Bancários enfrentam a polícia no centro de São Paulo durante a greve de 1979 / SERGIO BEREZOVSKY13/09/1979 / O GLOBO
Bancários enfrentam a polícia no centro de São Paulo durante a greve de 1979 / SERGIO BEREZOVSKY13/09/1979 / O GLOBO

Por Bancário Anônimo

2. Os bancos, os bancários e o sindicato: composição, segmentação e organização da categoria

2.1. Os bancos

2.1.1.

O segmento de bancos comerciais no Brasil, com agências de rua que atendem o grosso da população, está chegando ao fim de um processo de concentração que já dura várias décadas. O número de bancos no Brasil é cada vez menor, tanto pelo fato de que a maior parte dos bancos estaduais já foi privatizada ou está sendo, como pelos bancos privados menores terem sido comprados pelos maiores. Assim, estamos chegando a uma situação de oligopólio, em que temos apenas 5 grandes bancos no país: Banco do Brasil – BB, Caixa Econômica Federal – CEF, Itaú, Bradesco e Santander, com alguns bancos estaduais remanescentes e bancos privados menores, em geral especializados em público de alta renda (Safra), fintechs (Nubank, XP) ou as chamadas financeiras (Crefisa, BMG, BV).

Tanto os bancos públicos como os privados estão numa corrida permanente pela redução de custos, por meio de demissões em massa, reestruturações, terceirizações, digitalização, etc. Além das diversas formas de automação bancária para retirar público das agências, os bancos usam formas disfarçadas para expandir a bancarização da população sem contratar funcionários. As principais delas são a terceirização e o uso dos correspondentes bancários, que são agências lotéricas, Correios, supermercados, etc., os quais prestam serviços bancários mais simples, como pagamento de contas, empréstimos, etc. Os trabalhadores que atuam nesses correspondentes executam serviços tipicamente bancários, mas recebem muito menos que um bancário e possuem muito menos direitos.

2.1.2.

Há mais de dez anos a arrecadação de tarifas de manutenção de contas e serviços já é suficiente para cobrir mais de 100% dos custos de pessoal dos bancos com salários e encargos (ver por exemplo matéria publicada pela federação dos trabalhadores bancários do Paraná em 2004: http://www.fetecpr.org.br/servicos-bancarios-ja-cobrem-despesa-com-pessoal/). Em 2018 somente a arrecadação de tarifas já dava conta de 80% do total das despesas administrativas, que incluem gastos de pessoal e tecnologia (https://www.jb.com.br/_conteudo/economia/2018/08/765-agiotagem-legalizada-bancos-ganham-r-72-bi-somente-com-tarifas.html). Ou seja, os bancários não precisariam vender nenhum dos “produtos” bancários (seguros, previdência, capitalização, etc.) e mesmo assim o seu custo para os bancos já estaria coberto. Não haveria motivo material para que os bancários se engajassem subjetivamente nas campanhas de vendas dos bancos, mas esse engajamento é conseguido de diversas formas, que incluem a cobrança pura e simples de metas de vendas, o assédio moral escancarado, a “piramidização” da carreira (ver adiante), comissionamentos, ranqueamentos, competições, elitização, bombardeio ideológico permanente em cursos, palestras, eventos, vídeos, comunicados internos, etc.

Em paralelo com a “piramidização” da categoria bancária, os bancos desenvolveram também a dos clientes, no movimento da segmentação. Os grandes bancos criaram cada um a sua subdivisão “de luxo” voltada para o atendimento dos clientes de alta renda (Bradesco Prime, Itaú Personnalité, BB Estilo, etc.), com agências separadas, identidade visual própria, etc. O pessoal bancário destacado para trabalhar nessas subdivisões especializadas acaba também se identificando socialmente e ideologicamente com o público que atende. A adesão às greves por parte desses segmentos especializados e de mentalidade elitizada é muito menor, e os bancos podem assim continuar atendendo o público que lhes interessa, mesmo que as agências comuns estejam fechadas.

Antes mesmo da segmentação do público e funcionários nessas “marcas” de luxo, os bancos já tinham promovido um outro movimento, o encarteiramento, como forma de responsabilizar e cobrar individualmente os bancários por resultados (e que permanece em uso tanto na rede em geral como nas marcas “de luxo”). Cada gerente recebeu uma “carteira”, que é um pacote com algumas centenas ou milhares de contas que lhe cabe “rentabilizar” (fazer com que gerem resultado para o banco) e em cima das quais as metas devem ser cumpridas. Esses gerentes de contas e mesmo seus assistentes (estando em agências comuns, de luxo ou escritórios digitais) são coagidos a não fazer greve pela pressão da cobrança individualizada que o banco faz sobre a sua base de clientes. Mesmo que não haja pressão explícita sobre o segmento gerencial para não aderir à greve nas campanhas salariais (o que é raro, em geral há muita pressão), existe uma pressão econômica derivada do modelo de encarteiramento, pois quem adere corre o risco de ver “seus” clientes individuais migrarem os negócios para os bancos concorrentes, ameaçando com isso o atingimento das metas da carteira e a própria permanência no cargo.

