Por Passa Palavra
O estado de São Paulo caminha já para o seu décimo sexto ano de gestão do PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira, do antigo presidente Fernando Henrique Cardoso]. Um fardo demasiadamente pesado, mesmo que seja para uma população de reconhecido comportamento eleitoral conservador. Curiosamente, o estado mais moderno da federação transitou, praticamente sem intervalos, de um regime ditatorial escancarado para uma sucessiva troca de gestões tucanas [o tucano é o símbolo do PSDB], que se enchem de orgulho por terem cunhado um jeito próprio de governar.
Apesar de a maioria da população paulista, ao que parece, estar contente com tal situação, entre os movimentos sindicais e populares – pelo menos entre os mais combativos – é mais que sabido do que se trata esse jeitão tucano de governar: nenhuma disposição ao diálogo e reiterado uso de força bruta para contenção das questões sociais.
E assim tem sido a dinastia do PSDB em São Paulo, ano a ano, uma série de incontáveis eventos de retaliação política pesada sobre os movimentos sociais, a não admissão de quaisquer tipos de mobilização coletiva, que não tem sequer seu caráter político reconhecido, sendo tratada invariavelmente enquanto tema policial. Nesse ínterim, não foram raros os casos em que as perseguições se mostraram nua e cruamente.
Porém, o fato de nos últimos anos os movimentos sociais, sindicais e estudantis estarem cada vez mais acuados, figurando como presas fáceis para os poderosos paulistas, não pode ser explicado tão-somente pela truculência mais do que esperada das entidades públicas e privadas que controlam o estado. As experiências municipais e federal revelam que o mesmo provavelmente aconteceria se, ao invés de PSDB, estivéssemos submetidos a um estilo de esquerda, petista, de governar. Que o digam os camelôs [vendedores ambulantes] e perueiros [condutores e proprietários de mini-autocarros não reconhecidos legalmente] que tanto apanharam durante a gestão da prefeita Marta Suplicy, ou, mais recentemente, os controladores de vôo presos e demitidos e os moradores dos morros cariocas e de algumas cidades do interior de São Paulo que já naturalizaram a presença do exército e da guarda nacional nas ruas. Ao que tudo indica, o aspecto maior deste problema reside na própria incapacidade dos movimentos e organizações de resistência para conseguirem forjar uma solidariedade mais orgânica e consistente. Ou, pelo menos, é esta a dimensão do problema sobre a qual nos compete agora refletir: a nossa estratégia, e não a deles.
Cindidos por categorias profissionais, regiões, esferas administrativas, faixas salariais, bairrismos, além das inúmeras siglas ideológicas que hoje compõem nossa esquerda, os trabalhadores e as camadas populares de uma maneira geral não têm conseguido se unir em uma oposição comum a um inimigo que lhes é comum. Os intermináveis anos de supremacia do PSDB, com o seu incansável projeto de aniquilamento dos movimentos populares, só são suficientemente eficazes na medida em que há o abandono, ou o esfacelamento, de um projeto antagônico capaz de traçar caminhos a médio ou longo prazo e de se organizar em torno de uma necessidade prática mais do que urgente: defender-se dos ataques, das punições, das retaliações, das perseguições que recaem sobre as organizações sociais, sindicais ou estudantis, em especial sobre os membros mais ativos e personalidades mais destacadas das entidades de luta.
É inadmissível, porque traz conseqüências irreparáveis para o prosseguimento das lutas, que companheiros engajados sejam abatidos – um por um – sem que haja uma resposta conjunta e à altura por parte de todas as entidades e movimentos que se reclamem comprometidos minimamente com a justiça social; quaisquer que sejam a categoria e a filiação ideológica destas pessoas criteriosamente escolhidas. Enquanto os gestos solidários se resumirem a moções de apoio e ações isoladas, assistiremos aos tucanos, ou qualquer outra ave da vez, e às suas tropas de choque marcharem por sobre os territórios autônomos e estraçalharem todas as liberdades políticas, até que não reste mais nada, nenhum movimento, nenhum combatente, nenhuma opinião crítica, nenhuma voz dissonante.
