Por Felipe Corrêa

 

A BUSCA DE UM MÉTODO DE ANÁLISE:
TEORIAS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Depois de um processo de longas discussões entre teóricos dos movimentos sociais das ciências sociais, há hoje uma busca de conciliação. Apresentarei brevemente as principais teorias clássicas sobre os movimentos sociais para dar uma idéia das posições envolvidas no debate, tendo por objetivo encontrar um método de análise adequado para pensar a questão da burocratização dos movimentos.

As teorias clássicas sobre os movimentos sociais

Surgiram, desde os anos 1970, três teorias fundamentais sobre os movimentos sociais. A Teoria da Mobilização de Recursos (TMR), a Teoria do Processo Político (TPP) e a Teoria dos Novos Movimentos Sociais (TNMS). A TMR “enfatizou o significado das bases organizacionais, da acumulação de recursos e a coordenação coletiva de atores políticos populares”; defendeu as “similaridades e convergências entre movimentos sociais e grupos de interesse”; os modelos iniciais “exageraram na centralidade das decisões estratégicas deliberadas para os movimentos sociais” e praticamente não consideraram “as eventualidades, a emotividade, a plasticidade e as características interativas das políticas dos movimentos”. Pelo menos, a TMR atentou “ao significado dos processos organizacionais na política popular”. A TPP enfatizou, diferentemente, “o dinamismo, a interação estratégica, e a resposta ao ambiente político”; produzindo “pesquisas sobre as formas de reivindicação que as pessoas utilizam em situações reais da vida – o que seria chamado de ‘repertório do confronto’”. Mais recentemente, uma reação ao estruturalismo desses estudos anteriores aproximou pesquisadores de “perspectivas culturais e sociais-psicológicas”, adicionando outro elemento ao estudo dos movimentos sociais: o processo de criação de quadros interpretativos (framing). (McAdam, Tarrow, Tilly, 2001, pp. 15-16)

O processo de desenvolvimento dessas teorias, dos debates e do movimento conciliatório, tratado no artigo “As Teorias dos Movimentos Sociais”, de Angela Alonso, coloca um resumo dessas três teorias.

“Em suma, as três teorias – agora clássicas – sobre movimentos sociais têm contornos bastante peculiares. A TMR focalizou a dimensão micro-organizacional e estratégica da ação coletiva e praticamente limou o simbolismo na explicação. Já a TPP privilegiou o ambiente macropolítico e incorporou a cultura na análise por meio do conceito de repertório, embora não tenha lhe dado lugar de honra. A TNMS, inversamente, acentuou aspectos simbólicos e cognitivos – e mesmo emoções coletivas –, incluindo-os na própria definição de movimentos sociais. Em contrapartida, deu menor relevo ao ambiente político em que a mobilização transcorre e aos interesses e recursos materiais que ela envolve.” (Alonso, 2009, p. 69)

A defesa dessas três teorias ocupou os debates até o início dos anos 1980 e, após isso, houve intensas discussões e polêmicas em torno do problema identidade versus estratégia. Naquele momento, autores criticavam as teorias que não defendiam e, ao mesmo tempo, afirmando suas próprias teorias, realizavam certa autocrítica.

Finalmente, um processo de certa conciliação estendeu-se durante os anos 1990 e 2000. Defensores da TNMS assumiram que as outras teorias eram, de fato, mais adequadas para lidar com a racionalidade e a lógica dos movimentos sociais, agregando em seu método de análise recursos, estratégias e oportunidades. A TPP admitiu a falta de espaço que a cultura tinha em sua abordagem, adotando o conceito de “identidade coletiva”. A TMR perdeu espaço durante o debate, reconhecendo seus limites e incorporando categorias da TPP ou aproximando-se da TNMS.

A partir de então houve uma aproximação entre os teóricos dos movimentos sociais. Buscando extrair os principais resultados desse debate, esses teóricos vêm criando teorias mais amplas, que envolvem aspectos das três antigas correntes, em uma espécie de “síntese” da teoria dos movimentos sociais, ainda que diferenças significativas continuem existindo. Utilizando elementos objetivos e subjetivos, essa síntese estabeleceu-se em torno das seguintes posições: Os “movimentos sociais não surgem pela simples presença de desigualdade”, ainda que a desigualdade seja um fator de relevância e, na presença de outros elementos, possa impulsionar as mobilizações, transformando-se em variadas reivindicações. Os movimentos sociais não “resultam diretamente de cálculos de interesses ou de valores”, ainda que esses cálculos estejam presentes em diversos movimentos. Assim, as “mobilizações envolvem tanto a ação estratégica, crucial para o controle sobre bens e recursos que sustentam a ação coletiva, quanto a formação de solidariedades e identidades coletivas”. (Alonso 2009, p. 72)

