Por José Nuno Matos

 

Introdução

A relação entre trabalho e capital foi, desde sempre, marcada por alguma indeterminação: os trabalhadores nem sempre sabiam o que podiam esperar da empresa e esta, por sua vez, nem sempre sabia o que podia esperar dos trabalhadores. O Fordismo, tanto na sua dimensão económica, como também social e política, representou a tentativa de abolição dessa incerteza, presente em ambos os lados da contenda. De um lado, as empresas, através da organização científica do trabalho, garantiram a subordinação real do trabalhador à máquina produtiva e, por conseguinte, uma estimativa precisa da sua performance; e, em troca, mercê de um antagonismo manifesto, os operários vieram a obter um conjunto de direitos sociais, constitucionalmente consagrados.

No entanto, mais do que isso, o regime fordista constituiu o reconhecimento da necessidade de se encarar o trabalhador como parte da obra da empresa, tomando a sua vida como objecto de produção. Deste ponto de vista, e embora surja apenas em meados da década de 60, a ideia contida no conceito de «capital humano» encontra-se longe de poder ser enquadrada numa ordem de ideias pós-industrial ou pós-moderna.

Os desafios representados pela evolução do sistema de produção, crescentemente dependente de elevados níveis de cognição humana, exigem novos métodos de abolição da incerteza acima mencionada. O objectivo deste artigo é, a partir da análise de anúncios de emprego produzidos por empresas de trabalho temporário, compreender quais os critérios que devem orientar a autoprodução dos trabalhadores da nova economia.

A ideia de capital humano

Em meados da década de 60, Theodore Schultz e Gary Becker propõem o conceito de capital humano, procurando ilustrar uma associação cada vez mais directa entre “o investimento no homem” (Schultz, 1962: 2) e o crescimento económico. A formação profissional no emprego, a escolarização ou a saúde física e psicológica dos trabalhadores passam a ser analisados como factores de produtividade, confirmando, na sua visão, o anacronismo por trás da divisão entre capital e trabalho.

A atribuição de um cariz económico a algo que, até então, havia sido encarado como possuindo um valor intrínseco não se limita a exprimir um mero olhar sobre a sociedade. A definição do humano como uma forma de capital, do indivíduo como empresa e das suas capacidades como capital-competência (Foucault, 2004: 231) tem óbvias implicações sobre a maneira como o indivíduo se passa a ver a si mesmo e aos outros, algo que envolve não só a aquisição de determinadas qualidades, mas igualmente a orientação dos seus meios e fins.

Ao contrário do que acontecia com o operário industrial, o trabalhador de hoje é apresentado como detentor de um estatuto semelhante a uma empresa: «livre» de compromissos institucionais, fruto de um novo vínculo com a empresa propriamente dita, e dotado de um valor próprio que o distingue dos demais. Não se trata apenas de requisitos profissionais no puro sentido do termo, “já não é mais uma questão nem de ciência, nem de conhecimento, mas de inteligência, de imaginação e de saber que, no seu conjunto, constituem o «capital humano»” (Gorz, 2003a: 13). O seguinte excerto, retirado de uma declaração do director de recursos humanos da Daimler-Chrysler, é, neste sentido, esclarecedor:

“Os colaboradores da empresa fazem parte do seu capital […] A sua motivação, o seu savoir-faire, a sua flexibilidade, a sua capacidade de inovação e a sua atenção aos desejos da clientela constituem a matéria-prima dos serviços inovadores […] O seu trabalho deixa de ser medido em horas, mas de acordo com a base dos resultados realizados e a sua qualidade […] Eles são empreendedores autónomos” (apud Gorz, 2003b: 71).

Ao pressupor um empreendimento desenvolvido de forma autónoma, o trabalho passa a corresponder igualmente a um conjunto de operações que devem ter como objecto o próprio indivíduo.

Embora a distância entre vida e trabalho nunca tenha sido tão ténue, este processo deve ser encarado mais como parte de um processo evolutivo do que propriamente como um fenómeno inédito. Durante o período da modernidade, a relação entre o indivíduo e o trabalho industrial definida por Max Weber apontou justamente para um estilo de vida ascético, paliativo espiritual de um destino já traçado. Sem a mediação de uma entidade divina, o sistema económico continua a depender de uma reprodução socializante, de um novo espírito que, com base numa série de representações, surja como a “aceitável e até desejável ordem das coisas: a única ordem possível ou a melhor das ordens possíveis” (Boltanski, Chiapello, 2007: 10). Se no passado a intermediação era assumida por Deus, actualmente é no próprio indivíduo e na relação consigo próprio que encontramos o cumprimento de tal tarefa.

