Por Felipe Corrêa
O PROGRAMA ANTIBUROCRÁTICO E O PROJETO DE PODER POPULAR
Como já coloquei, os processos de burocratização constituem um entrave para os movimentos sociais, em todos os níveis: para as lutas de curto prazo e para os projetos de longo prazo. Ao buscar dotar os movimentos sociais da dupla capacidade de luta pelas questões imediatas e pela construção de um projeto de transformação, combater a burocratização é uma tarefa das mais importantes.
Tendo identificado mecanismos e processos de burocratização, torna-se possível, visando desburocratizar os movimentos sociais, a elaboração de um “programa antiburocrático” que contraponha esses mecanismos e processos, por meio da promoção de “contramecanismos” e “contraprocessos”, capazes de modificar a lógica burocrática. Este programa, portanto, pode ser estabelecido a partir de contramecanismos que levem a contraprocessos e, conseqüentemente, possam desburocratizar os movimentos sociais e construir o que chamo de poder popular.
É possível afirmar que há dois contraprocessos fundamentais, que podem contrapor os processos burocráticos. São eles:
1. Horizontalidade e conhecimento do processo de luta;
2. Eficiência por meio de bom aproveitamento de recursos e estruturas/processos adequados.
Dois contramecanismos fundamentais conduzem a esse primeiro contraprocesso (Horizontalidade e conhecimento do processo de luta):
a) Utilização da democracia direta;
b) Efetivação da autonomia e da ação direta.
Três contramecanismos fundamentais conduzem ao segundo contraprocesso (Eficiência por meio de bom aproveitamento de recursos e estruturas/processos adequados):
a) Estabelecimento dos objetivos de curto e longo prazo;
b) Coerência entre meios e fins;
c) Potencialização da força social.
De maneira esquemática, podemos visualizar essa relação entre os contramecanismos e os contraprocessos, apontando para a desburocratização dos movimentos sociais e a construção do poder popular, da seguinte maneira:
Tentarei, a partir dessa hipótese, definir de maneira mais aprofundada os cinco contramecanismos que dão origem aos dois contraprocessos em busca da desburocratização e da construção do poder popular.
Contramecanismos e contraprocessos para a desburocratização
a) Utilização da democracia direta
A utilização da democracia direta em um movimento social significa o envolvimento de todos os seus militantes nos processos de tomada de decisão. As decisões são, portanto, tomadas de maneira igualitária e coletiva: todos possuem os mesmos direitos de voz e de voto em assembléias horizontais que abarcam a discussão e a deliberação de todos os assuntos do movimento.
Com a democracia direta em funcionamento, não há deliberações por indivíduos ou grupos fora das assembléias e nem hierarquias ou divisões que separam a direção da base do movimento. Dessa maneira, pode-se dizer que há, efetivamente, um sistema de autogestão que é responsável pelas decisões coletivas em assembléias soberanas, envolvendo todos os participantes do movimento.
Para que esse contramecanismo possa ser colocado em prática, é necessário que o movimento o incorpore organicamente e garanta sua execução. Ou seja, que se conforme um sistema e uma estrutura em que a democracia direta seja prevista, e seu funcionamento prático seja garantido no cotidiano. A democracia direta não acontece e nem se mantém espontaneamente, e daí resulta essa necessidade de ela ser prevista organicamente e de os militantes do movimento preocuparem-se com a sua plena execução, visando corrigir os desvios que a prática cotidiana e espontânea oferece. As lideranças naturais, por exemplo, devem ser estimuladas, mas a organicidade do movimento deve garantir que elas não se coloquem em posição de hierarquia e domínio em relação ao conjunto do movimento.
No entanto, com a democracia direta, não são todos os militantes, necessariamente, em todos os momentos, que devem decidir sobre todos os assuntos. A idéia básica da autogestão é que as pessoas implicadas nas conseqüências das decisões sejam, obrigatoriamente, envolvidas, já que essas decisões terão conseqüências diretas sobre elas. Assim, o primeiro aspecto é que aqueles que forem afetados pelas decisões devem ser priorizados, no que diz respeito ao envolvimento nos processos decisórios. O segundo aspecto é que há diversos casos em que não é possível realizar assembléias ou envolver um grande número de pessoas nas decisões e, para estes casos, a democracia direta prevê a delegação. Ainda assim, essa não é uma delegação em que o delegado tem completa autonomia para fazer o que quiser; sua autonomia é relativa, e ele deve prestar contas para a base que, de fato, é quem o controla – isso é o que se chama de mandato imperativo.