No decorrer desse debate, a TNMS deslocou-se do estudo dos movimentos sociais para o estudo da sociedade civil, de maneira mais ampla. A TPP ampliou seu escopo desenvolvendo um método que fosse capaz de compreender episódios de terrorismo (a partir das reflexões sobre a violência, que já estavam presentes em sua teoria), de burocratização, de globalização, dando conta da questão cultural, relegada, de certa forma, anteriormente. A partir desta mudança, teóricos como Tilly, Tarrow e McAdam passam a sustentar que os movimentos sociais fazem parte de um amplo conjunto de políticas “contenciosas”, ou “de confronto”, como vem sendo traduzido o termo “contentious”. Com as ferramentas de análise deste amplo conjunto que envolve o confronto, seria possível interpretar fenômenos que passam por movimentos sociais, sindicalismo, nacionalismo, partidos, conflitos étnicos, guerrilhas, terrorismo, insurreições e revoluções.

Na América Latina, a TNMS detém ainda a hegemonia nos estudos sobre os movimentos sociais e só recentemente as teorias daqueles que estavam em torno da TPP, e que agora a ampliam, incorporando elementos das outras teorias, em torno da Teoria do Confronto, começam a ser pesquisadas e utilizadas.

A Teoria do Confronto Político

Um aspecto importante a ser ressaltado é que todas as teorias dos movimentos sociais, há muito, descartaram o determinismo econômico. Se é verdade que algumas delas dão à economia pouca importância, o me parece um grande equívoco, assumir que ela determinaria mecanicamente a política e a ideologia-cultura é um erro de mesmas proporções. Todas as teorias dos movimentos sociais rejeitam o determinismo econômico, fundamentadas em observações atentas da realidade. E a Teoria do Confronto não é diferente e considera como base a influência mútua e a interdependência das diferentes esferas: econômica, política (envolvendo aspectos jurídicos e militares) e ideológica-cultural.

A própria origem da Teoria do Confronto, que tem por base a TPP, surge deste debate; ela e a TNMS surgem dos “debates sobre a revolução, ou melhor, da exaustão dos debates marxistas sobre as possibilidades da revolução. Ambas se insurgiram contra explicações deterministas e economicistas da ação coletiva e contra a idéia de um sujeito histórico universal.” (Alonso, 2009, p. 53)

A Teoria do Confronto, a partir dessas bases, propõe-se como ferramenta teórica para estudos que também englobam os movimentos sociais. Sem procurar identificar mecanismos e categorias fixas, que se repetem ao longo da história e que permitiriam interpretar o futuro, sem estabelecer causas e conseqüências fixas, e sem buscar estabelecer leis gerais que funcionariam de maneira ahistórica, a Teoria do Confronto propõe um método de análise amplo e dinâmico, oferecendo aos interessados no estudo do confronto um programa, ou seja, um conjunto de elementos que possa nortear a compreensão dos acontecimentos reais.

Esse programa, conforme colocam seus proponentes, tem um lado negativo e outro positivo, constituindo as bases para uma análise que também envolve os movimentos sociais. Seus aspectos negativos envolvem:

“- Abandonar os esforços para provar que o racionalismo, o culturalismo ou o estruturalismo explicam episódios particulares.
– Abandonar a explicação dos eventos enquadrando-os no modelo clássico de movimento social ou qualquer outro modelo geral e invariável. […]
– Abandonar as críticas dos modelos clássicos que adicionam elementos ou simplesmente modificam seus aspectos principais. […]
– Abandonar os esforços para especificar as condições suficientes e/ou necessárias para a totalidade dos tipos de episódios por meio de comparações sim/não ou análises correlacionais. […]
– Utilizar estes mesmos métodos de maneira esparsa, e principalmente especificar o que deve ser explicado. […]”

Seus aspectos positivos envolvem:

“- Transversalmente, em um conjunto de casos, identificar e testar a presença de destaques operacionais específicos para mecanismos particulares. […]
– Identificar, estudar e comparar processos comuns – que frequentemente repitam sequências e combinações de mecanismos. […]
– Especificar como mecanismos particulares funcionam, examinando evidências de múltiplos episódios. […]
– Quando houver esforço para explicar episódios completos, especificar o que pode se distinguir entre eles e que precisam de explicação, identificar mecanismos e processos que causam esses aspectos diferenciados e, então, tornar concreta essa identificação pela comparação com pelo menos um outro episódio diferente no que diz respeito aos aspectos distintos. […]
– Considerar uma categoria de episódios considerada sui generis pelas pessoas, identificar o que é problemático sobre os episódios e, então, especificar os mecanismos e processos que causaram esses aspectos problemáticos. […]” (McAdam, Tarrow, Tilly, 2001, pp. 312-313)

Parece-me que a recente Teoria do Confronto seja uma ferramenta adequada para a análise dos movimentos sociais – e inclusive de outros episódios que envolvem o confronto – nas mais diversas localidades, incluindo a América Latina.

