Faísca, 2005, p. 25.

As três primeiras fotografia que ilustram o texto são de 2004  e foram tiradas por Jorge Minella, já as duas últimas são da 2ª Revolta da Catraca, em 2005, e foram publicadas originalmente aqui.

2 COMENTÁRIOS

  1. O autor que me desculpe, mas o penúltimo parágrafo é tão genérico que se poderia colocá-lo em qualquer texto que comente qualquer revolta popular que não tenha resultado numa revolução exitosa (ao menos inicialmente). Além disso, parece ter sido escrito por quem leu o livro do Leo Vinícius, mas ficou nisso.

  2. Acho importante relembrar os 20 anos da Revolta da Catraca, salta aos olhos que tão pouco seja sido discutido nessa efeméride. Os que acompanham o debate há mais tempo devem se lembrar que nos 5 anos da Revolta, esse site transmitiu ao vivo uma série de mesas de debates sobre o momento. Por que será que 15 anos depois tenha-se tão pouco a se dizer?
    Aquela Revolta em Florianópolis, junto a ocorrida no ano anterior em Salvador, marcou toda uma geração de militantes, e serviu como experiência concreta de organização da luta. Não por acaso, a juventude que ingressava no mercado de trabalho procurou elaborar coletivamente um movimento social a partir dessas revoltas, cabe destacar que tinha uma maneira de se organizar bastante distinta dos grupamentos políticos já existentes. Não se tratava de uma cartilha organizativa, mas de um processo de tentativa e erro de criação de ferramentas de luta.
    O surgimento do MPL deu uma direção para lutas coletivas da década seguinte, evidentemente com mais destaque para as mobilizações por transporte, mas com influência nas lutas urbanas como um todo, questões como organização autônoma dos envolvidos passaram a ser incontornáveis nos debates de diferentes movimentos sociais. Evidentemente existiram uma série de limitações, mas é notável como a prática em diferentes cidades levou à aproximações com outras demandas da classe trabalhadora, seja em movimentos por saúde em São Paulo e em Florianópolis, em experiências com o MTD no DF, em movimentos de moradia em Salvador e São Paulo; em lutas dos trabalhadores do transporte em Joinville. Para não falar nas lutas entre estudantes secundaristas de todo o país.
    Os limites dessa atuação já analisei em outro texto, aqui neste mesmo site, mas parece-me claro que houve uma direção política de transformação. Se o autor, ou outros que agora resolveram voltar aos modelos organizativos com os quais a juventude trabalhadora rompia naquele período, não concordam com a forma que as lutas se deram, poderiam ao menos tentar avançar para além da repetição da mesma cantinela sobre organização repetidas há um século.

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