As delegações certamente são necessárias e é necessária a rotação para que diferentes militantes possam ser delegados para as várias tarefas a serem desempenhadas – mesmo quando essas tarefas são de coordenação, de planejamento ou mesmo de direção. A rotação de tarefas não precisa prever que todos façam tudo – ela precisa garantir que todos os militantes do movimento tenham um conjunto de atividades que será composto por funções que exigem menos e mais capacitação e, assim, cada um fará um pouco de trabalho mais penoso, menos confortável e menos instrutivo e um pouco de trabalho mais agradável e instrutivo, permitindo sua educação permanente; buscando, enfim, um nível semelhante entre o trabalho “manual” e “intelectual” para cada um dos militantes. Um terceiro aspecto é que as posições dos delegados são revogáveis, de acordo com as decisões que envolvem o julgamento da base. Portanto, a partir do momento que a base acreditar que alguém designado para uma função não está desempenhando seu papel da melhor forma, ela pode ser retirada imediatamente da função e substituída por outra.
Um dos casos em que a delegação é necessária surge quando o movimento tem a necessidade de articulações mais amplas, com outros grupos, movimentos, etc. e, neste caso, o federalismo prevê a delegação nestes moldes, permitindo um processo democrático que parte das bases e responde a elas na execução de políticas mais amplas.
b) Efetivação da autonomia e da ação direta
Efetivar a autonomia e a ação direta no movimento social significa afastar as ameaças externas no que diz respeito ao estabelecimento de relações de hierarquia e dominação por parte de instrumentos, instituições e/ou indivíduos. A relação de dominação existe quando se utiliza a força social do movimento para realizar objetivos que são diferentes daqueles do movimento.
O movimento possui autonomia quando ele tem capacidade de autodeterminação, e decide sobre aquilo que lhe diz respeito: objetivos, meios de luta, alianças, etc. e atua em seu próprio favor e em proveito de seus próprios interesses. O movimento atua por meio da ação direta quando realiza a sua política sem utilizar as estruturas do Estado como meio, e, portanto, coloca os militantes do próprio movimento atuando, eles mesmos, na realização de sua política.
Pode-se dizer que um movimento social conseguiu efetivar a autonomia e a ação direta quando ele não está sendo subjugado por partidos políticos – sejam eles de direita ou de esquerda, revolucionários ou reformistas –, pelo Estado – em relações estabelecidas por iniciativa do Estado ou do próprio movimento –, por instituições de financiamento, ONGs, empresas, igrejas, sindicatos ou individualidades.
A questão que se coloca não é romper as relações com indivíduos, sindicatos, igrejas, ONGs, etc., mas mantê-las na medida em que sejam positivas para o movimento e não interfiram nas suas tomadas de decisão.
Processos mais complexos se dão nas relações com o Estado e os partidos políticos. Deve-se convir que o Estado, ainda que seja um instrumento de dominação de classe, tem por objetivo dar continuidade ao sistema e intermediar a luta de classes, e é por isso que, algumas vezes, ele também responde às necessidades populares e em detrimento dos capitalistas. Portanto, ainda que na maioria dos casos não seja assim, é possível usufruir de benefícios oferecidos pelo Estado e mesmo pressioná-lo, com objetivo de manter conquistas e realizar novas. Com os partidos, a questão se coloca na forma de sua relação com os movimentos; na maioria dos casos, nesta relação, os movimentos saem prejudicados, visto que a imensa maioria dos partidos tem por objetivo fazer dos movimentos sociais sua correia de transmissão. Quando o partido está dentro do movimento atuando em prol dele – situação de fato rara, pelas suas diferenças de objetivos – isso não afeta sua capacidade de autodeterminação e, portanto, não ocasiona maiores problemas. No entanto, quando os partidos atuam no seio do movimento em proveito próprio – o que é mais comum – eles minam sua autonomia.
A preocupação deve existir ao se constatar que, nesta relação, o movimento está servindo como gerador de quadros para partidos que estão ou não no poder, quando faz campanhas eleitorais em vez de fazer luta, quando somente espera as medidas institucionais pelos canais formais do Estado e respeita completamente as regras do “Estado democrático de direito”, reforçando-o na realidade.
Finalmente, vêm as relações com empresas que são ainda mais complicadas: o objetivo das empresas – obtenção de lucro – coloca-se em grande contradição com os movimentos sociais e, na maioria dos casos, afeta sua autonomia. Entretanto, há exceções, quando é possível a um movimento usufruir de recursos de uma empresa sem perder autonomia, ainda que indiretamente essa autonomia possa estar sendo afetada. Por exemplo, se um movimento recebe financiamento da Nestlé e é convidado a ingressar em uma aliança na denúncia pelo consumo desenfreado de água por parte desta empresa em uma determinada localidade. O movimento aceitaria denunciar seu agente financiador?