Obviamente que este programa é muito mais complexo e, portanto, excessivamente amplo, visando nortear pesquisas de grande envergadura, o que não é o caso deste artigo. De qualquer forma, creio que vale ressaltar que esta teoria pode contribuir de maneira significativa com as pesquisas sobre movimentos sociais.

Por este motivo, utilizarei neste artigo alguns aspectos da Teoria do Confronto. Desconsiderarei toda a parte negativa do programa citado, e levarei em conta apenas alguns dos aspectos positivos. Buscarei conceituar o que são mecanismos, processos e as relações entre eles.

Definindo mecanismos e processos

Para o método de análise escolhido, é necessário definir mecanismos e processos.

Mecanismos são tipos de eventos que alteram as relações entre conjuntos específicos de elementos de maneira idêntica ou bastante similar em diferentes situações.

Processos são sequências regulares desses mecanismos que produzem transformações similares (geralmente mais complexas e eventuais) desses elementos.” (McAdam, Tarrow, Tilly, 2001, p. 24)

Desconsiderarei aqui os episódios, que são os conjuntos de processos e dão corpo a movimentos coletivos amplos. A meu ver, esta categoria é mais adequada para explicar movimentos de maneira mais geral, e não processos internos aos movimentos, o que é aqui o caso.

McAdam, Tarrow e Tilly (2001) sugerem que os mecanismos podem ser de três tipos: relacionados ao meio, que refletem as influências externas e que afetam a vida geral; cognitivos, que se manifestam na alteração das percepções individuais e coletivas; e relacionais, que se dão a partir das relações entre pessoas e grupos de pessoas. Portanto, os mecanismos envolvem o meio (relações econômicas, políticas e ideológicas-culturais), o indivíduo (a forma com que esse indivíduo vê o mundo) e a interação entre indivíduos e o meio, de maneira mais ampla.

Quando os mecanismos são concatenados com outros, surgem os processos, que são “cadeias causais, sequências e combinações de mecanismos que ocorrem frequentemente”. (Ibidem. p. 27)

A partir desta noção de mecanismos e processos, tentarei identificar os principais mecanismos que são responsáveis pelos processos de burocratização dos movimentos sociais. Em seguida, tentarei propor “contra-mecanismos” que resultem em “contra-processos” que poderiam desburocratizar os movimentos, oferecendo saídas ao problema da burocratização. Finalmente, tratarei de algumas problemáticas que envolvem as questões colocadas.

Bibliografia completa ao final do 5º artigo da série.

Pode ler aqui os outros artigos desta série:
1) Os movimentos sociais na história
3) Mecanismos e processos de burocratização
4) Programa antiburocrático e poder popular
5) Uma discussão entre teoria e prática

3 COMENTÁRIOS

  1. Estou gostando desta série de artigos que tenta explicitar as teorias sobre os movimentos sociais produzidas na academia, mas senti falta de duas coisas importantes nesta exposição:

    1) A ausência do contexto social no âmbito do qual estas teorias foram formuladas, mostrando que elas emanam de realidades específicas e bastante diferentes entre si. Ora, a teoria da mobilização de recursos, por exemplo, nasce num EUA onde as formas de mobilização política da sociedade civil eram de fato impregnadas da tal “escolha racional”: lobbies, reivindicações formais etc. Muito diferente dos movimentos sociais “explosivos” da década de 60 que inspiram as teorias dos novos movimentos sociais. Uma contextualização é importante para mostrar como as teorias são uma confluência do ambiente institucional (dos centros de pesquisa) com o ambiente social (dos movimentos).

    2) A negligência de algumas matrizes teóricas importantíssimas, sobretudo a Teoria da Ação formulada por Alain Tourraine e depois desenvolvida teórica e empiricamente por autores incontornáveis como Manuel Castells – uma matriz teórica que esteve na base da TNMS. No seu texto, caro Felipe Correa, você explicita apenas as matrizes teóricas anglo-saxãs, e o leitor não familiarizado com as teorias sobre os movimentos sociais pode achar que isso é tudo. Que você priorize certas matrizes teóricas as quais você considere mais robustas ou com as quais esteja mais familiarizado, isto não é nenhum problema. Mas é importante dar a entender que existem outras importantes matrizes, as quais o leitor interessado poderá correr atrás depois.

    Apesar das ressalvas, parabéns pela série!