2.1.3

Os bancos são um dos setores mais concentrados e poderosos da burguesia brasileira. O lucro combinado dos 4 maiores bancos com ações em bolsa (Itaú, Bradesco, Santander e BB, que é uma empresa de economia mista com maioria estatal – a CEF é 100% pública) atingiu um recorde de R$ 73 bilhões em 2018 (https://www.infomoney.com.br/negocios/grandes-empresas/noticia/7932158/4-maiores-bancos-lucram-r-73-bilhoes-no-brasil-em-2018). Com todo esse poder financeiro, os bancos influenciam pesadamente a pauta politica nacional, financiam partidos, meios de comunicação, ONGs, etc., para defender seus interesses. A Reforma da Previdência, por exemplo, seria capaz de multiplicar extraordinariamente esses lucros já colossais, pois jogaria a grande massa da população para os planos de previdência privada vendidos pelos bancos. Boa parte do empenho dos políticos e meios de comunicação na aprovação da reforma tem a ver com a pressão dos bancos.

Assim como os bancos transferiram a exploração do trabalhador que faz serviço bancário para fora da categoria (explorando terceirizados e funcionários de correspondentes bancários), os bancários reconhecidos como membros da categoria precisam também buscar apoio no conjunto da sociedade para lutar contra os bancos. Cabe primordialmente aos trabalhadores bancários organizados pautar junto à sociedade o papel dos bancos. O sistema financeiro explora não somente os seus funcionários, mas também os clientes, de diversas formas, e inclusive os não clientes. Afinal, uma das grandes fontes de lucro dos bancos é a especulação com títulos da dívida pública, que são remunerados pelo governo com a arrecadação de impostos, que por sua vez recai principalmente sobre os trabalhadores. O enfrentamento ao poder dos bancos por parte da categoria bancária organizada e outros movimentos sociais reverteria em melhorias para os próprios bancários. A demanda por mais contratações, por exemplo, melhoraria o atendimento para a população em geral e as condições de trabalho para a categoria bancária. E assim por diante.

2.1.4.

Para atuar como uma das forças no enfrentamento ao capital bancário, o movimento da categoria bancária possui várias tarefas estratégicas, e uma delas é também mapear a composição do lucro dos bancos. É preciso quantificar a fatia que corresponde a cada tipo de operação (tarifas de prestação de serviços, “produtos” bancários, operações de crédito, especulação com títulos da dívida pública, etc.). É preciso denunciar o spread bancário no Brasil, que é o mais alto do mundo (spread é a diferença entre a taxa de juros que os bancos cobram de quem fica devendo no cheque especial e no cartão de crédito e a taxa de juros dos rendimentos de quem aplica dinheiro nos bancos). Em 2017, último ano para o qual há dados disponíveis, o spread no Brasil ficou em 35,43%. Note-se que a mesma matéria da grande imprensa que apresenta esse valor absurdo considera completamente natural que uma fatia enorme do spread seja composto pelo lucro dos banqueiros: https://g1.globo.com/economia/noticia/spread-bancario-cai-em-2017-mas-ainda-esta-entre-os-mais-altos-do-mundo.ghtml). Os bancos no Brasil têm um papel altamente predatório e parasitário, para além de alguma eventual função produtiva como organizadores do crédito, o que precisa ser denunciado como parte da luta da categoria bancária.

O enfrentamento contra os bancos em termos mais radicais, questionando a sua função na economia e na sociedade, envolve uma disputa ideológica muito séria, pois muitos bancários preferem ver a si mesmos como sócios menores dos banqueiros na exploração da população do que como trabalhadores igualmente explorados por seus patrões. Esse problema se agrava conforme se sobe na pirâmide da carreira e ingressam novas gerações de bancários moldados por essa hegemonia ideológica nas últimas décadas. O bancário cada vez menos questiona o lucro do banqueiro, cada vez menos se solidariza com colegas e clientes, pois ao contrário, cada vez mais se esforça individualmente para obter migalhas maiores desse lucro, pisando nos colegas e nos clientes, se for preciso.

2.2. Os bancários

2.2.1.