Neste sentido, a autonomia envolve também a capacidade de o movimento conseguir, prioritariamente, ser auto-suficiente, naquilo que diz respeito aos seus recursos financeiros. Um movimento autônomo possui formas de financiamento autônomas que não o atrelam a agentes financiadores com interesses diferentes dos seus. E, dessa maneira, o movimento possui não só os recursos financeiros necessários para sua atuação, mas também a capacidade de atuar em seu próprio proveito, sem estar vinculado a agentes financiadores, que podem utilizar o financiamento como forma de comprometer o movimento.
Em suma, movimentos sociais autônomos e que trabalham com a ação direta são aqueles que, independentemente de suas relações, conseguem atuar em seu próprio favor e não serem subjugados em relações de hierarquia e dominação.
1) Horizontalidade e conhecimento do processo de luta
Os dois contramecanismos: a) Utilização da democracia direta e b) Efetivação da autonomia e da ação direta tendem a este contraprocesso, que é 1) Horizontalidade e conhecimento do processo de luta.
A horizontalidade implica os mecanismos de democracia direta para a tomada de decisões, que são igualitárias (poder de decisão, nível de informação, etc.) e coletivas. Envolvem, desta maneira, necessariamente aqueles que são implicados nas decisões e também assembléias amplas, nas quais se busca a maior participação. Isso constitui um sistema de autogestão das lutas do movimento.
Não há, portanto, hierarquia e, conseqüentemente, relação de dominação e separação entre base e direção: o movimento, coletivamente, dirige, planeja, executa, pensa e faz: em suma, “manda obedecendo”. Todo o conjunto do movimento é estimulado e encorajado a tomar a frente nos processos que o envolvem, minimizando a passividade e estimulando o desenvolvimento e o engajamento coletivos.
A delegação e as articulações com a utilização do federalismo implicam mandato imperativo, rotatividade e revogabilidade de funções. Assim, ainda que alguns militantes se envolvam em atividades de coordenação, planejamento, etc., essas funções serão temporárias, impedindo a cristalização e estimulando o desenvolvimento coletivo.
Estes são aspectos da horizontalidade que devem ser previstos organicamente e ser objeto de constante preocupação do movimento.
A horizontalidade, dessa maneira, envolve ainda: a autonomia do movimento social, no que diz respeito à capacidade de autodeterminação do movimento e sua atuação em favor de seus próprios interesses; e a atuação com base na ação direta, com a realização de política pelo movimento sem a utilização do Estado como meio e colocando os militantes como protagonistas da ação.
O conhecimento do processo de luta ocorre com a desalienação das relações dentro do próprio movimento, e quando não há divisão do trabalho cristalizada, fundamentalmente as que envolvem hierarquia. Ele acontece quando militantes estão implicados em diferentes tarefas, que exigem diferentes níveis de capacitação, e não ficam sempre realizando as mesmas funções, envolvendo-se em diversos espaços de discussão e conhecendo o máximo possível o que está fazendo o conjunto do movimento.
a) Estabelecimento dos objetivos de curto e longo prazo
Tratar dos objetivos de um movimento social implica dar uma resposta à pergunta: para que servem os movimentos sociais? Ao tratar da falta de objetivos como um dos mecanismos dos processos de burocratização, coloquei que os movimentos sociais formam-se a partir das contradições da sociedade, e suas mobilizações e lutas se dão para a solução de um problema específico ou um conjunto de problemas que, juntamente com outros elementos, deram origem ao movimento. Coloquei também que a maioria dos movimentos sociais possui objetivos de curto prazo, que estão ligados às suas bandeiras de luta: moradia, terra, emprego, etc., com algumas exceções, notadamente no movimento sindical.
Para o estabelecimento de contraprocessos que possam desburocratizar os movimentos sociais, é necessário voltar um passo atrás e pensar nos objetivos de curto prazo dos movimentos. São esses objetivos que têm por função agregar um conjunto de pessoas significativo para o movimento e que constituem as bases de suas reivindicações imediatas. Os objetivos de curto prazo precisam ser factíveis em um espaço relativamente curto de tempo, proporcionando vitórias ao movimento, pois um movimento não vive somente de derrotas.
Conforme coloquei, exemplos desses objetivos são: a “conquista de moradia, para um movimento de sem-teto; a ocupação de uma terra sem função social e o estabelecimento de um assentamento, para um movimento de sem-terra; a conquista de planos assistenciais e de emprego para um movimento de desempregados; a conquista de melhorias para o bairro para um movimento comunitário; o aumento das bolsas para alunos pobres em universidades para o movimento estudantil”; “a defesa dos trabalhadores, naquilo que diz respeito à manutenção de seus direitos conquistados e da ampliação desses direitos”, “para o movimento sindical”, etc.
