Colocou seu iPhone para despertar às 6:30, inútil, seu cronograma do dia chegou às 6:20… e mais um dia começava. Por Leandro Gomes

Na secura do ar condicionado de mais um dia de baia-computador-café-baia-chefe-relatório já não fazia mais questão de entender as coisas, não que refletisse no tema, mas aquela fotografia do funcionário do mês não mais lhe comovia, lhe parecia tão estúpida e tão normal quanto a conversa que levava.

f_maisumdia1Fabiuuu:
Fala, sussa? Parabéns ae!
Me:
Bl, valeu e ahi, fazendo?
Fabiuuu:
Rolê de sempre, passando uns dados pra planilha e enrolando aqui.
Me:
Tb, preguiça de fazer as coisas, desse lado da sala não dá muita vontade não, galera estranha.
Fabiuuu:
Só, e o cara novo, tá do seu lado não?
Me:
Tá na baia aqui do lado, sei lá, já faz umas três semanas, parece de boa, cumprimenta e talz.
Fabiuuu:
Pode crer, vô dah uma desbaratinada que o chefe vem aí.
Me:
Manda a ver, daqui a pouco toca o sino.

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Jonas:
Fala véio! Felicidades, quanto tempo hein! Fazendo o que da vida? Abraço.
Aninha:
Opa! Muitos anos de vida!
Alfredo:
E aí, quando tomamos uma para comemorar esse aniversário?

“Chegando em casa respondo”- pensou sem muito ânimo.

f_maisumdia2Tomou os parabéns após o soar do sino das 6 horas, zumbido irritante e que há anos não lhe dava mais a felicidade dos primeiros dias de emprego. Sorrisos amarelos, de vergonha do esquecimento relembrado por colegas de trabalho ou de falsa alegria misturada com um formalismo desnecessário.

Os votos de felicidades lhe renderam um ônibus atrasado. Passou pela banca de jornal, o atendente indiferente o olhou por cima dos grandes óculos amarelos e desgastados pelo tempo.

“Pesquisas indicam Tiririca como o mais votado do estado” leram seus olhos na manchete de jornal, olhos que por causa do atraso puderam sair do par Lance-Playboy. “Talvez esse seja meu candidato” – pensou – “portal da transparência é o cacete!” – esbravejou em voz baixa renunciando a qualquer esforço a mais que o processo eleitoral pudesse lhe propiciar, ler uma notícia representava alguns filmes pornôs a menos.

O celular tocou, sua mãe:
– Parabéns filho!
– Obrigado mãe, logo estou em casa.
– O João te ligou convidando pra sair.
– Tô afim não, o trabalho foi cansativo hoje.
– Você precisa sair, ninguém vive de computador não, tem que sair, arrumar uma namorada.
– Tá bom mãe, já já a gente se fala.
– Beijo filho, te amo.
– Beijo mãe.

Mal desligou e o celular identificava a chamada do então inconveniente João. Preferiu a omissão e não atendeu.

Chegou em casa, recebeu um forte abraço de sua mãe, a qual logo perguntou-lhe brevemente sobre seu dia. “Tudo bem” respondeu. E sua mãe se dirigiu para a poltrona cravada na frente da TV, após saciar-lhe com o que talvez fosse o único e verdadeiro calor humano que sentiria no dia.

f_maisumdia3Sentiu-se sozinho e foi checar seu e-mail na ilusão de um conforto oferecido pelas calorosas saudações virtuais. Em anexo apenas planilhas, relatórios a refazer e cobranças dum atualizado e “antenado” supervisor. Não deixou por menos e acreditou estar adiantando o que seriam tarefas de amanhã. Empenhado em tal tarefa gastou cerca de duas horas enquanto o celular tocava, insistentemente ignorado. Acabados os deveres resolveu pensar num presente para si e por alguns minutos namorou um novíssimo netbook, mais novo que o do colega da baia da frente. Num par de cliques se endividou, seu presente chegaria em não mais de uma semana.

Com a alma saciada esquentou uma suculenta lasanha no microondas. Comeu-a saboreando a trama da novela das 8. Tomou banho. Colocou seu iPhone para despertar às 6:30, inútil, seu cronograma do dia chegou às 6:20… e mais um dia começava.

Ilustrações: esculturas de George Segal.

6 COMENTÁRIOS

  1. A morte neste caso, assim como no caso da tirinha, é a confirmação corpórea do estado mental existente, uma atualização, enfim, a coerência entre o corpo e a alma, onde o segundo corre atrás do primeiro.

    Mas o pior é o eterno retorno, como disse o filósofo do bigode:
    “E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!”. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?”

  2. O bigodudo o qual o comentário anterior se refere, por acaso, é este: http://passapalavra.info/?p=26055 ? Sei…

    Este texto me lembrou muitas coisas. O cotidiano “deprê” de quem trabalha num escritório passa bem por aí. Há umas tirinhas, que pra mim são as mais geniais de todas, que também ilustram um tanto dessa dinâmica, que são as do Dilbert (www.dilbert.com). Há versões em português, tanto do Brasil quanto de Portugal.

  3. Galera, um dúvida: quem postou esse texto? Foi um aluno do IFCH – Unicamp?? Estou procurando esse cidadão! rs

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