A categoria bancária se divide em dois segmentos principais, os funcionários de bancos privados e bancos públicos. Entre os bancos públicos temos os dois grandes bancos federais, o BB (empresa de economia mista, com controle acionário estatal e ações negociadas em bolsa, em mãos de investidores privados, portanto já parcialmente privatizado), a CEF (ainda 100% pública), os bancos regionais também subordinados ao governo federal, Banco da Amazônia SA (BASA) e Banco do Nordeste (BNB); e alguns poucos bancos estaduais remanescentes (Banrisul, no RS, Banestes no Espírito Santo, Banese em Sergipe e Banpará no Pará, além do BRB no DF). Entre os bancos privados temos o Itaú, Bradesco e Santander como principais, com alguns poucos bancos menores e financeiras, mais especializados no público de alta renda.

As condições de organização e luta nesses dois segmentos da categoria são muito diferentes. Nos bancos públicos, mesmo que o regime de contratação seja CLTista, existe uma relativa estabilidade, por conta da admissão via concurso público. A demissão no BB e na CEF só é possível por meio de processo administrativo, em que tem que ser provado algum tipo de falha grave em serviço. Não há casos de demissão por greve ou enfrentamentos locais, e mesmo situações de perseguição explícita até o momento têm sido revertidos na justiça. Desse modo, ainda é possível fazer greves e enfrentamentos “de dentro para fora”. Ou seja, a partir das assembleias, os bancários podem aderir a greves e mobilizações pontuais por condições de trabalho, reunindo-se e dialogando nos próprios locais de trabalho.

Nos bancos privados, ao contrário, qualquer manifestação de insatisfação ou de disposição para se enfrentar com os banqueiros é punida com a demissão. Dessa forma, a greve só é possível “de fora para dentro”, com ativistas e piqueteiros vindos dos bancos públicos ou trazidos pela direção do sindicato, colocados na frente das agências e departamentos, possibilitando que os bancários desses locais paralisem. Até por conta disso, pelo fato de não haver enfrentamento e resistência coletivos contra os abusos e desmandos nos bancos privados, as demissões são por isso mesmo cada vez mais frequentes e massivas.

PMs atravessam barreira de grevistas para um malote com cheques chegar ao Banco do Brasil / ATHAYDE DOS SANTOS 11/09/1985 / O GLOBO

2.2.2.

Algumas décadas atrás a categoria passou por um violento processo de enxugamento, conforme a Nota Técnica do DIEESE nº184, de julho de 2017, sobre inovação tecnológica no setor financeiro e seu impacto sobre os trabalhadores, cujos dados citamos a seguir. O número de bancários no país passou de 730 mil no início da década de 1990 para 393 mil em 2001. A partir da década de 2000 houve um crescimento dos serviços bancários via internet, e na década de 2010 vieram os aplicativos de celular. Ambas tecnologias permitem que os bancos reduzam progressivamente o número de funcionários envolvidos no atendimento no ambiente físico das agências.

Em 2018 um total de 66% das transações bancárias já foram feitas sem recorrer às agências, por meio de internet, aplicativos de celular e centrais de teleatendimento (https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/11/07/66-das-transacoes-bancarias-sao-feitas-por-internet-banking-aplicativos-ou-call-centers-diz-bc.ghtml), com o 1/3 restante se distribuindo entre caixas eletrônicos, caixas nas agências e correspondentes bancários. A novidade atual da reestruturação nos bancos é o movimento da digitalização, que consiste na transferência do atendimento do ambiente físico das agências para “escritórios digitais” (um eufemismo para centrais de telemarketing, que reduzem cada vez mais os bancários a vendedores).

2.2.3.

Devido aos avanços na automação, que retira gradativamente o público presencial das agências, seria de se supor que o volume de serviço dos trabalhadores tivesse diminuído. Entretanto, por conta nos avanços também da bancarização da população, o número de clientes também aumentou, numa proporção muito maior. É verdade que o número de bancários voltou a subir, numa proporção de 30% entre 2001 e 2012 (ainda segundo a nota do DIEESE). Entretanto, a relação do número médio de clientes atendidos por cada funcionário é muito maior do que nas décadas passadas, mesmo com as diversas formas de automação. No ano em que o autor deste texto ingressou no Banco do Brasil, em 1998, havia 11 milhões de contas correntes na instituição; hoje já são mais de 60 milhões, enquanto que o número de funcionários se manteve estável na casa dos 100 mil trabalhadores.

Esse aumento na relação de clientes por funcionários não é exclusivo do BB, embora não tenhamos os números detalhados por cada banco. Podemos afirmar portanto que um número menor de bancários têm que atender um número maior de clientes, o que resulta em sobrecarga de serviço e consequentemente em adoecimento. A chamada “bancarização” da população, que consiste no acesso a serviços de contas correntes, poupanças, cartões de crédito, seguros, previdência privada, capitalização, financiamentos, “maquininhas” de débito e outros serviços bancários, também cresceu bastante a partir da virada do século. Entre 2000 e 2013 o número de relacionamentos bancários no país dobrou, sem que o número de funcionários tenha aumentado na mesma proporção (ainda segundo a Nota do DIEESE).

