Por Leo Vinicius
No final da década de 1990 grandes manifestações de rua e tentativas de bloqueio durante encontros da Organização Mundial do Comércio, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, do G8, entre outros organismos gestores do capitalismo global, ganharam os noticiários de TV e fizeram com que essas cúpulas passassem a ser protegidas por grades, por enormes contingentes policiais e deslocadas para locais remotos. De forma geral viu-se os contornos de um (novo) movimento, que se opunha aos organismos gestores da chamada “globalização”. O bloqueio do primeiro dia da reunião ministerial da OMC no dia 30 de novembro de 1999, em Seattle (EUA), foi o momento em que de fato esse movimento ganhou visibilidade mundial, através da grande mídia, principalmente a TV, e passou a ser denominado, inicialmente por essa mesma mídia, de “antiglobalização”. Na verdade, trata-se de um “movimento de movimentos”, ou ainda uma confluência de movimentos. Sendo que o ponto de identificação que os unia era o reconhecimento comum dos gestores (dirigentes, organismos) da situação sistêmica que eles se contrapunham (embora para uns essa situação sistêmica apareça como capitalismo, para outros como neoliberalismo, e assim por diante).
Mas se os protestos em Seattle completam dez anos, dez anos completaram no último dia 18 de junho protestos que renderam por meses notícia nos jornais britânicos. Era o J18, Dia de Ação Global contra o Capitalismo como foi o dia 30 de novembro, que ocorreu durante encontro do G8 em Colônia. Em Londres, as manifestações, em certo sentido, foram uma expressão do desenvolvimento do autodenominado movimento de ação direta britânico. Esse movimento de ação direta, cuja luta antiestradas nos anos 1990 foi um foco de energias e vitórias, foi um exemplo dos mais significativos de movimento social recente, com intenções finais anticapitalistas, num país dos mais ricos e numa sociedade das mais controladas, com grupos sociais envolvidos, base material, e dilemas postos, ligados a essa especificidade.
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O movimento de resistência global, antiglobalização, foi uma invenção dos ativistas ingleses. A afirmação é categórica e, como aponta um ativista (do blog http://diasdedissenso.blogspot.com/), tirando a romantização, tem sua quantidade de verdade. O Reclaim The Streets de Londres foi o maior impulsionador dos Dias de Ação Global na Europa, em 1998 e 1999, e também provavelmente no mundo. Como explica o ativista anônimo a que nos referimos, os ingleses foram os primeiros a se apropriar dessa sensibilidade que crescia em toda parte e a se referirem a um movimento global. No encontro anual do Earth First! britânico em 1997 já era nítido que a maioria dos participantes via o movimento ecológico radical britânico (e o EF! em particular) como uma “rede de revolucionários, parte de um movimento ecológico libertário global de movimentos” (http://www.eco-action.org/dod/no10/empire-history.htm).
Tal sensibilidade, para o ativista anônimo brasileiro residente na Inglaterra, do blog que nos referimos, viria da dificuldade dos ingleses em enxergar possibilidade de mudanças na sua sociedade abundante, com situação de pobreza em nível reduzido; e também da consciência de que seu estilo de vida seria sustentado pela exploração de povos além mar. Os olhos dos ativistas ingleses sempre estiveram voltados, por isso, para os movimentos do Sul, do chamado terceiro mundo, o que lhes daria uma sensibilidade para ver e ajudar a ligar as diversas lutas e movimentos geograficamente distantes em um movimento global. Ao mesmo tempo em que isso se expressava em uma sensibilidade para captar o global dos movimentos locais, trazia consigo uma tendência terceiro-mundista, a partir da qual a luta importante seria sempre a dos outros. A ênfase na solidariedade aos movimentos do Sul seria uma expressão ao mesmo tempo desse entendimento de fazer parte de um movimento global e de que a verdadeira luta seria sempre a levada pelos outros.