Seria impossível listarmos aqui todas as atitudes claramente repressoras levadas a cabo pelo governo do estado nos últimos anos contra as organizações de classe; embora seja este um esforço que precisa ser feito rapidamente, antes que a memória das lutas escoe de vez pelo ralo da história. Lembro apenas de alguns casos mais recentes que, pese terem causado muita indignação entre as pessoas mais diretamente envolvidas na ocasião, não ganharam a repercussão que deveriam ter tido e acabaram contribuindo para a desmoralização interna e externa dos movimentos sociais aqui em São Paulo.
Em maio de 2000, os professores do ensino básico da rede pública paulista empreenderam uma greve duríssima contra o governo estadual. Nessa ocasião, a ala mais radical da categoria manteve um acampamento no entorno da Secretaria Estadual de Educação, o que era tido como um desaforo pessoal pela excêntrica e presunçosa figura do então governador Mário Covas e pelas elites paulistas. Desta grande mobilização, que sacudiu o estado por mais de 40 dias, resultou a demissão sumária de 4 professores militantes e segue até hoje o indiciamento criminal de outros 35, que no decorrer do processo simplesmente testemunharam a favor de seus colegas grevistas.
A última mobilização dos metroviários [funcionários do metro] de São Paulo, em 2007, também não passou em branco para as autoridades públicas. O Metrô, num claro gesto de retaliação política, resolveu demitir [despedir] 61 empregados depois do julgamento do dissídio coletivo, que considerou abusiva a greve ocorrida nos dias 2 e 3 de agosto. Cabe lembrar que 4 dirigentes sindicais da categoria já haviam sido dispensados anteriormente, em represália à paralisação de poucas horas ocorrida em abril daquele ano. Mesmo recorrendo a todos os recursos possíveis, até hoje nem todas as readmissões foram obtidas.
No fim do ano passado, a reitoria da Universidade de São Paulo anunciou a demissão por justa causa do funcionário Claudionor Brandão, membro ativo do sindicato dos trabalhadores daquela instituição. Ele foi acusado de ter cometido faltas graves, como, por exemplo, ter participado de piquetes e paralisações em 2005 e 2006 e encampado a luta dos trabalhadores terceirizados, o que aos olhos dos administradores da universidade estaria fora de sua alçada legal.
No contexto do movimento estudantil, exemplos de perseguições, expulsões e mesmo de repressão policial nos últimos anos não faltam. Em 2005, 7 alunos da Unesp de Franca foram expulsos da instituição por terem feito um protesto um tanto extravagante diante do reitor. Nesta mesma gestão, mais 4 discentes da unidade de Araraquara foram banidos em decorrência de um ato político e cultural que incluiu a pintura de alguns caixas eletrônicos. Em 2007, quando estourou a onda de ocupações estudantis por todo o país, enquanto os estudantes da USP negociavam a saída pacífica de sua ocupação, este campus da Unesp teve suas dependências invadidas pela tropa de choque, que, na calada da noite, atendeu aos apelos da diretora da Faculdade e levou todos os ocupantes presos. De maneira ainda mais covarde, o uso de força militar no meio universitário também ocorreu neste mesmo ano na Fundação Santo André, onde os alunos criticavam o abusivo aumento das mensalidades.
Nem me arrisco a relacionar outras situações parecidas que envolvam ações do Movimento dos Sem Terra, do Movimento dos Sem Teto e de moradores de bairros pobres, pois são inúmeras. Nestes casos, a medida da violência das forças repressivas do Estado, morbidamente, deve incluir a contagem de mortos, torturados e desaparecidos. Prática que, por enquanto, não voltou a ser admitida quando se está a falar de movimentos estudantis.
Findas as mobilizações, são sempre os seus protagonistas a serem taxados de violentos, mesquinhos e defensores de regalias próprias, que agiriam por puro interesse pessoal, à margem de um suposto interesse geral. Esta caracterização negativa, somada às punições e demissões que em regra se seguem a estes movimentos, tem levado ao perene esgarçamento das formas de luta. Nestes assuntos, há sempre uma unidade inabalável – tal como nas tropas de choque – entre governos, magistrados, mídia e outros interesses privados; unidade pouco praticada entre os de baixo.