Como consequência da sobrecarga de serviço, da cobrança de metas e do assédio moral, a categoria bancária é uma das que mais sofre no país com adoecimento físico e psicológico causado pelo trabalho. O adoecimento disparou nos últimos anos, conforme matéria do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região – SEEB-SP, disponível no link: http://spbancarios.com.br/02/2019/numero-de-bancarios-doentes-dispara-em-oito-anos .

Para outras matérias a respeito, de um ponto de vista mais político, ver: Adoecimento no trabalho – Um debate da militância bancária: Parte I (link); Parte II (link); A luta contra o suicídio é coletiva (link); Suicídio: desfecho trágico de bancários que sucumbem às violências do trabalho. (Texto da AGEBB) (link); Luta de classes, crise ideológica e saúde mental dos trabalhadores (link)

2.2.4.

Apesar da aparente homogeneidade contratual garantida pela convenção coletiva (ver mais adiante), a categoria bancária se apresenta bastante “piramidizada”, com uma série de níveis hierárquicos separando os trabalhadores. Acima dos escriturários ou técnicos bancários (cargos iniciais do BB e da CEF), existem os caixas, assistentes de negócios, supervisores de atendimento, gerentes de contas, gerentes de relacionamento, assistentes e analistas em departamentos internos, carreiras técnicas (advogados, engenheiros, agrônomos, etc.), gerentes gerais, superintendentes locais, regionais, diretores. Ao “subir” cada um desses degraus, o bancário fica prisioneiro do acréscimo nos seus rendimentos, as chamadas “comissões”, que não são incorporadas ao salário nem registradas em carteira de trabalho. A comissão pode ser retirada a qualquer momento, a critério dos superiores hierárquicos, de modo que os bancários comissionados se sentem presos “na mão” dos gestores, e com isso diminui a sua disposição para se enfrentar com o banco.

Na verdade, ninguém é comissionado, mas está comissionado, apenas enquanto cumprir aquilo que a direção do banco pede. Como os salários de base são muito baixos, a maioria dos bancários fica prisioneira dessas comissões e se sujeita às exigências dos bancos para chegar a esses cargos. No BB cerca de 60% dos funcionários são comissionados. Uma das consequências dessa piramidização é que cada bancário comissionado passa a achar que a sua remuneração depende mais do seu desempenho individual do que de uma luta coletiva contra o banco. E parte dessa remuneração depende da exploração sobre os colegas que estão nos níveis hierárquicos inferiores.

Ou seja, a categoria se auto-explora, pois aqueles que sobem na carreira exploram os que estão abaixo e assumem ideologicamente o modo de pensar dos banqueiros. As remunerações e bônus dos gerentes gerais, superintendentes, diretores e executivos dependem da exploração dos níveis hierárquicos abaixo. Em muitos casos os bônus dos gerentes dependem do resultado da agência ou departamento como um todo, de modo que os colegas assediam uns aos outros para atingir o resultado. A busca de soluções individuais via encarreiramento prevalece sobre a consciência de uma situação comum de exploração, o que é estimulado pelos bancos e não é combatido pelas direções sindicais existentes.

2.2.5.

Existem várias categorias de trabalhadores considerados “não bancários” trabalhando nos bancos, como vigilantes, equipes de carro-forte (executam serviço tipicamente bancário, abastecendo caixas eletrônicos, e são representados por sindicatos diferentes dos próprios vigilantes), telefonistas, copeiras, faxineiras, técnicos de TI e manutenção, estagiários, menores aprendizes, prestadores de serviços temporários, etc. Os bancários já são “piramidizados” entre si, e mesmo assim tratam essas categorias “não-bancárias” como hierarquicamente inferiores, às vezes até como invisíveis. De modo geral os terceirizados são superexplorados, são lesados pelas empresas em vários tipos de golpes, como falências fraudulentas que os deixam sem receber férias ou 13º, além de depósitos do INSS e FGTS que não são feitos. Apesar dessas falcatruas, os donos dessas empresas “falidas” abrem novas empresas com outro nome e continuam operando normalmente com os bancos. Os sindicatos que representam essas categorias são ainda mais burocratizados e corruptos que o dos bancários.

