Em que “organizações guarda-chuva” cola a juventude, hoje? Serão elas ainda necessárias? Por Emanuel Conceição

chuva001No ativismo, na militância, há quem entenda que todo o sistema político existente serve ainda para alcançar seus objetivos finais; há outros que, como aconteceu comigo, entendem que o sistema político vigente é inútil como instrumento para sua ação, e partem para o ativismo autônomo. É a estes últimos que estas reflexões são direcionadas.

A partir de suas atividades, estes que enxergam a inutilidade do sistema político vigente – ou, melhor dizendo, como ele serve para que certas classes dominem e explorem outras, que lutam contra a exploração e a dominação – tentam encontrar outras pessoas com sensibilidades e interesses semelhantes, tentam estabelecer acordos mínimos para fazer atividades em conjunto, rebolam pra conseguir fazer aquilo a que se propõem… Sabemos o quanto isso é trabalhoso.

Por outro lado, há também quem, tendo em conta ou não esta crítica ao sistema político, se junta “ao que já está aí” de uma forma ou outra; no meu caso, este “o que está aí” era andar com os punks e os petistas ao mesmo tempo – afinal, era 1992, tempos do “Fora Collor”, e tudo aquilo era muito mágico, por assim dizer: ir às ruas e protestar, intervir no processo político, colocar para fora o que pensava das coisas, da vida e do mundo. Eram os tempos em que ser “de esquerda” implicava, quase automaticamente, numa opção anti-sistêmica. Mais que um método, a opção pela “esquerda” trazia consigo certa “sensibilidade”, certa forma de ver o mundo na qual todos não apenas podiam, mas deviam tomar seus destinos em suas próprias mãos.

chuvas-e-ventos2A sensibilidade de esquerda que tinha era exatamente isso: uma “sensibilidade”, um ódio instintivo ao “sistema” como um todo, sem muito conhecimento dos detalhes, de como se processa a dominação no capitalismo, de como combater esta dominação etc.. Junte isso tudo e pronto, temos um “jovem eu” – como se eu já fosse velho e caquético para falar de um “jovem eu”, olha só que petulância! – que incorporou-se à “área de influência do PT” por muitos anos, pelo menos até 2000 (mesmo, contraditoriamente, me declarando anarquista desde aquela época).

O que me levou então a entrar na área de influência do PT? Por que o PT atraía tantos jovens naquela época? Me parece que esta “sensibilidade de esquerda” da qual falei me levou – e a incontáveis outros da minha idade – para perto do PT porque, realmente, “era o que estava aí”. Eu não tinha a menor noção de que eu poderia bolar minhas próprias atividades políticas por conta própria, sem precisar me submeter ao direcionamento político de quem quer que fosse, e que neste processo talvez encontrasse outras pessoas com atividades afins etc. Na verdade, o que me interessava era falar mal de Collor, de Itamar Franco, de FHC etc., e ter gente com quem fazê-lo enquanto buscava cuidar de outras coisas (cooperativa de catadores, movimento estudantil etc.)… Pegava bem ser de esquerda, dava status, ajudava a ficar bem na fita com as meninas do outro lado da sala – eu sempre me sentava com os nerds e esquisitões do fundo – e ser de esquerda na época era ser do PT. E lá fui eu.

610_kelly_introDaí a  teoria do guarda-chuva. Temos inseguranças e medos que nos atacam todos os dias, sejam eles de ordem biológica ou criados socialmente: o patrão nos deixa inseguros porque pode nos demitir a qualquer momento, isso quando temos a duvidosa sorte de termos um patrão; um soropositivo tem medo de expor sua condição e ser excluído de uma série de ambientes e oportunidades; existe o medo de parecermos esquisitos em certos ambientes e sermos rejeitados; um homossexual tem medo de ser morto pelo cara com quem teve uma ótima noite de sexo, como não raro acontece; na próxima esquina uma bala perdida pode nos encontrar, quando não é um sacizeiro travado de crack ou cola que puxa uma faca e exige tudo o que temos; mulheres negras têm medo de parar de alisar o cabelo e sofrer todo tipo de humilhação; temos medo de não sermos amados e sofrermos por causa disso; o salário do mês que vem pode não chegar; um carro pode nos atropelar quando atravessamos a rua; mulheres são criadas desde pequenas com um medo constante de serem estupradas; muitos pais têm medo do que pode acontecer com seus filhos quando eles viajam ou vão a uma festa, e muitos filhos têm medo de perder o mínimo de segurança que representa morar com os pais; um sem-terra, por mais combativo que seja, tem medo de morrer pelas mãos de um jagunço ou de um policial; alcoólatras e drogadictos têm medos que só confessam às substâncias que os amenizam; e por aí vai. Um dos fatores da coesão social nesta fase do capitalismo é a insegurança, que se reproduz diariamente por meios variadíssimos.