Um movimento precisa ter pelo menos os objetivos de curto prazo, se não quiser tornar-se um organismo burocrático, servindo somente à sua própria manutenção, ou um movimento de bases muito reduzidas. São os objetivos de curto prazo que norteiam de maneira mais evidente as ações cotidianas do movimento.
No entanto, ainda que estes objetivos estejam estabelecidos, eles não são suficientes para acabar com o reformismo e o corporativismo e ampliar a luta dos movimentos, de maneira que seja possível uma transformação mais ampla e significativa da sociedade. Ou seja, somente com os objetivos de curto prazo, os movimentos não têm condições de atacar as raízes do sistema que os gera.
O estabelecimento dos objetivos de longo prazo vincula-se à idéia de que combater as conseqüências é importante, mas que se deve prever, de uma ou outra forma, o ataque às causas geradoras das contradições e dos problemas que, pelas disputas de poder, geram dominação. Para além das lutas de curto prazo, os movimentos sociais encarnam uma responsabilidade histórica de reunir as maiorias – o conjunto de subjugados nas relações de dominação na sociedade – e organizá-las para um processo de ruptura. Neste sentido, os movimentos sociais constituem o espaço que permite a organização popular que, a partir das necessidades concretas, pode avançar, crescendo em números e em vínculos orgânicos, nas alianças e na radicalização, e apontar para um projeto de transformação social revolucionária que supere a sociedade atual e consiga chegar ao socialismo.
Esse processo exige um ganho de consciência, que é similar ao processo que se dá na mobilização de militantes para os movimentos: há um envolvimento com a luta e o ganho de consciência ocorre progressiva e paralelamente a ele. Dessa maneira, o estabelecimento e a busca dos objetivos de longo prazo exigem, ao longo do caminhar das lutas, a investigação das causas geradoras dos movimentos sociais e das próprias contradições da sociedade – o que envolve uma reflexão mais ampla acerca das distintas formas de dominação. Essas investigações evidenciarão, pouco a pouco, juntamente com as experiências práticas das lutas, que as causas geradoras de todos os movimentos sociais possuem relação entre si e que, na realidade, estão ligadas às bases da sociedade atual. Se o problema não é setorial ou parcial, mas de todos os que sofrem relações de dominação dessa sociedade, será necessária uma atuação coletiva, envolvendo os diferentes setores oprimidos, por meio de amplas alianças, para o combate às raízes dos problemas, sem sectarismos ou corporativismos, visando a transformação da sociedade e a construção de uma outra.
Uma nova sociedade pautada na igualdade e na liberdade – o que entendo por socialismo –, a meu ver, deve constituir o objetivo de longo prazo dos movimentos sociais, se eles quiserem, de fato, atacar as causas, e não somente as conseqüências, da sociedade atual. E a discussão de que tipo de socialismo está se falando – levando em conta as experiências históricas – se faz mais do que fundamental. Tratando especificamente da burocracia, por exemplo, é possível afirmar que, muito do que se chamou “socialismo real” constituiu burocracias fortíssimas, sempre em detrimento do conjunto do povo oprimido. Por esse e outros motivos, é realmente relevante o debate acerca de que tipo de socialismo se coloca como objetivo de longo prazo.
b) Coerência entre meios e fins
Este contramecanismo parte do raciocínio estratégico já explicitado: “os objetivos estratégicos devem determinar a estratégia e esta deve determinar as táticas. Portanto, a realização das táticas deve contribuir com o avanço da estratégia e com a aproximação dos objetivos.” Assim, estabelecidos os objetivos, é necessário que se crie uma estratégia e que esta se desdobre em um conjunto de táticas que, conjuntamente, nortearão todo o andamento do movimento social.
Considerando que o movimento social tem a dupla função de realizar as lutas de curto prazo e construir, a partir de suas práticas cotidianas, os caminhos para o objetivo de longo prazo, é necessário pensar em que medida os caminhos escolhidos para as conquistas imediatas estão aproximando o objetivo de longo prazo ou deixando-o mais distante.
As lutas de um movimento são uma escola e um germe da sociedade futura, e por isso, os meios a serem utilizados devem fortalecer este projeto socialista e antiburocrático. Certamente, nesta construção, são necessários novos instrumentos, valores, novas práticas, relações, que construam desde já, cotidianamente, esta nova sociedade. O movimento pode, para isso, incorporar, pouco a pouco, novos elementos que são distintos dos da sociedade atual: fim da divisão do trabalho alienante e da hierarquia, desestímulo ao individualismo, o incentivo aos processos que restabelecem os laços coletivos e a solidariedade, a utilização dos recursos como meios de se chegar aos objetivos e não como fins em si mesmos, o estímulo à capacidade de crítica e autocrítica construtivas, etc.