A redução do número de bancários, combinada com o aumento do número de clientes, representa não apenas um aumento da exploração dos bancários que restam, mas também a transferência do serviço bancário para trabalhadores não bancários. Os terceirizados e funcionários dos correspondentes bancários recebem salários muito menores e possuem muito menos direitos do que aqueles da Convenção Coletiva da categoria bancária. A terceirização e o uso de correspondentes bancários, portanto, são uma forma dos bancos reduzirem custos e ao mesmo tempo erodirem gradualmente e esvaziarem a organização dos bancários enquanto categoria. Contra esse expediente, existiu uma palavra de ordem de que “quem trabalha em banco, bancário é!”, a qual foi também devidamente soterrada pela Articulação/CUT/PT e depois aos poucos também esquecida pelos grupos de oposição.

2.3. O sindicato

2.3.1.

A categoria bancária é uma das poucas no país que possui uma Convenção Coletiva Nacional (conquistada em 1992 como resultado do contexto de mais de uma década de lutas), ou seja, um contrato de trabalho padrão, válido em todo o território nacional, que fixa um mesmo piso salarial e direitos para bancários de qualquer banco e em qualquer lugar do país (jornada de 6 horas, não trabalho aos sábados, etc). Esse contrato é renovado anualmente, tendo como data base o dia 1º de Setembro, que é a data de referência para as campanhas salariais. Excepcionalmente, em 2016, foi assinado um acordo bianual, de modo que em 2017 não houve campanha salarial da categoria. Em 2018, um novo acordo bianual foi assinado, dessa vez sem que sequer houvesse greve, o que representa outra novidade excepcional, já que todos os acordos a partir de 2003 tinham sido assinados após a ocorrência de greves, que eram mais ou menos efetivas, conforme veremos ao longo do texto [Obs. a partir de 2016, todos os acordos coletivos seguintes passaram a ter validade bienal, sendo renegociados em 2018, 2020, 2022 e 2024, coincidindo com os anos eleitorais].

A campanha salarial dos bancários é negociada numa mesa formada pela Fenaban (Federação Nacional dos Bancos), pelo lado da patronal, e por duas mesas do lado dos bancários. A primeira e mais importante representação dos trabalhadores é o Comando Nacional dos Bancários, formado por representantes eleitos numa Conferência Nacional dos Bancários, organizada pela Contraf-CUT (até 2006 chamada de CNB-CUT). Esta Conferência, por sua vez, é composta por representantes dos sindicatos de base dirigidos pela CUT. Considerando as décadas de burocratização dos sindicatos e aparelhamento dos fóruns do movimento pelo PT, não existem mais bancários “de carne e osso” nem na Conferência Nacional nem muito menos no Comando Nacional. São todos burocratas sindicais, dirigentes profissionais, afastados há muitos anos ou mesmo décadas dos locais de trabalho, que defendem os seus interesses e de seu partido, não os da categoria. Da mesma forma, existem Congressos específicos do BB e da CEF organizados pela Contraf, que elaboram uma pauta específica de reivindicações dos funcionários dos dois grandes bancos federais, mas são igualmente burocratizados e nunca aprovam uma pauta (um índice de reajuste, por exemplo), que vá além da pauta geral definida na Conferência Nacional.

Na segunda mesa de negociação os bancos reunidos na Fenaban conversam com uma entidade chamada Contec, um aparato fantasma que reúne alguns sindicatos das regiões Norte e Centro-Oeste, principalmente. Nessas regiões os processos de luta da década de 1980 não foram suficientes para desalojar os pelegos da época da ditadura e eleger dirigentes alinhados com a CUT, que na época era combativa. Por isso, esses sindicatos permanecem nas mãos dos pelegos originais da Contec, que por sua vez não é ligada a nenhuma central sindical. Para todos os efeitos, a Contec é um mero figurante nas negociações, referendando normalmente os acordos negociados pela Contraf. E igual à CUT, a Contec se abstém de qualquer organização real dos trabalhadores da sua base para a luta. O único detalhe relevante em relação a essa confederação é o fato de que a Justiça Trabalhista a reconhece como representação oficial habilitada a ajuizar dissídio, pelo critério de antiguidade (excrescência típica do nosso Judiciário medievalesco, já que a Contraf-CUT, hoje tão pelega quanto a Contec, é muito mais representativa numericamente). Esse detalhe só teve importância na greve de 2004, pelos motivos que veremos.

Assembleia dos bancários / LUIZ PINTO 12/09/1985 / O GLOBO

2.3.2.

Conforme a narrativa do próprio texto tornará claro, as campanhas salariais ao longo do período estudado se cristalizaram mais como formalidade do que como enfrentamento de fato dos bancários contra os bancos. Desde a definição da pauta na Conferência Nacional (em que as verdadeiras reivindicações não entram) até o fechamento do acordo, a burocracia sindical petista tem total controle. Não há representantes de base na mesa de negociação com a patronal, não há comandos de greve abertos para a base nos sindicatos, não há organização por local de trabalho, não há conselhos de representantes (ou quando se reúnem são meramente consultivos, não deliberam), não há uma preparação efetiva para a greve, a partir dos locais de trabalho, com reuniões, plenárias, assembleias por banco ou por região, dias de luta, etc. A categoria se acostumou a tratar a campanha salarial como algo que o sindicato faz por ela, numa relação de cliente e prestador de serviço.

