Na reação contra as maneiras de aparecimento mais cotidianas e triviais do conservadorismo e da repressão nas periferias tem-se uma base do estabelecimento de formas de luta. Mas nenhuma atuação pode ser idealizada a ponto de imaginar de antemão que discurso e que prática podem ser capazes de mobilizar e a radicalidade não tem lugar sem mediações e construção coletiva. Por Carol Catini

Por dentro e por fora é uma série de artigos de debate sobre as lutas e os movimentos sociais, da iniciativa conjunta de Paulo Arantes e do coletivo Passa Palavra. Série aberta a um amplo leque de colaboradores individuais, convidados ou espontâneos, mais ou menos empenhados (ou ex-empenhados) nas lutas concretas, que ajude a aprofundar diagnósticos sobre a sociedade que vivemos, a cruzar experiências, a abrir caminhos – e cujos critérios seletivos serão apenas a relevância e a qualidade dos textos propostos.

Todos aqueles que ousaram combater as forças sociais e políticas do capitalismo se enredaram em inúmeras contradições no desenvolvimento de suas formas de luta. Vimos como partidos, sindicatos, movimentos, ou ainda processos que apareceram na forma de levantes e insurreições, foram extintos e duramente esmagados ou foram aos poucos perdendo forças, se amoldando e arrefecendo seu caráter combativo, passando a atuar de maneira contida – e de tanta contenção que pode exercer sobre a indignação, lhe é concedido o espaço de coexistir entre seus inimigos: sejam eles o Estado, a classe de gestores do capitalismo ou os donos econômicos e políticos do poder.

É certo que tais tentativas provocam mudanças na conjuntura, com maior ou menor impacto na realidade e no movimento da própria história, e que esta, graças a tais embates, não pode ser contada apenas como fluxo contínuo de desenvolvimento do Capital e de suas inúmeras formas de capturar o progresso histórico a serviço da riqueza. É certo, ainda, que há os que resistiram e resistem fortemente, mantendo-se alerta para as possíveis guinadas de processo que gerem acúmulo de forças para a empreitada necessária e contínua de oposição a uma forma de sociabilidade dada e fortalecida de maneira sempre renovada.

Mas há momentos em que parece mais difícil se filiar a essa tradição por vários motivos, dentre os quais a necessidade de se voltar para o imediatismo da vida, necessariamente individualista e fugaz. E mesmo no campo das organizações de esquerda, esse imediatismo impera quando se passa a lutar apenas para não desaparecer. Tal dificuldade fragiliza nossa capacidade de analisar a conjuntura, saber como é que chegamos onde chegamos, criar novas formas de vivenciar experiências combativas e intervir qualitativamente na realidade, sabendo mais precisamente, quanto for possível, onde e como empregar nossas forças e nossas vidas.

Parece que vivemos tempos dessa dificuldade e, com isso, tais reflexões são sabidamente precárias, mas pretendem contribuir para o debate que ocorre por dentro e por fora dos movimentos e organizações, acreditando que é necessário reformular a crítica e a prática militante, e que isso não pode ser feito sem um esforço conjunto.

Inverter os sentidos dos consensos de classe

Existem dois importantes consensos produzidos por determinados campos da esquerda, um deles se refere ao conservadorismo crescente da sociedade, e o outro, às análises de conjuntura acerca da necessidade e potencialidade de adentrar as periferias das grandes cidades com perspectiva de construção de mobilização popular. No entanto, sabemos: tanto um como outro podem ser alheios às experiências cotidianas das classes populares, gerando grande espanto catastrófico ante a realidade que vivemos, bloqueando a ação que pode advir da crítica da sociedade e causando mais dificuldade do que meios para orientar uma prática política.

Sobre o consenso acerca do conservadorismo é de se ressaltar que ganhou força com as campanhas eleitorais. No entanto, movimentos e organizações de esquerda se engajaram neste processo mesmo sem conseguir colocar em pauta suas reivindicações. Com isso, muitos de seus esforços anteriores, como as campanhas contra a repressão e criminalização dos movimentos, contra a violência policial nas favelas, etc., dentre outras expressões do autoritarismo crescente na sociedade e no Estado, foram varridos do campo da oposição. De outro lado, o consenso em torno da periferia como o local de recriação da identidade de classe pôde ser abstratamente produzido pela estratégia de crescimento de organizações e movimentos, ou por teóricos que enxergam neste território uma massa amorfa e sem identidade.