Ainda neste sentido, o vínculo entre os movimentos sociais e o Estado e seus processos burocráticos tem de ser evitado, visto que, ainda que no curto prazo isso signifique um avanço (com recebimento de alguns favores, recursos, aprovação de leis, projetos, etc.), no longo prazo isso significa enfraquecer a luta pela utilização de um meio que afasta e desmobiliza – comprovado historicamente de maneira emblemática no caso do Partido dos Trabalhadores (PT). O que também significa a não-priorização das eleições como forma de realização da política, que deve se dar em torno das bandeiras do movimento e não da eleição de candidatos que façam a luta no lugar do movimento.
Para que os meios do movimento não se transformem em fins em si mesmos, é necessário clareza sobre os meios e os fins do movimento. Se o movimento despende mais tempo com a gestão de seus recursos e com a discussão dos meios de luta, certamente há um problema a ser superado. A prioridade de um movimento social deve se dar, necessariamente, em torno de sua luta e mobilização; os recursos, as tarefas do dia-a-dia do movimento, etc. são meios que não podem se sobrepor aos objetivos ou tornarem-se fins em si mesmos.
c) Potencialização da força social
Conforme coloquei, os movimentos sociais surgem a partir de contradições da sociedade buscando “organizar uma força social que tem por objetivo modificar a relação de poder estabelecida; uma relação em que os poderosos impuseram sua vontade por meio da força social mobilizada, sobrepujando outras forças e constituindo, na maioria dos casos, uma relação de dominação, chamada […] de ‘relações dominantes-subordinados’ e gerando confronto político.” Portanto, os movimentos sociais estão inseridos dentro da correlação de forças que envolve a política da sociedade e, portanto, para atingir seus objetivos, devem preocupar-se constantemente com o aumento progressivo de sua força social.
Mas o que é força social? É a energia que todo indivíduo, como agente social, possui e que pode aplicar para alcançar seus objetivos. Essa força varia de uma pessoa para outra, e também em uma mesma pessoa ao longo do tempo, havendo vários recursos para aumentar essa força e atingir os objetivos, sendo a organização um deles. O que estou defendendo neste artigo é um modelo de organização não-alienada, que se dá pela livre associação e que consegue multiplicar a força social coletiva, com um resultado que é maior do que a simples soma das forças individuais.
Relacionando essa necessidade de aumento progressivo de força social com os objetivos de curto e longo prazo colocados anteriormente, pode-se dizer que ao organizar setores não-organizados, os movimentos sociais aumentam sua força, aumento este que continua quando o movimento ganha adesões, melhora em organicidade, faz alianças, etc. Esse aumento de força possui relação direta com os objetivos e as conquistas de curto e longo prazo. No que diz respeito ao curto prazo, quanto mais força social tiver um movimento, maior será sua capacidade de impor suas posições aos agentes dominadores, no jogo de forças da sociedade, e conquistar medidas em seu próprio favor. Em relação ao longo prazo, o aumento de força social é imprescindível na criação de uma ampla organização popular, fruto do crescimento e da radicalização dos movimentos sociais em aliança, apontando para uma transformação revolucionária rumo ao socialismo. Portanto, seja para os objetivos mais ou menos imediatos, o movimento social tem de preocupar-se permanentemente com o aumento de força social.
Para isso, é fundamental que os movimentos sociais aproveitem seus recursos da melhor maneira e tenham processos e estruturas que condigam com as suas necessidades reais e que constituam meios adequados para os fins que ele quer atingir. Neste sentido, há diversas práticas que podem potencializar os recursos dos movimentos e contribuir com os objetivos de curto e longo prazo. São elas: o envolvimento da base no movimento, aproveitando todo seu potencial; a preocupação tanto com a quantidade de militantes mobilizados, quanto com a qualidade desta militância; a busca de um campo amplo de relações e alianças; a gestão coletiva e otimizada dos recursos materiais, em que os responsáveis estejam submetidos a um rigoroso controle da base; o cuidado permanente visando evitar processos de corrupção que envolvem desvio de recursos, utilização desses recursos individualmente, etc., afastando imediatamente das posições de responsabilidade de controle de recursos aqueles que atuarem em sentido contrário; a utilização das estruturas da melhor maneira possível, sem deixá-las inativas ou subutilizadas; o ajuste de processos e de estrutura do movimento às necessidades reais; o trabalho com a priorização de atividades, buscando envolver a maior parte da militância e de seu tempo em atividades mais relevantes e dedicando menos tempo e pessoas para questões secundárias ou de pouca relevância. Há certamente outras.