Vejamos o exemplo de São Paulo. Na principal base do país as assembleias acontecem na Quadra dos Bancários, na região da Sé, um espaço em que já couberam mais de 3.000 pessoas. Para entrar na quadra é preciso passar por um credenciamento controlado pela diretoria e por seguranças contratados que verificam os crachás e pulseiras. Pessoas de fora da categoria, militantes e apoiadores de outros grupos não entram, a não ser aqueles convidados pela diretoria ou apoiadores do seu partido político. A assembleia é conduzida pela diretoria do alto de um palco elevado, cujo acesso é bloqueado por uma muralha de seguranças contratados.

Nas assembleias os trabalhadores permanecem passivos, como uma plateia, diante do palco em que somente os dirigentes sindicais falam, e raramente os militantes das correntes de oposição conseguem defender alguma proposta; um bancário “de verdade” jamais tem a possibilidade de falar. A luta dos grupos de oposição tem sido muito mais para motivar e aglutinar bancários descontentes para que tenham algum grau de participação, e com isso ter base social para tentar questionar o controle da Articulação sobre as assembleias e a campanha; do que para realmente mover o conjunto da categoria contra os bancos, algo que está completamente fora das expectativas atuais. Ao longo do texto trataremos de como esse formato de campanha se construiu.

2.3.3.

Em termos de localização geográfica, existe uma impressionante distorção na distribuição dos segmentos de funcionários dos bancos públicos e privados entre as regiões do país. A base do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região (SEEB-SP) contém mais de 30% do total de bancários existentes no Brasil, com cerca de 130 mil trabalhadores. Desse total, mais de 80% são funcionários de bancos privados, e o restante dos bancos públicos. Essa distorção tem uma importância fundamental para a organização sindical da categoria. O SEEB – SP é controlado pela Articulação/CUT/PT desde 1979 (na eleição sindical de 1979 a Articulação, o PT e a CUT ainda não existiam, é claro, mas a chapa vencedora estava politicamente alinhada com o grupo que se constituiria como setor hegemônico do petismo), e comanda com mão de ferro as entidades sindicais da categoria em nível nacional, através da sua confederação nacional, a Contraf-CUT (que até 2006 se chamava CNB-CUT), impondo a sua linha e as suas decisões sobre outras centenas de sindicatos menores pelo país.

Nos demais estados do país, principalmente nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, a proporção de funcionários de bancos públicos em relação aos privados é maior, e a população depende muito mais dos serviços prestados nas agências dos bancos públicos, que em muitas cidades são as únicas disponíveis (assim como nas periferias das grandes cidades das demais regiões). Uma vez que a adesão às greves é muito maior nos bancos públicos (que é onde na verdade acontecem paralisações de fato), as greves têm muito mais impacto sobre a população dessas regiões. Mas no principal centro econômico do país, que é São Paulo, onde ficam as sedes dos bancos, a proporção é de 80% de bancários em bancos privados, entre os quais praticamente não existe greve. Assim, as greves de bancários afetam muito pouco o principal centro econômico do país, que é justamente onde se decidem as campanhas salariais. Ou seja, na base territorial de São Paulo, em que a paralisação praticamente não afeta o funcionamento dos bancos, decide-se o destino das campanhas salariais, por mais que no restante do país haja uma adesão muito maior às greves.

2.3.4.

O SEEB – SP é um dos três mais importantes sindicatos do país, juntamente com a APEOESP e Metalúrgicos de São Bernardo, pelo número de trabalhadores que representa, pelo peso estratégico dessa fatia da categoria em relação à sua composição nacional, e pela sua arrecadação financeira. Além das contribuições dos sócios, o SEEB – SP é financiado também pela renda de uma série de entidades afiliadas, a Bancoop, Bangraf, Bancredi, Faculdade 28 de Agosto, etc. Ou seja, a direção da Articulação/CUT/PT transformou a entidade num “conglomerado empresarial”, com arrecadação milionária e para quem o que menos importa é a defesa dos interesses da categoria e a sua organização para a luta. Além do conglomerado empresarial, o SEEB-SP tem também participação na Agência Brasil, na TVT e na ONG Travessia, por onde espraia também mais alguns tentáculos de influência social e política.

