Por Passa Palavra

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O Sujeito

cesarebattistiO ativista, escritor romancista, pai de família e, atualmente, refugiado, Cesare Battisti nasceu em 18 de dezembro de 1954 em Sermoneta, pequeno vilarejo ao sul de Roma. Sua família alimentava simpatia pela esquerda, passando pelo avô (que festejou a fundação do PCI), o pai (que sempre demonstrou publicamente sua posição de esquerda) e os irmãos (sindicalistas ou militantes do PCI). Já a mãe, Maria, com a cabeça coberta por um véu preto, temia a Deus e aos curas. Resultado: na casa onde moravam o casal e os seis filhos (quatro homens e duas mulheres) havia um retrato de Stalin na sala de jantar, que o caçula Cesare, na infância, imaginava ser a efígie de um santo católico.

Seu irmão mais velho, Giorgio, era militante comunista e atuava em sindicatos. E, quando menino, Cesare Battisti acompanhava as atividades de militância do irmão. Participou, ainda muito novo, da juventude do Partido Comunista Italiano e também das agitações estudantis de 1968. Afastou-se do PCI pouco tempo depois para aderir – durante a adolescência – à organização Lotta Continua (LC), que está nos primórdios do movimento autonomista italiano. Após sair do LC e se aproximar de alguns squats da época, adere à Autonomia Operária. É após a prisão que Cesare adere aos PAC, em 1977.

Passado o período de participação e ruptura com as idéias de luta armada dos PAC, Cesare foge da Itália. Primeiramente, atravessa os Alpes a pé chegando em Paris e, depois de um ano, parte para o México juntamente com Laurence, companheira com quem teve uma filha (Valentinne) e constituiu uma família.

Em território mexicano trabalhou em diversos ofícios (desde mergulhador submarino até cozinheiro) buscando formas de sustento. Foi nessa época que iniciou sua carreira de escritor: elaborou romances policiais que, em suas narrativas violentas e sombrias, reconstituíam a realidade dos Anos de Chumbo italiano que enfrentou. Como afirma em carta enviada desde a prisão brasileira: “Após minha fuga da Itália, a minha militância deu-se como escritor, usando o espaço que me deram as editoras francesas e italianas para críticas à época política italiana dos anos de chumbo.”

Cesare fundou, em 1986, a revista cultural Via Libre. Publicou 17 livros e escreveu inúmeros outros artigos, constituindo sua carreira de escritor e romancista policial. Por isso estranha a ele e a muitos outros ser chamado repetidamente de terrorista, quando seus principais e mais dedicados instrumentos são seus escritos literários.

Passados oito anos, Cesare volta pra França — restabelecendo seus laços — no período da doutrina Mitterrand, a qual ofereceu asilo/refúgio político para todos os militantes perseguidos que renunciaram à luta armada — com a qual já havia rompido muitos anos antes, ainda na Itália.

Neste momento ele participa em causas humanitárias do país. Jornais alternativos, associações de refugiados políticos (tendo inclusive papel ativo na defesa da doutrina Mitterrand), trabalhos voluntários na periferia e bairros pobres, oficinas de literatura e artes, participação em palestras, seminários e eventos políticos locais. Isso talvez explique o tamanho do movimento em seu favor quando da sua prisão em 2004. Na ocasião, milhares de pessoas tomaram as ruas em sua defesa, sabendo da perseguição política que sofria.

cesarebattisti_72dpiO movimento francês pela sua não extradição, apesar das vitórias iniciais, acabou derrotado. Duas hipóteses são trabalhadas neste caso: a primeira diz que depois do fim de sua detenção houve certo relaxamento em ritmo de “ganhamos”, sendo que a imprensa e a embaixada italiana não pouparam esforços em fabricar uma imagem de um criminoso sanguinário. Como afirma Fred Vargas, “Battisti virou aos olhos da imprensa primeiro um estrangeiro, depois um terrorista, depois um assassino, depois um monstro.” Em segundo lugar, acordos econômicos de grande ordem foram fechados entre Sarkozy e Berlusconi em troca do fim da Doutrina Mitterrand. Em sua nota em apoio a Cesare, o Movimento Passe Livre (MPL) tripudia esta jogatina econômica afirmando que “Há, ainda, uma ironia. Na época que a Itália pediu a extradição de Cesare à França, foi divulgado pela imprensa que os dois governos fizeram uma negociação: França negociou a vida de Cesare com a Itália, em um acordo político-econômico que envolvia um trem Bala. Mais um jogo sujo dos donos do transporte, dessa vez trocando a vida de um homem por alguns milhões! Nós, que por aqui lutamos por um transporte justo, não podemos deixar de protestar contra essa máfia que, no mundo inteiro, restringe nosso direito fundamental de ir e vir e, nesse caso, condena mais um lutador às grades.”