Invertendo o sentido dos consensos produzidos externamente à classe, e atrelando as maneiras de manifestação do conservadorismo à vida e às tentativas de organizar a luta na periferia, o primeiro artigo desta série, Critérios de Periferia, insere importantes elementos no debate. Os aprendizados com determinada forma de organizar as lutas, com o acúmulo gerado no interior da experiência do movimento popular, com os elementos que delinearam suas trajetórias e que constituem a experiência formativa de militantes orgânicos ou não aos movimentos rurais ou urbanos estão, portanto, na ordem do dia. E põem em questão as formas de mobilização e de organização que se tornaram hegemônicas sem, no entanto, aderir à dinâmica do território, conduzindo à estagnação da capacidade combativa dos movimentos.

Quando a autora no referido texto diz que “o que foi radical ontem se encontra paralisado hoje”, que depois de duas décadas de neoliberalismo os movimentos vivem seu último fôlego, “sufocados por fora e deformados por dentro”, ou ainda que os métodos forjados em contexto e momento histórico distintos entram em confronto com a demanda social e com as maneiras de sobrevivência nas periferias, tendendo ao formalismo e ao autoritarismo; não nos fala de uma tragédia que nos conduz à paralisia. Pelo contrário, mostra que “a tarefa de levar o modelo de organização dos movimentos sociais para a periferia teve esse resultado imprevisível: nossa organização veio trazer respostas para a periferia, mas é a favela que está colocando nossos movimentos em questão – para quem tenha disposição de perceber”. O que nos diz com isso é que “nossas oportunidades atuais” estão na reconstrução da forma da prática militante e de um aprendizado sobre o que seja o tão ansiado poder popular no contexto periférico.

Formas de luta periférica

Na reação contra as maneiras de aparecimento mais cotidianas e triviais do conservadorismo e da repressão nas periferias tem-se uma base do estabelecimento de formas de luta. A criação de lutas por direitos básicos pode ser uma estratégia para a vivência e resistência coletiva, pois é na ação e não na formulação externa de motes para mobilizar que temos a construção de uma forma própria de se organizar, bem como a experiência do que seja uma vida militante. A truculência de burocratas, quando procurados a dar explicações sobre as políticas públicas endereçadas aos bairros periféricos, evidencia para todos de que lado estão os funcionários do Estado. Quando, numa pequena luta tocada [animada] por mulheres carregando seus pequenos filhos, pela retomada do direito à creche, somos recebidos pela polícia e a imprensa é impedida de entrar para documentar os fatos numa diretoria de ensino, se tem a consciência de que não há democracia que sustente a manifestação da indignação popular. Quando a polícia domina uma marcha ou uma paralisação de via, somos estimulados a dar novas respostas, surpreendendo o inimigo. Também é somente na experiência de luta que se cria a solidariedade necessária entre comunidades que estão na mira dos despejos violentos, que o Estado não pára de agenciar, em conjunto com empreiteiras, com os políticos locais e mesmo com crime organizado. Em reação aos processos autoritários e nos embates diários que travamos é que vai se gestando uma experiência de combate, que dá forma a uma organização.

Mas os desafios são imensos. O discurso dominante, divulgado entre mídias, serviços públicos e ONGs, que formam milhares de jovens nas quebradas, é internalizado a favor da diversidade, do multiculturalismo ou da preservação ambiental sem nenhuma menção à preservação da dignidade das famílias que vivem em cima de córregos, beiras de represa. O voraz ímpeto de progresso das cidades é mais ou menos naturalizado, conjuntamente com a incapacidade de conter a força dos poderes que agem contrariamente aos modos de sobrevivência adotados desde o início da ocupação de terrenos e criação de comunidades. Os desafios são maiores ainda quando se depara com poderes locais fortemente construídos e articulados de contenção e repressão, com legitimidade que vem da violência e do dinheiro que gira entre “partidos” (políticos ou não). Desse modo nenhuma atuação pode ser idealizada a ponto de imaginar de antemão que discurso e que prática podem ser capazes de mobilizar e a radicalidade não tem lugar sem mediações e construção coletiva.