Se não bastasse a transformação do SEEB – SP em conglomerado empresarial com importante peso próprio, o controle da Articulação/CUT/PT sobre as entidades da categoria bancária foi a via para a migração direta de um grande número de dirigentes sindicais para o outro lado da trincheira de classes, através dos fundos de pensão das empresas estatais e de economia mista. A gestão dos fundos é controlada pela empresa patrocinadora, ou seja, pelo governo, mas em alguns casos os funcionários têm o direito de eleger parte da diretoria. Assim, desde os anos 1990, os representantes dos trabalhadores, ou seja, sindicalistas da Articulação bancária, começam a ser eleitos para a direção da Previ (fundo de pensão dos funcionários do BB), o maior, mais antigo e mais rico fundo do país, e da Funcef (fundo dos trabalhadores da CEF).

Os fundos tipo Previ, Funcef, Petros, Postalis, etc., recolhem contribuições dos funcionários e das empresas em que trabalham para fins de complementação da aposentadoria, de modo que esses trabalhadores continuem recebendo o mesmo salário de quando estavam na ativa, algo que o INSS não garante. Ao longo de anos e décadas (a Previ foi fundada em 1904, décadas antes do próprio INSS), os fundos acumulam volumes imensos de recursos e se tornam jogadores de grande peso no mercado financeiro nacional. Nos anos em que o PT esteve na presidência, o partido controlava não só a parte da diretoria dos fundos eleita pelos funcionários, mas também a parte indicada pelo governo federal.

Nessa época a “farra” petista com os fundos de pensão foi completa, pois o partido podia indicar quem quisesse para os conselhos de administração de centenas de empresas de grande e médio porte, através do controle acionário dos fundos, principalmente a Previ. Em muitos casos a Previ ou algum outro fundo era acionista majoritário e portanto tinha o poder total sobre esses empreendimentos. O ex-presidente do SEEB-SP e também ministro do governo Lula, Luiz Gushiken, chegou a ter uma empresa de consultoria, a Globalprev, especializada em assessorar os fundos de pensão. Os vínculos do PT com a burguesia brasileira, portanto, além dos acordos diretos com o Poder Executivo, se concretizaram também organicamente através da gestão compartilhada dos negócios capitalistas, por meio de dezenas de sindicalistas convertidos em administradores de empresas, fenômeno que nasceu no sindicalismo bancário de São Paulo.

A publicação deste artigo foi dividida em 8 partes e um glossário, com publicação semanal:
Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
Parte 5
Parte 6
Parte 7
Parte 8
Glossário

4 COMENTÁRIOS

  1. Estou achando esta serie bastante promissora. Tanto por um interesse intelectual, quanto por um interesse pessoal. Minha mãe foi funcionária do BNH e permaneceu no setor de financiamento imobiliário mesmo depois que o BNH passou a ser CEF. Ela saiu da CEF para trabalhar com assessoria em financiamentos imobiliários antes de existir a figura do Correspondente Bancário. Na região em que morávamos ela foi o primeiro CCA a implementar o sistema automatizado. Eu mesma cheguei a trabalhar nessa empresa (como dizem, filha do chefe… em minha defesa: eu trabalhava mais 10h por dia, dava plantão aos finais de semana, ganhava menos do que o funcionário da limpeza e pedi demissão assim que me formei na faculdade). Vivemos o boom o MCMV e sua decadência. Todo ganho financeiro dessa época se provou ilusório e passageiro. Além disso as demandas dos gestores da CEF em relação aos CCAs eram pesadas. Os gestores, além de constrangerem os CCAs a participar da venda dos produtos da CEF, impunham também uma série de regras de infraestrutura e participação em campanhas de produtos (por exemplo, disponibilizar funcionários para mutirões). O CCA que não se submetesse a esses constrangimentos acabava caindo na estima dos gerentes, o que gerava dificuldades na dinâmica de trabalho da empresa terceirizada e até mesmo no andamento dos processos de financiamentos bancários de seus clientes. O curioso do meu caso pessoal é que minha mãe sempre se julgou superior ao bancário que atendia nos guichês. Não existia os setores primes, mas ela já se considerava uma classe de bancários prime, assim como os gerentes das agências se consideravam (e geralmente só chegavam aos cargos de gerentes aqueles que não se envolviam com o sindicato, e os que chegavam aos cargos de gerente tendo no passado se envolvido com greves, passavam imediatamente a desconhecer em si mesmo os motivos que os levaram a luta por direitos trabalhistas). Bem, depois de sair da CEF, passar um tempo como uma espécie de CCA clandestino e em seguida, quando a figura passou a existir, como CCA hiper explorado, minha mãe (que remunerava muito mal seus funcionários e só os mantinha pois é uma pessoa muito habilidosa em manipular emocionalmente as pessoas) passou a defender a criação de algo semelhante a um sindicato de CCAs. Logicamente, não foi bem-sucedida pois a ideia do empreendedorismo já estava bastante espraiada. Os CCAs nunca se enxergaram como bancários, como parte dos setores explorados, afinal, são empresários!
    Enfim, agradeço ao esforço do autor. Estou ansiosa para ler as demais partes do artigo.