Antes de prosseguirmos cabe uma breve explicação do que é Reclaim The Streets (RTS) e Earth First! (EF!). Pelo que os próprios nomes denotam (Reclame as Ruas, e A Terra Primeiro!), mais do que grupos, coletivos ou movimentos, trata-se de bandeiras. Assim como o Proletários Armados pelo Comunismo do qual fez parte Cesare Battisti – o único refugiado político do mundo que é mantido preso no próprio país que lhe concedeu refúgio [para saber mais sobre o caso de Cesare Battisti, clique aqui] – o RTS e o EF! são nomes que servem à ação de diversos coletivos ou células independentes, e que podem ser formadas por qualquer um que se identifique com a bandeira, com seus princípios e formas de ação. O EF!, como dizem seus participantes, é mais “uma bandeira conveniente” do que uma organização propriamente dita. No caso do RTS, mais do que isso, ele pode ser entendido também como uma forma de ação, na qual se retoma as ruas, geralmente ações que quebram com a distinção entre festa e protesto. O Earth First! portanto não é de fato nem um grupo, movimento ou entidade. Trata-se de um nome que congrega pessoas com objetivos, princípios e táticas comuns, no caso, para defender a natureza e o meio ambiente. Em 2001 o RTS, a partir de Londres, se definia como “uma rede de ação direta que surgiu inicialmente em Londres no início dos anos 1990 e que agora inclui grupos autônomos pelo mundo. O RTS faz uso da ação criativa na luta em direção a alternativas positivas, ecológicas e socialmente justas ao capitalismo e à ordem social hierárquica corrente”.
Voltando ao início da década de 1990, com o surgimento do Earth First! na Inglaterra, podemos começar a traçar um caminho que nos permite chegar ao J18 – Dia de Ação Global em 18 de junho de 1999 que teve grande impacto na Inglaterra, e que estimulou e antecipou os eventos em Seattle meses depois.
O Earth First! surgiu nos EUA em 1980, criado por cinco amigos, ecologistas de longa data e descontentes com a institucionalização e ineficiência das organizações ecologistas existentes e suas práticas. Ele tinha como prática a ação direta, e como filosofia um biocentrismo. Grupos EF! se espalharam pelos EUA, formando uma rede informal de grupos autônomos que agiam diretamente, ocupando, sabotando, quebrando máquinas, subvertendo anúncios etc. etc.
O EF! aparece na Inglaterra em 1991, em um contexto parecido com o que havia surgido nos EUA, ou seja, como alternativa à institucionalização e à burocratização das organizações ecologistas. Mas no caso europeu ele seria iniciado por uma nova geração de ativistas. O primeiro grupo britânico EF! foi formado por dois estudantes, Jake Bowers e Jason Torrance, em East Sussex. Eles haviam participado de outros grupos ambientalistas e estavam desiludidos com os mesmos. A primeira ação do grupo foi o bloqueio da usina nuclear de Dungeness em Kent, contando com cerca de 50 participantes de redes pacifistas e antinucleares locais.
A versão britânica se diferenciaria do EF! norte-americano por uma combinação maior da preocupação ambiental com a preocupação social. Segundo seus fundadores britânicos, isso era até mesmo uma necessidade para o EF! deslanchar na Grã Bretanha. Sustentado por uma geração de ativistas constituída majoritariamente por estudantes e beneficiários do dole (uma espécie de salário social garantido aos desempregados) desiludidos com as práticas e eficácia das organizações ambientalistas existentes, grupos EF! logo surgiram em cidades como Londres, Liverpool, Brighton, Oxford, Manchester, Norwich e Glastonbury.
No segundo semestre de 1991 foi formado em Londres o Reclaim The Streets, no alvorecer de um movimento antiestradas que iria se opor ao programa Roads do Prosperity, conhecido como o maior programa de construção de estradas desde o Império Romano, lançado pelo governo britânico. Tratava-se de um pequeno grupo de pessoas ligadas à rede EF! que decidira agir diretamente contra o automóvel. Nas suas próprias palavras, agiam “pelo caminhar, pedalar e pelo transporte público gratuito ou barato, e contra carros, estradas e o sistema que os impulsiona”. As ações do RTS nessa primeira fase, que iria até 1993, já carregavam o humor e a surpresa que o caracterizariam na segunda metade da década. Pequenos bloqueios de estrada, subversão de anúncios de automóveis, ciclovias pintadas nas ruas de Londres e aparições em exposições de automóveis eram algumas das ações levadas a cabo pelo RTS nesse período.