Neste sentido, é preciso saber e se inserir na história das lutas, pois nenhum asfalto, nenhuma escola e nenhum posto de saúde, e nenhuma outra conquista para a melhoria das condições de vida foi dado de presente. Também levar em conta a cultura local, para não se querer enfiar goela abaixo fórmulas e rituais pré-concebidos, ignorando, por exemplo, os elementos subversivos presentes em importantes manifestações da cultura popular periférica.

E, sobretudo, é necessário desaprender a ter uma estrutura fixa, que especializa os militantes em determinadas tarefas, burocratizando-as e incapacitando-as de responder a mudanças na conjuntura, algumas das quais produzidas pela própria existência da organização. Nem criar estruturas maiores que as próprias lutas, pois, se já se constatou os erros de caminhar para uma forma dependente do Estado, tanto do ponto de vista da contestação e negociação, quanto da sustentação para a continuidade da atividade, é preciso sempre ter em vista a manutenção de atividades permanentes e autônomas.

O esforço conjunto mostra que é necessária certa plasticidade de modos de funcionamento e continuidade das lutas. Um método pré-definido, na forma de cartilha e passos bem arquitetados antes de se desenvolver uma relação com o território pode não ser instrumento factível, mesmo porque, numa mesma região, cada quebrada é uma quebrada e tem sua sociabilidade e poderes locais próprios.

A experiência das formas de luta nos prepara para a vida que sonhamos juntos. Se a forma de vida no capitalismo é capaz de abarcar e incluir em seu sistema organizações que antes foram combativas, precisamos adquirir uma enorme capacidade de renovação. Isso não pode ser feito por dirigentes cujo objetivo último é a auto-preservação enquanto tal, nem por organizações burocráticas, que colocam à venda seus princípios, em troca de um suposto aumento de seu poder (de barganha, ou de respeito no interior da “esquerda”). Enfim, precisamos ter a coragem de enfrentar a precariedade de inventar novas formas enquanto se faz as pequenas lutas que se pode fazer. Neste momento, toda tentativa vale apenas por ser mais uma tentativa de combater as forças sociais e políticas do capitalismo e revigorar o sentido combativo da luta de classe. Se não vingarem, continuam valendo pela tentativa e pelo aprendizado, servindo de alimento a outras tantas que virão.

2 COMENTÁRIOS

  1. Carol
    Parabéns pelo texto – é sempre pertinente nos lembrarmos da necessidade da autonomia e da criatividade – no entanto podemos começar a pensar de maneira mais prática, não acha? Acredito que tenha faltado uma dose de exemplos históricos no seu texto (bem pode ser que este não fosse o objetivo, também…), mas não tenho dúvida que vamos nos esforçar nesta coluna para superar esse problema e, cada vez mais, pôr o pé no difícil chão.

    Em solidariedade :)
    Oliver

  2. Oliver,

    Agradeço as observações. No entanto, minhas reflexões estão baseadas na prática política na periferia na zona sul de São Paulo, e não apenas de elaborações teóricas sobre princípios organizativos. Desse modo, não era o objetivo mencionar exemplos históricos ou mesmo de outras organizações de nosso tempo, mas sim de como consideramos os aprendizados que tiramos de tais experiências para orientar nossa prática política. Com isso, embora seja uma organização bastante incipiente, e que os exemplos que uso sejam gerais, eles são exemplos práticos das formas de luta, e de alguns dos desafios da experiência organizativa que temos vivido na tentativa de estabelecer um vínculo orgânico com o território, o que imagino que possa ser uma contribuição para tal coluna.

    Enfim, concordo que temos que por o pé no difícil chão e considerar as reflexões formuladas a partir dos diferentes lugares que pisam os militantes. É uma maneira de compartilhar interpretações e situar nossa prática e reflexão na conjuntura.

    Saudações,
    Carol

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