  2. Memória das Lutas: a greve de bancários de 1979 no Rio de Janeiro

    ☆ No ano de 1979 houve uma explosão de greves. Até coveiro fez greve… Mais do que a política de “frente ampla”, foi este poderoso movimento de massas o principal fator na luta contra a ditadura empresarial-militar.

    ☆ No marco dos 40 anos da histórica greve de 1979, o Sindicato de Bancários do Rio (SEEB-RJ) realizou evento em 16/08/2019, com exibição de um filme Super-8 realizado na época e presença de lideranças sindicais que participaram daquele movimento.

    Vídeo da greve de1979:
    https://www.youtube.com/watch?v=pjCr79PoS1I

    Ato pelos 40 anos:
    https://m.youtube.com/watch?v=1QQhk6l0HsE

  3. Para além de bancários fura-greve que precisaram virar terceirizados travestidos de empresários para se darem conta da posição que ocupam no mundo do trabalho e da importância da organização da categoria, há outras três reflexões que o texto me despertou:

    A primeira ainda sobre os terceirizados e de modo mais amplo (desviando um pouco do assunto central do artigo), cito fala de Marçal na sabatina de hoje da revista Isto é: “Empresário é povo! Empresário é alguém que tem um CPF e que decidiu abrir um CNPJ para gerar emprego e renda.” Empresário é parte integrante da classe trabalhadora. Safatle diz corretamente que nos falta vocabulário. E que, talvez, não se trate de inventar novas palavras, mas sim de revisitar palavras antigas que perderam significado, que perderam peso na luta política (Evelina Dagnino, nem eu acredito que estou usando essa referência rs, não diz sobre os deslocamentos semânticos, cujo efeito ela chama de “confluência perversa”, promovidos pelos ideólogos do neoliberalismo que deram outro significado, outro peso, para palavras como democracia, participação e cidadania?). Bem, Marçal (o único candidato que fala em “sonhos” e em “propostas revolucionárias” e que por isso tem uma aparência tão cativante para o povo) está certo: empresários é povo. Hoje, em tempos de precarização, empresário é povo. E sindicato é o que?

    A segunda é sobre as categorias defendidas por sindicatos. Sempre penso que são os setores mais privilegiados da classe trabalhadora justamente porque ainda conseguem se identificar enquanto classe. Ainda possuem algo em comum, uma ideia universal capaz de produzir uma unidade. Mas privilegiados não só por isso, privilegiados pois não estão entre os mais explorados. São setores médios da sociedade. Não lutam pela classe dos explorados, lutam por um recorte populacional muito reduzido. Por este motivo, por mais louvável que sejam as grandes mobilização da APEOESP por exemplo, sempre fico ligeiramente incomodada. Quem defende, por exemplo, a faxineira da empresa terceirizada que atua no setor da educação? Sou muito grata aos xerox liberados e aos demais pixulés destinados para a luta em outras áreas (às vezes é tanto dinheiro que eles ficam desesperados para distribuir de alguma forma, principalmente em datas próximas aos períodos de prestação de contas) concedidos pela APEOESP, pelos Bancários, pelo SINTRAJUD, e tantos outros, MAS…

    A terceira é que mesmo esse algo em comum nunca foi é suficiente para uma completa adesão da categoria representada. Hoje é menos ainda. As lideranças sindicais atuam por formalidade, como muito bem diz o autor ao se referir às campanhas salariais, ou nem sequer atuam. E assim é por toda parte, dos bancários aos “sindicatos” dos procuradores federais (neste último caso, pasmem, a classe é mais mobilizada do que as associações), os sindicalistas profissionais são recebidos com descrédito. Ao menos essa é a minha impressão.

  4. As séries em publicação “Sobre a classe trabalhadora” e “História da oposição bancária” se referenciam, mesmo indiretamente.
    Exemplo disto são os comentários de Liv.
    O imprescindível trabalho de elaboração teórica levado a cabo na série “Sobre a classe trabalhadora”, encontra na “História da oposição bancária” uma interessante contrapartida de casos concretos.
    Dito de outro modo: como a história das lutas da categoria bancária (principalmente ao se considerar o dinamismo do setor financeiro, inclusive por sua articulação entre mais-valia absoluta e relativa) nos esclarece sobre o conjunto da classe trabalhadora?
    Espero ter-me feito entender.

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