singinrain25Fazer ativismo político é mais ou menos como sair de casa no meio de uma tempestade. A forma de sociedade sob a qual vivemos nos coloca uma série de meios “seguros” de viver, que de certa maneira recusamos quando nos decidimos a construir uma nova sociedade. Dá frio na barriga. Dá medo. Tocar num só ponto da ordem estabelecida equivale, na cabeça de quem está paralisado pelo medo, a bulir com toda a segurança e estabilidade que tem, por mínima que seja. Assim, “acabar com a propriedade privada é bulir na minha casa”, “acabar com a necessidade de existirem patrões é querer o caos”, “parar rua é fazer baderna”, e por aí vai. E pior: há o medo, comum nos meios ativistas, de que o que fazemos não resulte no que queremos, de pararmos no meio do caminho por falta de forças, de sermos traídos etc.

023fcd64-9548-11df-b2e1-00144feab49aAinda assim, tem quem queira sair na tempestade. Aquilo que está fora da segurança de nossas casas parece valer a pena, então saímos para atravessar o aguaceiro. E aí vem a diferença entre quem segue a via autônoma e quem cola com “o que está aí”. Os autônomos vão para onde querem, se encharcam na insegurança controlando seus medos, enquanto estes outros que colam “no que está aí” – dos quais eu mesmo fui parte por muito tempo – não conseguem sair de casa sem um guarda-chuva. A tempestade parece forte demais, assusta, e é preciso um mínimo de proteção para se chegar onde se quer – é o que está na cabeça dos que colam “no que está aí”.

Há dezoito anos busquei o PT como guarda-chuva, e há dez o abandonei. Entendi os problemas por trás daquilo que me parecia ser meu porto seguro, e me vi de repente no meio do aguaceiro sem proteção nenhuma. Era como ter o guarda-chuva levado pelo vento no meio de um descampado. Com o tempo, aprendi a suportar a água batendo direto na minha pele – a roupa já estava colada em mim de tão encharcada – e o vento frio. Ou, melhor dizendo: aprendi a localizar minhas próprias falhas, a ouvir críticas, a lidar com os outros e a entendê-los, mas ainda assim continuo com todas as inseguranças possíveis; apenas aprendi a lidar com elas num processo de superação do que há de capitalismo em mim, como parte de um processo de luta anticapitalista autônoma.

hqdefaultSe me abro assim, é para chegar a uma conclusão simples. O PT foi um guarda chuva para uma geração inteira de jovens. Era “o que havia”. Em outras épocas certamente houve outros guarda-chuvas; antes da ditadura militar o PCB deve ter sido um desses. Mas e hoje?

É preciso entender mais ou menos como uma organização qualquer pode se tornar um guarda-chuva. Ela precisa ter visibilidade, precisa ter seu nome em circulação de forma bastante ampla. Precisa ser uma alternativa a um sistema de dominação, de exploração, de humilhação cotidiana, de vida ruim – ou ao menos precisa parecer com uma alternativa. Precisa ainda ser algo no que se possa participar, ou pelo menos ajudar. São os elementos básicos de algo “que está aí”.

Vistas as coisas desta forma, o PT ainda é um guarda-chuva, e dos grandes, mas está abalado. Ser governo faz com que a utopia – elemento típico de uma organização guarda-chuva – seja substituída pelo mais cru realismo político, a chamada realpolitik: fazer política sem nenhuma perspectiva de mudança radical, sem nenhum projeto novo de sociedade radicalmente contrário a esta de hoje, contando apenas com os recursos que se tem para manter as pessoas com um mínimo para sobreviverem em suas vidas atemorizadas e entorpecidas.

so2t7kHá setores da juventude – e não só dela – que não vêem mais o PT como guarda-chuva, tal como eu vi no começo dos anos 90. Denúncias de corrupção, engessamento dos movimentos sociais a ele atrelados, falta de combatividade… Não há guarda-chuva que resista a este vendaval.