O novo capitalismo passa então a determinar-se por uma lógica não de dever, mas sim de expressão, ou seja, o trabalho, em todos os seus momentos, deve espelhar a própria pessoa. Ensaia-se assim a realização da pessoa no trabalho, algo que cumpre “não apenas a ampliação e extensão do conceito de capital para um conjunto de habilidades, capacidades e destrezas humanas – o «capital humano» – que passa a ser um objecto central na análise económica, mas também a criação de uma ética social composta por um conjunto de máximas que regulamentam a forma como as pessoas conduzem as suas vidas” (Ruiz, 2007: 27). Neste âmbito, o discurso assume um papel relevante, pois “é, em parte, através da adopção de vocabulários partilhados, teorias e argumentações que associações débeis e flexíveis podem ser estabelecidas entre agentes no tempo e no espaço” (Miller, Rose, 2009: 34-35). A produção destas associações, via a inter-relação de práticas discursivas e não discursivas, das questões realizadas no âmbito de uma entrevista de trabalho à mensagem de Natal proferida pelo director de departamento, serve a lógica que governa a actividade das empresas e que, não obstante o ritmo de celeridade histórica verificada nas últimas décadas, permanece a mesma.

(Continua aqui)

A Bibliografia virá no final desta série.

9 COMENTÁRIOS

  1. Acho muito interessante e pertinente a discussão que começa a ser feita com este artigo.
    Apenas uma curiosidade. Existia, ou existe ainda, uma revista aqui no Brasil cujo nome conseguiu sintetizar de forma brilhante essa noção de empreendedorismo individual, a “Você S.A.”. Mais direto, impossível!
    Abraços

  2. Gostei muito do artigo e, se houver continuação continuarei acompanhando, mas acho que tenho desacordo apenas com a diagnose da gênese do conceito de capital humano.

    Busquei isso acreditando que seria derivado da idéia de material humano, mas parece ter outra gênese paralela e está envolvida na discussão dos gestores sobre o que é educação, mas acredito anteceder já na tentativa de cálculo do valor da variável educação, já vista como treinamento, dentro dos grupos sociais. Que é o mesmo raciocínio da escola de Chicago.

    No entanto, isto é quase indiferente, pois aparentemente, não mostrou-se uma gênese que influenciava outros ramos de teorias e práticas a partir de uma origem comum por contágio, mas múltiplas gêneses deduzidas ou descobertas independentemente devido a um pressuposto comum de racionalidade tecnicista redutora do homem à condição de mera variável programável que segue seu curso em vários campos e aplicações que se modificam.

    No mais, dentro das cabeças dos gestores, segue-se essa mesma gênese apresentada no artigo, justamente, uma das que vingaram com maior influência.

  3. E assim José “veste a camisa” da empresa, sem tira-la até a hora de dormir. Vale a pena para os gerentes das empresas incentivar José a jogar o jogo em equipe, a fazer parte da “família”, criando uma relação mais próxima, com mais carinho e menos chicotada. Assim ele se sente não só responsável pelo bom funcionamento do todo, como passa a se dedicar cada vez mais por aquilo de forma individual, visando reconhecimento e crescimento tanto pessoal quanto profissional. Sentir esse crescimento é uma das coisas que mais mantém José sob controle dos seus chefes e gerentes, pois ele passa a ceder muito mais, reconstruindo-se para adequar-se ao perfil desejado pela empresa, obedecendo muito mais, em troca de mais estabilidade ou melhores cargos. E isso faz José se sentir bem melhor, pois abre-se a possibilidade de José aumentar sua qualidade de vida, comprar mais coisas para si, para sua mulher e para seus filhos, podendo talvez trocar de carro no fim do ano, quando chegar o décimo terceiro.

  4. A possibilidade de José trocar de carro no final do ano ou comprar outro é certa, pois, além do décimo terceiro, poderá contar também com a participação nos lucros! Vale a pena mesmo vestir a camisa da empresa.