Quando veio ao Brasil, Cesare manteve sua atividade de escritor, sendo sua primeira obra em português, a autobiografia “Minha Fuga Sem fim”, publicada quase concomitantemente à sua prisão. Um segundo livro, já pronto e a espera de edição, foi apreendido em seu computador pela Polícia Federal, e espera-se que assim que solto possa ser publicado. Manteve, mesmo que de maneira escassa – dada sua perseguição – contatos frequentes com a família e amigos que, aliás, visitam-no no Brasil. A renomada romancista francesa Fred Vargas destaca-se na França como uma das articuladoras de sua causa junto à comunidade internacional.

O escritor conta também com um comitê de solidariedade com membros de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza, que acompanha o caso, realiza visitas periódicas na prisão, mantém o site Cesarelivre.org e realiza outras diversas mobilizações pautando a esquerda e a imprensa alternativa. A campanha por sua libertação possui inúmeras análises, textos, abaixo assinados e carta-manifestos de intelectuais e pessoas públicas — como o cineasta Silvio Tendler, os jornalistas Rui Martins, Celso Lungaretti e Laertecesare_battisti Braga, e o jurista Dalmo Dallari — que apresentam, ponto a ponto, os motivos da necessidade da condição de refugiado. Completam também a campanha, parlamentares — em especial Eduardo Suplicy (PT) e José Nery (PSOL) — que intervém desde sua função em favor de Battisti.

Todavia, resta analisar quais os reais motivos que levaram este italiano foragido a ser assunto de tamanha evidência pública, política, midiática e diplomática. Por que outros casos de concessão de refúgio político — tanto da direita como da esquerda — não causaram tanta comoção, surpresa, reações exacerbadas e ameaças? Qual o peso que leva um acusado, sob condições evidentemente questionáveis — como já afirmamos — de execução de 3 assassinatos e planejamento de mais um, ser um dos principais casos da justiça internacional nessa década? Por fim, o que motiva tanto empenho na perseguição jurídica e política a um homem que supostamente assassinou um açougueiro? (Dado que as elites não costumam importar-se com a morte de “pessoas comuns”).

Como já colocado acima, o escritor alega — com base em argumentos críveis — que não é autor dos assassinatos dos quais é acusado. Mais ainda, Cesare não era do núcleo de decisões do grupo que cometeu estes crimes — dada sua idade, o pouco tempo presente na organização, por exemplo — de modo que não foi o agente fundamental do grupo, como a imprensa gosta de inventar. Suas detenções na Itália ocorriam em períodos de perseguição generalizada aos dissidentes, logo sua detenção não foi provocada por ele ser um mentor ou líder, ao contrário de Pietro Mutti. Quando fugiu da Itália, em 1981, pesavam sobre ele somente as acusações de porte ilegal de armas, associação subversiva e formação de quadrilha.

Cesare só começa a ter alguma visibilidade e destaque pessoal quando já estava foragido da Itália, numa conjunção de fatores: foi escolhido por seu antigo companheiro, Pietro Mutti, como bode expiatório dos crimes cometidos pelos PAC, tendo sobre si imputados todos os crimes da organização; tornou-se romancista e, com seus textos, apresentou ao público as inconvenientes ações arbitrárias e de terror cometidas pelo governo italiano da década de 70, fato que tanto remanescentes do PCI como de grupos da direita procuram esconder, acima de tudo; participou da vida política da França, tanto na defesa da Doutrina Mitterrand como nas críticas à ascendente direita francesa que, nas palavras de Nicolas Sarkozy, quer apagar a herança de 1968, afirmando que esta foi um grande erro. Concomitantemente, é alvo e símbolo desta disputa histórica sobre o que foi a “geração de 68”, seja na França e, principalmente, na Itália.

379770A disputa colocada nesse caso, então, não está nos supostos crimes cometidos ou na idéia de se fazer cumprir a lei, mas em tudo o que significa a punição ou liberdade de um membro da geração de 68. A luta não se trata, unicamente, de defender Cesare, mas de firmar qual versão da história recente faremos prevalecer: do PCI governista em aliança com a Democracia Cristã ou na dissidência e na oposição exilada. Trata-se, certamente, de uma disputa política que se insere em interesses de classe. Sua prisão na França não girou em torno de negociações econômicas de grande valor por mera coincidência; é evidência de que as posições no assunto possuem um fundo classista: seja da burguesia encarnada na direita, seja na classe burocrática instalada no PCI (e em boa parte dos que herdaram essa tradição após sua dissolução), ambas questionadas pela geração de 68.

Cesare, em entrevista concedida ao Centro de Mídia Independente, é enfático sobre esta questão: “O meu caso não pode ser analisado isoladamente. Temos que aproveitar esse caso para falar de tudo o que se conquistou em 68. Às vezes fica a impressão de que tudo o que foi conquistado foi dado pelos governos. Os governos não nos deram nada de presente, tudo o que se conquistou foi pago com a vida e com a morte. Quando se pensa em 68, logo se associam imagens de guerrilhas, terrorismo. A guerrilha foi uma pequena parte de tudo o que aconteceu. O movimento de 68 era um movimento de gente que queria viver, e não morrer. De Chumbo eram os anos deles. Os nossos eram os anos de amor”.

 

Leia aqui a primeira parte do artigo: “A Itália daquele tempo e o exílio”

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