Todo este raciocínio, no entanto, não pode desvincular-se, em momento algum, daquilo que coloquei em relação aos meios, fins e objetivos dos movimentos. Pois, pode ser fácil enganar-se pensando que a melhor maneira de gestão a ser aplicada em um movimento é a de uma empresa capitalista. Ainda que o aumento de força deva ser permanentemente buscado, ele não pode ocorrer ao preço de que sejam adotados meios inadequados para os fins pretendidos, ou mesmo ao preço do abandono dos objetivos de curto e/ou longo prazo. Por isso toda a questão está em torno de conseguir uma maneira que ao mesmo tempo aumente a força do movimento e contribua no caminho que se quer seguir, rumo às conquistas parciais e à transformação social.
2) Eficiência por meio de bom aproveitamento de recursos e estruturas/processos adequados
Os três contramecanismos: a) Estabelecimento dos objetivos de curto e longo prazo, b) Coerência entre meios e fins e c) Potencialização da força social tendem a este contraprocesso que é 2) Eficiência por meio de bom aproveitamento de recursos e estruturas/processos adequados.
Pode-se dizer que o movimento social é eficiente quando consegue atingir seus objetivos da maneira mais rápida e menos custosa possível, falando em termos dos mais diferentes tipos de recursos.
Portanto, os movimentos sociais eficientes são aqueles que possuem um conjunto estratégico: objetivos, estratégias e táticas, envolvendo curto e longo prazo. Com objetivos bem definidos em termos de curto prazo (visando conquistas imediatas) e longo prazo (transformação social), devem subordinar-se a eles estratégias e, subordinadas a essas estratégias, táticas. Se esse conjunto estratégico for bem estabelecido, suas táticas levarão às estratégias e elas aos objetivos, em um esquema em que os meios condizem com os fins e conduzem a eles.
A potencialização da força social de um movimento, imprescindível para o caminho em direção a seus objetivos, pode ser conseguida com o bom aproveitamento de seus recursos (materiais, humanos e organizativos), estruturas e processos.
Construir o Poder Popular
As hipóteses que busquei estabelecer e analisar com alguma profundidade estabelecem possibilidades de mecanismos e processos contrários àqueles que hoje geram a burocratização dos movimentos sociais, de forma a contribuírem significativamente com a sua desburocratização e com a construção do poder popular. Mas o que é poder popular? Para o estudo deste conceito, pode-se iniciar investigando brevemente os significados dos termos “poder” e “popular”.
O poder pode ser entendido como “a imposição da vontade de um agente através da força social que consegue mobilizar para sobrepujar a força mobilizada por aqueles que se opõem”. (Lopez, 2001, p. 62) Ele circula por todas as relações sociais: entre classes, grupos e pessoas que possuem relações e, portanto, está também ligado aos conflitos, sendo possível afirmar que nas relações sociais que envolvem conflito nunca há ausência de poder; se uma parte não tem poder, a outra necessariamente tem. Ainda que determinadas classes, grupos ou pessoas tenham capacidade de realização, ou seja, ainda que, potencialmente, possam fazer algo, isso não significa necessariamente a constituição de uma força social e sua implicação em um conflito. O poder existe quando a capacidade de realização constitui-se em força social e essa força é aplicada em um conflito determinado superando as outras forças em jogo. (Lopez, 2001)
Falar de popular implica trabalhar com uma determinada noção de classe, ou seja, de constatação, por meio da leitura da realidade, que a sociedade presente é constituída de diferentes classes sociais e, portanto, possui uma estrutura de classes. A categoria mais adequada para se trabalhar a noção de classe é, a meu ver, a de dominação. A sociedade presente é constituída por diversas relações de dominação, que se dão nos mais diversos âmbitos: econômico, político e cultural-ideológico. Essa noção de classe, que se baseia na categoria de dominação, não se restringe à categoria de exploração econômica, ainda que esta esteja presente dentro do que entendo por dominação. (Rocha, 2009) Relações de dominação, portanto, envolvem acumulação de capital e de propriedade privada, exploração do trabalho, riqueza/pobreza, imperialismo/colonialismo, governantes/governados, repressão jurídica e militar, acesso diferenciado à instrução e aos veículos de imprensa, opressões de gênero, de raça, de opção sexual, etc.
A partir dessas relações é possível identificar dois amplos conjuntos em permanente contradição: as classes dominantes e as classes oprimidas – contradição que implica conflito e, conseqüentemente, luta de classes. Um projeto popular, e, portanto, classista, é aquele que se fundamenta no conjunto das vítimas das relações de dominação, tomando como base a exploração econômica (envolvendo, assim, trabalhadores assalariados, informais, precarizados e excluídos), mas estendendo-o às outras relações de dominação e incorporando-as, tanto em sua noção de classe, quanto em suas bandeiras de luta.
A partir dessas duas definições é possível afirmar que poder popular é a imposição da vontade das classes oprimidas, por meio da força social que elas conseguem mobilizar, a partir de sua capacidade de realização, aplicando-a na luta de classes, e superando as forças mobilizadas pelas classes dominantes.