Mas, se o PT está assim, o que é que “está aí”? Temos o PSOL – que, apesar de extremamente confuso e conflituoso em seus fóruns internos, ainda representa para muitos uma perspectiva de mudança. Temos o PSTU; apesar de não ter figuras públicas de destaque como o PSOL chegou a ter durante um tempo, participa de todas as lutas possíveis, e assim legitima-se enquanto “partido de lutas”. Apesar disso, trata-se de partidos, ou seja, de organizações que, mesmo anticapitalistas até o talo, juntam gente que pensa existir ainda alguma brecha dentro do sistema político a partir da qual podem exercer sua militância. Falando especialmente da juventude, anos de burocratização das entidades estudantis e um sentimento de recusa indefinida e quase instintiva a partidos coloca limites a estas duas alternativas, não obstante haverem crescido bastante nos últimos anos.

Se é assim, é preciso pensar nas alternativas fora do campo partidário. Temos a mais evidente, que é o MST; mas o MST tem o limite – também evidente – de ser um movimento rural. Visto que muito mais da metade da população brasileira vive em cidades com mais de cem mil habitantes, dado extensível também à juventude, há uma dificuldade fundamental aí para que o MST se torne um guarda-chuva para mais da metade da juventude brasileira. Os movimentos de sem-teto nas diferentes cidades se colocam também como alternativas e atraem a juventude urbana, mas não são muitos os que querem correr os riscos de sair do conforto de suas casas e viver como militantes em ocupações, geralmente em prédios abandonados e insalubres.

singin-in-the-rain-001Tal como a APPO, os zapatistas, o black block e outros movimentos “de longe”, tanto o MST quanto os movimentos de sem-teto se tornam objeto de admiração para a juventude urbana, ao invés de alternativa de canalizar a rebeldia, instrumento de expressão política – e eis aí como funciona a transformação de um movimento social num fetiche: tem quem colecione vídeos de marchas do MST como se fossem figurinhas e os assistem várias vezes, mostram para amigos que repetem o tempo inteiro como o MST é foda e pulam depois para um vídeo de algum black block europeu ou estadunidense para dizer o mesmo, e depois voltam todos para casa felizes e contentes; é mais ou menos como quando eu colecionava adesivos do PT em meus cadernos de escola e achava que Lula era um cara do caralho, e isto em muito já me bastava.

Se é assim, o que resta? Onde, e em que a juventude de hoje está colando? Quais são os guarda-chuvas de hoje? Ou melhor: ainda existe, hoje, a necessidade de guarda-chuvas?

(Imagens do filme Singin’ in the Rain (1952), dirigido por Gene Kelly e Stanley Donen.)

7 COMENTÁRIOS

  1. Eu ouço muitos relatos de anarquistas (ou libertários num sentido amplo) que militaram no PT. Alguém mais tem um relato parecido pra dar, sobre este tópico?
    O PSTU está em todas as lutas mesmo, só não está esclarecido de qual lado da “trincheira”.
    É difícil falar de juventude num sentido amplo. Existe a juventude do PMDB, do DEM, do PT, anarquita, etc. É certo que a juventude de hoje, como um todo, está muito mais apática do que a da década de 80 e 90, que se formou num ambiente de lutas mais intensas. No entanto, a juventude enquanto grupo social tende para o inconformismo, já que está sendo preparada (família, escola, etc..) para reproduzir a sociedade dominadora e exploradora como é a sociedade capitalista. Hoje de fato não existe uma organização ou movimento combativo para que a juventude se espelhe, mas é melhor que não haja do que esta seja o PT ou o “socialismo realmente existente”…