  2. Olá Eduardo, obrigado pelos seus comentários. Concordo plenamente que toda teoria tenha muita relação com o ambiente que ela é produzida.

    No caso da Teoria da Mobilização de Recursos (TMR), estou de acordo que ele é uma teoria muito baseada no contexto dos EUA, inclusive na perspectiva da esquerda assumidamente iluminista que está bastante presente por lá. A vantagem dela, a meu ver, é que ela reforçou aspectos racionais e estratégicos, que estavam pouco presentes em abordagens anteriores.

    Ainda sobre os EUA, se você pegar o clássico do McAdam dos anos 1980 que deu início à Teoria do Processo Político (TPP), “Political Process and Black Insurgency” eu acho uma das melhores análises do que foi a mobilização pelos direitos civis. E a teoria dele surge justamente a partir de um questionamento acerca dos limites da TMR.

    Os teóricos que você coloca, Tourraine e Castells, da forma como eu entendo, possuem essa abordagem que forjou as bases da Teoria dos Novos Movimentos Sociais (TNMS). De novo, nessas buscas de novas teorias, eu acho que um dos problemas é que os teóricos saiam de um extremo e iam para outro. Então, o extremo oposto da TMR é a TNMS. Uma prioriza absolutamente estratégia e racionalidade, a outra relega tudo isso e enfatiza praticamente só a cultura e os aspectos irracionais (abandonam classe e outros conceitos que me parecem centrais).

    Não sou um grande conhecedor neste sentido mas me parece que as abordagens de Tourraine e Castells vão neste sentido de ênfase dos aspectos culturais e no pouco trato pelas questões de estratégia, classe, racionalidade etc. que eu julgo que também são elementos importantes nos movimentos. Você concorda?

    Minha simpatia pelo pessoal que saiu da TPP e incorporou suas críticas (fundamentalmente da amplitude dos conceitos de oportunidades políticas e estruturas de mobilização e também da falta de importância aos aspectos culturais) e desenvolveu um modelo que me parece adequado para pensar as diferentes realidades. Diferente destes modelos que iam de um extremo a outro, acredito que eles propõem um bom meio termo entre questões individuais, coletivas e estruturais – aceitando a posição de interdependência e interinfluência dessas esferas. Além disso, tendem a observar todos os aspectos dos movimentos estratégia, racionalidade, emotividade, quadros interpretativos, etc.

    Sobre a literatura anglo-saxã, realmente eu acredito que foi ela que desenvolveu recentemente a maior quantidade relevante de teoria sobre movimentos sociais. Você discorda? Há uma quantidade (com qualidade) muito interessante de coisas a partir dos anos 1990 que ganhou muito quando as teorias começaram a sair do diálogo de surdos e incorporar elementos umas das outras.

    Acho os escritos recentes (pós 2001) dessa turma do “contentious” uma boa síntese da discussão. O Brasil a meu ver, tem uma trajetória em termo de teoria de movimentos sociais que acompanha a do PT: no início discutia-se movimentos sociais mas aos poucos as discussões foram se institucionalizando, avaliando a “sociedade civil” pontos de interação entre movimentos e Estado etc. realmente ficando para trás no que diz respeito a teoria de movimentos sociais. Você concorda?

    De qualquer forma, suas colocações são pertinentes! Valeu pelo debate! Se você tiver materiais interessantes de teoria de movimentos sociais para indicar, será mais do que bem-vindo!

  3. Olá,

    Não sou nada especialista no assunto, mas como me interesso bastante pela temática, aí vai um comentário rápido.

    O Eder Sader, em seu clássico “Quando novos personagens entram em cena”, chamava a atenção para novas abordagens teóricas e procedimentos metodológicos que estavam em voga no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 – principalmente tendo como destaque a idéia de “autonomia” e “auto-instituição da sociedade”, desenvolvidas por Cornelius Castoriadis e outros autonomistas da época. Ao mesmo tempo, Eder também costuma lembrar a riqueza das análises históricas de Edward Thompson.

    E o Eder Sader, nesse conjunto de influências, elaborou um dos melhores estudos concretos sobre a emergência dos movimentos populares no Brasil. Uma obra muito citada, e bem esquecida – não levada em suas últimas consequências teóricas e práticas.

    Para maiores esclarecimentos, vale a pena a leitura do capítulo inicial do livro supracitado. Nesse sentido, penso que a abordagem de Eder Sader pode ser considerada extremamente inovadora para época, e mesmo para o que veio depois – principalmente se pensarmos, como bem lembrou o Felipe, nos desenvolvimentos posteriores das análises dos movimentos sociais no Brasil.

    Enfim, são algumas notas soltas – ainda tentando mapear esse debate. Abraços!

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