Um projeto de poder popular tem por espaço privilegiado os movimentos sociais que proporcionam o espaço orgânico em que a capacidade de realização das classes oprimidas pode constituir-se em força social a ser mobilizada e aplicada no conflito de classes. Um caminho possível para que se possa chegar ao poder popular.
20 Teses sobre o Poder Popular
Toda a reflexão realizada anteriormente em relação aos processos de burocratização e o possível programa antiburocrático está vinculada intimamente à discussão sobre poder popular. Pois acredito que o poder popular só pode existir a partir de uma prática antiburocrática dos movimentos sociais e, portanto, para sua construção, será necessário aplicar, na prática, tanto para a criação, quanto para o trabalho com movimentos já existentes, os contramecanismos e contraprocessos explicitados.
Relacionando o poder popular com o programa antiburocrático proposto, a partir de alguns teóricos contemporâneos que desenvolveram teoria sobre o poder popular (Mauro, 2006; Mechoso, 2009; Lopez, 2001; FAU-FAG, 2009; FAU-FAG, 2010; Samis, 2010; Corrêa, 2010), é possível elaborar algumas teses, que contribuem para sua compreensão, a partir da noção que defendo, e também para o entendimento de sua relação com o programa antiburocrático proposto.
1. Defender o poder popular implica reconhecer que a sociedade presente é uma sociedade de classes, separada entre classes dominantes e classes oprimidas, cujas relações de dominação forjam-se em seu seio e apontam para um processo de luta de classes permanente, envolvendo questões econômicas, políticas e culturais-ideológicas.
2. Essa sociedade, conforme vem demonstrando a história, não caminha para a autodestruição e, portanto, é a vontade das classes oprimidas, organizadas nos movimentos sociais, que pode oferecer uma possibilidade de mudança na correlação de forças da atual sociedade.
3. Os movimentos sociais são espaços privilegiados de organização das classes oprimidas e, portanto, os organismos a partir dos quais essas classes poderão acumular força social e aplicá-la no conflito de classes, visando superar a força das classes dominantes.
4. Construir o poder popular implica, assim, desde já, organizar novos movimentos sociais e integrar movimentos já existentes, defendendo uma posição de fortalecimento permanente. E ele só poderá surgir e realizar-se com e pelo povo, enquanto classe.
5. Ainda que o poder popular seja um projeto de longo prazo (quando a força das classes oprimidas supera as forças das classes dominantes), ele começa a desenvolver-se e se fortalece a partir das experiências de mobilização e luta de curto prazo, forjadas sobre necessidades imediatas da população. Portanto, construir o poder popular exige uma atuação imediata e não de espera em relação a outros fatores que possam trazê-lo sem maiores esforços, pois é na sociedade presente que se desenvolve o embrião da sociedade futura.
6. O poder popular se fortalece na medida em que os movimentos sociais utilizam a democracia direta como método decisório, ao tomarem decisões de maneira igualitária e coletiva, fortalecendo a construção pela base, ou seja, “de baixo para cima” ou “da periferia para o centro”, e acabando com as relações de dominação que existem dentro deles. Neste sentido, a construção do poder popular envolve um processo de democratização dos organismos de base, “um exercício da democracia solidária, de participação direta e de construção da consciência de classe”, que só tem sentido a partir de uma associação voluntária. Processo que se fortalece pelo exercício permanente da autogestão e do federalismo, em “organismos amplamente democráticos e participativos”, apropriando-se da política que privilegia a esfera do Estado.
7. O fortalecimento do poder popular se dá a partir de iniciativas que têm por objetivo dar protagonismo aos movimentos sociais, atuando pela ação direta – e, portanto, fora das instâncias da democracia representativa –, e com autonomia em relação a instrumentos, instituições e/ou indivíduos, sendo capaz de autodeterminação e de auto-sustentação.
8. Democracia direta, ação direta e autonomia são mecanismos que, nos movimentos sociais, criam horizontalidade, conhecimento e envolvimento com os processos de luta, e, por isso, fortalecem o poder popular.
9. Esses mecanismos permitem exercitar, no seio das lutas dos movimentos sociais, novas práticas, valores e sentimentos, que estimulam uma cultura popular que contribui com a consciência de classe – em um processo que surge a partir da luta das próprias classes oprimidas, de sua “‘práxis’ inovadora, lutas/reflexão, prática/consciência, erros/acertos” – e com diversas outras práticas diferentes daquelas estimuladas pela atual sociedade.