  5. Só pra provocar um debate, alguém aí, saberia dizer, por exemplo, se esse papo de investimento no “capital humano”, não guardaria algumas relações com a dinâmica do capital hoje está cada vez mais preocupada, segundo alguns autores, com as capacidades intelectuais dos trabalhadores, tais como, atenção, cognição, criatividade… será?

  6. O problema é que José pode “virar suco” (filme de João Batista de Andrade). Digo isso porque, mesmo querendo vestir a camisa da empresa, há aqueles que não suportam a pressão de ter a sua vida tomada por completo, em todos os minutos, pela logica da produtividade. E piram! Pautar a lógica de produção pela idéia do capital humano é tirar do próprio capital o humano que o constitui enquanto tal. José passa a ser um sujeito sem tempo pra viver a sua própria vida, ou sem saber como é uma vida por fora do mundo do trabalho. E se a empresa não consegue acolhê-lo em todas as suas necessidades psico-sociais? E se a empresa também não conseguir tirar de José a vontade de ter essas necessidades? Onde é que José vai “recarregar as baterias” pra acordar no outro dia, se é que a insonia deixou que ele dormisse, e encarar mais um dia (provavelmente noite também) de trabalho? Esse papo de Capital Humano só me leva a perguntar se não estamos prestes a superar a fase de que o trabalhador vendia a sua própria força de trabalho e agora, pior, vai é ter que se comprar.

  7. O josé da ironia não tem nada a ver com o autor do artigo. Minhas desculpas a José Nuno Matos pelo lapso.

  8. Ouvi dizer que o tal Zé vai, pelo menos duas vezes no mês, ao psicanalista. E que este, juntamente com outros psi receitaram alguns remédios tarja preta para melhorar a vida dele. Desta forma o tempo dele pirar, como diz o dac, é adiado, embora numa análise geral só amplie o problema!
    Enfim, acho interessante como as discussões propostas por este site, e que expresam os problemas da revolução autogestionária, sempre retomam… e são os mesmos…

  9. Antes de mais, obrigado por todos os comentários.
    Existe de facto, uma ideia de «capital humano» antes do próprio conceito de «capital humano». Schultz e Becker, académicos próximos da universidade de Chicago, apenas vêm evidenciar algo que já era premente. Quando Henry Ford, nos EUA, e Alfredo da Silva, em Portugal, enviavam inspectores às casas dos operários (moradores dos bairros construídos pelas suas empresas), com vista a analisar a actividade sexual dos seus trabalhadores (ou, pelo menos, a dar ideia que podiam perceber, intimidando os inspeccionados), já haviam percebido a relação directa entre investimento no homem (neste caso, na sua saúde física) e nível de produtividade do mesmo. Tal estratégia, parte de um reportório empresarial de tipo paternalista, adquiria legitimidade, como é afirmado num dos comentários, à luz de uma ideia de família alargada, de uma comunidade em nome da qual o operário deve vestir a camisola.
    A complexidade do actual sistema produtivo, dependente da aplicação de factores como a imaginação, a reflexão, o conhecimento, veio mudar alguns pressupostos do jogo. Sem que, contudo, o cerne do mesmo se alterasse. Importa obrigar menos e induzir mais («Tu é que sabes…eu achava melhor»), menos disciplina e mais controlo, dotar o trabalhador de mais autonomia e, ao mesmo tempo, dar-lhe a escolher uma só via (de facto, são poucos os trabalhadores obrigados, a título de exemplo, a cumprir horas extraordinárias; porém, são muitos os que são aconselhados a fazê-lo…com todas as consequências que uma recusa possa implicar – avaliação de desempenho, cumprimento de objectivos, renovação contratual). Mantendo sempre a ideia de que a empresa constitui uma comunidade, com os seus rituais próprios (o clássico jantar de Natal da empresa).
    Finalmente, pautar a lógica de produção pela ideia do capital humano não é «tirar do próprio capital o humano que o constitui», mas sim o contrário: potencializá-lo ao máximo. Fazer com o trabalho vivo seja o mais vivo possível. O que faz com que esferas da vida até agora encaradas como privada, se sujeitem à lei do valor. É, justamente, esta maximização das potencialidades do trabalho vivo que faz com que ele, por vezes, entre em curto-circuito.

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