  2. Uma observação sobre a pergunta do Giancarlo. Dentre outras, estou preparando uma série de artigos acerca do debate e das lutas pela autonomia operária no Brasil nas décadas de 1960 a 1980. Sabe onde este debate tomou mais corpo? Nos movimentos que de alguma maneira estavam “nas beiradas” do PT. Tempos atrás mencionei umas “11 teses sobre a autonomia” publicadas entre 1978 e 1980 cuja existência conheci através de uma crítica a ela; ela foi um dos principais documentos deste período, porque causou certo “furor” no meio da esquerda ortodoxa. Seus autores depois fundaram a revista “Desvios”, que pretendia acender o debate autonomista dentro do PT. Algumas pessoas ligadas a esta corrente: Marco Aurélio Garcia, Amnéris Maroni, Marilena Chauí, Eder Sader (irmão do Emir Sader), Cleusa Saccardo, Augusto de Franco… Estes “autonomistas do PT” foram centrais na consolidação do “Movimento dos 113”, que deu origem à “Articulação dos 113” (1983-1994), que depois virou a tendência “Articulação Unidade na Luta” (1994 em diante), peça-chave na construção do “Campo Majoritário” do Diretório Nacional do partido e depois no campo “Construindo um Novo Brasil”, definido no 3º Congresso Nacional do partido em 2007.

    Para piorar, gente endeusada por certos autonomistas impressionava-se muito facilmente com as lutas levadas adiante pelo PT. Fèlix Guattari achava o partido um interessantíssimo esforço de mobilização. Li tempos atrás uma entrevista onde Cornelius Castoriadis se dizia impressionado com o processo de mobilização em Porto Alegre que resultou no orçamento participativo, porque sempre via movimentos semelhantes mobilizarem-se “contra” o Estado, e não para impor-lhe suas pautas.

    Daí dizer: até certo momento da história — notadamente meados da década de 1990 — a fronteira entre “autonomismo” e “petismo” era muito tênue, especialmente porque o “autonomismo” adotado por aqui diferia em diversos aspectos (base social, objetivos, métodos de mobilização, influências teóricas, experiências de luta etc.) do autonomismo na Itália, em Portugal, na França, na Alemanha, na Inglaterra, na Espanha etc. À primeira vista — ainda estou lendo coisas e organizando o que já li — este “autonomismo” era proposto como expressão ideológica de um processo de crítica à ação política trabalhista (PTB, PDT etc.) e comunista (PCB, PCdoB, MR-8 etc.). Neste campo prático, não me parece ter sido tão incomum que estes “libertários num sentido amplo” tenham militado em aliança com petistas, ou mesmo que hajam entrado no partido.

    São só impressões ainda. Como estou elaborando os argumentos da série, revisando leituras já feitas e lendo coisas novas, pode ser que estas impressões sejam mudadas daqui até lá.

  3. Manolo,
    Interessantíssima a sua pesquisa!
    Fiz uma pesquisa rápida sobre estas “11 teses sobre a autonomia” e acabei caindo no seu artigo sobre o Mario Pedrosa (http://passapalavra.info/?p=14533).
    Pergunto: você já encontrou este documento?
    Eu soube deste comentário do Guattari sobre o PT, mas me disseram que ele alertava para os perigos da institucionalização, principalmente pela via eleitoral/parlamentar. Em qual livro eu encontro estas declarações dele?
    Só mais uma coisa. Há edições desta revista “Desvios” a venda em sebos online (acho que você já deve saber disso…).
    Aguardo, no tempo certo, a publicação deste trabalho.
    Bom trabalho.

  4. Essas revistas do grupo Desvios estão disponíveis na biblioteca da FFLCH-USP. Salvo engano, tem dois números lá.

  5. Estando em Salvador seria um pouco difícil para mim ter acesso à biblioteca da FFLCH-USP, mas agradeço a intenção de ajuda. Já consegui a coleção completa da revista e outras coisas do mesmo grupo, exceto as tais 11 teses. E as afirmações de Guattari sobre o PT podem ser encontradas no Micropolítica: cartografias do desejo e no Guattari entrevista Lula. Já a entrevista com Castoriadis (que não tive tempo de reler e citei de memória) pode ser encontrada clicando neste link.

  6. Manolo o link da entrevista do Castoriadis não funciona mais vc pdia colocar ele inteiro?

  7. O link ainda funciona: http://www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/br/pbunesco/iii_01_teoria.html. Para não perder o conteúdo em caso de pane no site citado:

    Quando em visita a Porto Alegre, o filósofo Cornelius Castoriadis, surpreso com o ineditismo da experiência [do orçamento participativo], exclamou: “Eu sempre vi organizações e lideranças populares mobilizando-se contra o Estado. Jamais vi mobilizar-se para orientá-lo. Foi a primeira vez que eu vi isto”. (Genro, Tarso. A utopia possível. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995, p.165.)

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