10. O poder popular constrói-se a partir de uma noção de dupla função dos movimentos sociais: as lutas pelas questões de curto prazo e a perspectiva de longo prazo e, portanto, envolve objetivos de curto e longo prazo. Assim, o poder popular cresce à medida que os movimentos sociais envolvem-se nas lutas imediatas e, superando a noção de curto prazo, são capazes de aliar-se com outros, forjando as bases de uma ampla associação das classes oprimidas, atuando conscientemente em proveito próprio e buscando o socialismo.
11. As conquistas de curto prazo, que se poderiam chamar reformas, só contribuem com o poder popular na medida em que são conquistadas pelos movimentos sociais organizados pela base e, portanto, possuem função pedagógica ao estimular o conjunto da militância “pensar, propor e fazer o seu próprio destino e os destinos da comunidade, da região e de um país, respeitando-se as diferenças culturais e as individualidades”.
12. Assim, o socialismo só pode ser uma ideologia que surge dos movimentos sociais na construção do poder popular, envolvendo “lutas, mobilizações de amplos setores populares em resistência. Não é ciência, mas ideologia, e, portanto, envolve aspirações, valores e esperanças de classes, coletivos e povos oprimidos.” Assim, entende-se que “a ideologia não vem de fora, se produz no próprio seio das práticas, nas idéias e nos comportamentos que o povo vai realizando através de seus diversos enfrentamentos.” Esse socialismo só pode ser buscado a partir de uma perspectiva revolucionária, que necessariamente envolve a defesa do poder popular.
13. O poder popular como socialismo realiza-se plenamente “em uma nova sociedade de igualdade e liberdade, ou seja, uma sociedade em que o domínio não exista e as associações e organizações sejam voluntárias, não-alienadas e que não haja mais exploração e dominação; uma sociedade em que haja liberdade individual, mas que esta se dê dentro da liberdade coletiva.” E, dessa forma, constitui-se como uma democracia popular, “um permanente exercício de construção de hegemonia da classe trabalhadora, o mais horizontal possível”.
14. Construir o poder popular implica uma reflexão crítica acerca dos meios a serem utilizados, pois eles devem necessariamente apontar para os fins escolhidos, ou seja, deve haver uma coerência entre meios e fins. Isso implica um trabalho coerente de escolha de objetivos (curto e longo prazo), de estratégias e táticas.
15. Meios equivocados levam a fins equivocados. Portanto, há “meios, orientações, uso de instrumentos, utilização de instituições, forma de organização de atividades sociais, que devem ser dispensados”. Utilizar a lógica do atual sistema significa ser incorporado por ele, já que os dispositivos atuais do poder vigente “absorvem, exprimem, fazem funcional o que entra em sua circulação”. O conjunto institucional atual está “cheio de produções constantes a favor de manter e reproduzir um tipo de ordem social. De manter a dominação. Não parece ser uma boa estratégia escolher as vias, os lugares e os trajetos que têm dono e o poder de imprimir seu selo ao que ali entra.”
16. “‘Usar todos os meios’ pode ser uma maneira efetiva de assegurar que não possa emergir nenhuma estratégia antagônica, portadora dos elementos de desestruturação do sistema vigente”. Assim, o caminho é “não entrar no núcleo duro do sistema com vistas à mudança” e, portanto, a atuação por meio dos mecanismos institucionais do Estado deve ser descartada.
17. Meios que contribuem para o desenvolvimento do poder popular devem necessariamente ser coletivos. Devem “criar novas formas de relações humanas, novas relações societárias, novas relações políticas”, cotidianamente, com foco em “como se orienta e concretiza o trabalho político e social permanente”. No seio das classes oprimidas são produzidas diariamente novas relações sociais, implicando mudanças culturais significativas, relações essas que devem contribuir com os meios de se construir o poder popular e condizer com seus objetivos. Em suma, “se queremos liberdade, o nosso fazer tem que ser libertário”.
18. É, portanto, no seio das lutas que se constrói o poder popular e, por conseqüência “outro sujeito histórico, tanto no pessoal como coletivo”. Um sujeito que “não é determinado a priori, mas historicamente”, no seio das lutas dos movimentos sociais.
19. A construção do poder popular implica a necessidade de uma potencialização da força social dos indivíduos e dos movimentos sociais que nela trabalham. Envolve, portanto o “bom aproveitamento de seus recursos (materiais, humanos e organizativos), estruturas e processos”.
20. O estabelecimento de objetivos de curto e longo prazo, a coerência entre meios e fins e a potencialização da força social apontam para a eficiência dos movimentos sociais na construção do poder popular, por meio do bom aproveitamento de seus recursos, das estruturas e dos processos adequados.
Bibliografia completa ao final do 5º artigo da série.
Pode ler aqui os outros artigos desta série:
1) Os movimentos sociais na história
2) Um método de análise para os movimentos sociais
3) Mecanismos e processos de burocratização
5) Uma discussão entre teoria e prática