O primeiro encontro britânico do EF! ocorreu em Brighton, em abril de 1992 e contou com a participação de 60 ativistas. Havia então 7 grupos EF! listados no boletim EF! Action Update. Os primeiros meses de 1992 definiram as atividades que prevaleceriam ao longo da década: um ciclo nacional de ações, campanhas antiestradas, ocupações de escritórios, sabotagens e bloqueios de ruas.
O EF! encontraria seu nicho na campanha de Twyford Down, região em Hampshire conhecida pela sua beleza natural e por guardar resquícios de épocas pré-históricas e civilizações antigas, como as trilhas antigas, formadas ao longo de milhares de anos, conhecidas como Dongas. A resistência em Twyford Down marcaria o início do movimento antiestradas no Reino Unido, sendo iniciada por um grupo de pessoas que se autodenominou Tribo de Dongas. Esse grupo era formado por pessoas de contraculturas pré-existentes, como os travellers. Os travellers tiveram origem nos festivais livres de música dos anos 1970. Ganharam esse nome pelo estilo de vida nômade que levam, viajando, muitas vezes em comboio, em vans, caminhonetes ou trailers, indo de um a outro festival ou evento, e montando acampamentos. O movimento começou a ser reprimido pelo governo britânico nos anos 1980, na tentativa de impedir acampamentos. Famoso episódio repressivo foi a Batalha de Beanfield em 1985, a maior prisão em massa da história da Inglaterra. Nos anos 1990 muitos travellers migraram para outros países da Europa, e apesar de reduzidos numericamente em relação a décadas anteriores, essa contracultura ou estilo de vida ainda persiste na Inglaterra. Bem, como descrito por ativistas do EF!, em Twyford Down tratava-se de uma luta pela terra, para proteger um local ameaçado, onde se poderia sentir e se conectar com aquilo pelo que se estava lutando, tornando-se parte do local. Lá o movimento pôde se engajar em uma resistência física prolongada, que duraria meses. Foram construídas casas nas árvores, adotou-se um estilo de vida ligado ao local, o qual virou um foco acessível e permanente para ativistas e ecologistas de todas as partes do país.
Resistência em Twyford Down
Em Twyford Down se iniciaria também uma mistura que, para ativistas do EF!, levaria a ação direta ecológica no Reino Unido a um potente ciclo de lutas, com grandes números e sucessos. Tratava-se da mistura e da troca de habilidades entre os travellers (predominantemente rurais), e indivíduos do EF! e de grupos de libertação animal predominantemente urbanos. Os primeiros traziam conhecimento de como viver nos campos e locais a serem protegidos contra a construção de estradas; os últimos traziam técnicas de ação (sabotagem de máquinas etc.).
À medida que a resistência em Twyford Down decrescia, as ações antiestradas se espalhavam pelo Reino Unido. E apesar da estrada ter sido construída em Twyford Down, após essa resistência os relatórios do governo passaram a apontar o nível de oposição de comunidades e ecologistas aos projetos de construção de estradas. No segundo semestre de 1993 já existiam 45 grupos EF! no Reino Unido, e outros tantos catalisados pela ação direta do EF! mas que não agiam sob esse nome.
Nesse período algumas redes se solidificaram, como a Alarm UK, formada pelas campanhas antiestradas e o próprio EF!, além dos ativistas nômades que viajavam para os campos de resistência contra a construção de estradas ao longo do país.
Leia as partes II, III, IV e V.
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Referências usadas
Revista Do or Die, publicada pelo próprio movimento de ação direta: http://www.eco-action.org/dod ;
O blog Dias de Dissenso, escrito por um ativista brasileiro radicado na Inglaterra: http://diasdedissenso.blogspot.com ;
O artigo de Grey Green, de Jake Bowers e Jason Torrance, publicado no jornal The Guardian, em 2 de maio de 2001;
Um panfleto do Reclaim The Streets produzido em 1991;
ADAMS, D.; ROOTES, C.; SEEL, B. The Old, the New and the Old New: British environmental organizations from conservationism to radical ecologism. Artigo apresentado no Workshop “Environmental Organisations in Comparative Perspective”, ECPR Joint Sessions, Copenhagen, 14–19 de abril, 2000.
Um artigo, que traz dados sobre o tema da emergência da ‘ação direta’ no Reino Unido nos anos 90:
Protesto ambiental e mudança social no Reino Unido
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131999000100001