Vista desta maneira, a batalha campal entre funcionários, professores e policiais, em plena cidade universitária, foi somente a cereja do bolo, ou seja, um episódio que veio para demonstrar até que ponto há, por parte das autoridades políticas e econômicas do estado, uma certeza quanto à fragilidade e ao desgaste em que se encontram os movimentos sociais, sindicais e estudantis. Noutra correlação de forças, em que houvesse uma sólida articulação entre as entidades, direções e organizações de base, com certeza, optar-se-ia por uma solução mais diplomática, como o foi, por exemplo, há dois anos nesta mesma instituição. Mas não! Procedeu-se ao exercício mais explícito de repressão por haver total confiança no que se estava fazendo. Calculava-se que tal medida teria o apoio não só da população em geral, que é cotidianamente submetida às lavagens cerebrais da grande mídia [órgãos de comunicação social], mas, sobretudo, da própria comunidade universitária – o que foi apavorantemente confirmado!
A ação violenta da tropa de choque terá conseqüências muito mais nefastas para a continuidade das lutas sociais se conseguir fazer dispersar não só aqueles ativistas que, protegendo-se das bombas e balas de borracha que choviam no dia 09 de junho, espalhavam-se pelo campus universitário, mas também para as forças populares que devem agora se concentrar para travarem o enfrentamento político que a situação tem imposto. Por já serem numericamente inferiores, os coletivos e pessoas mais audazes que hoje são capazes de se indignar com os vários aspectos da opressão social não podem se manter isolados, sem se reconhecer na luta do outro; sob o risco de, nesta etapa do conflito, sofrerem uma verdadeira surra de classes.
Excelente texto.
Excelente texto. No ambito das reformas educacionais, 2000 foi uma derrota seríssima. Tanto mais cruel quanto as próprias alas mais radicalizadas tenham abandonado os exonerados e processados, sequer fazendo a memória de suas lutas.
No contexto é importante ressaltar que, com o decorrer do tempo, a direita têm conseguido criar o imaginário de que a esquerda é inerentemente autoritária, ditatorial o que reforça o discurso deles contra as lutas sociais.
Nesse processo, as lutas devem ser pensadas de uma melhor forma estratégica. Levantar bandeiras sem o devido preparo e que tendem a ser explicitamente antipopulares, como é se posicionar contra a UNIVESP ou demonstra incapacidade, masoquismo ou denuncia algo mais. Principalmente quando a bandeira contra a UNIVESP não vem acompanhada de indicadores alternativos, como poderia ser a luta para que a UNIVERSIDADE PÚBLICA SE DESTINASSE SOMENTE À ALUNOS DA ESCOLA PÚBLICA. No autal movimento na USP, enquanto o governo encontra inúmeros indicativos para desqualificar o movimento ante a população, não se encontra uma única bandeira que contenha um indicativo popular para a sociedade. Um exemplo seria lutar para que o colégio de Aplicação da USP se destinasse somente aos trabalhadores carentes da USP, por critério socio-econômico, de forma que quem ganha 8 mil de salário por mês pagasse escola para seus filhos. Enfim, o movimento peca por sua incapacidade de levantar bandeiras de classe e criar oposição ricos/pobres porque consegue, incrivelmente, angariar antipatias dos ricos e antipatias dos pobres.
A mesma posição acéfala eu vejo no meio do professorado público onde os lutadores se enleiam nas formas de luta da burocracia sindical que consistem no simples fechamento das escolas, prejudicando pais e alunos, para realizar desfiles sindicais que reforçam o poder dessa burocracia e o poder do legislativo. Conseguem ganhar a antipatia tanto do governo quanto da comunidade escolar.
Estamos vivendo um momento em que as tecnocracias petistas e peessedebistas implantam reformas que possuem nuances mas que são do mesmo porte. Ambas as tecnocracias têm agido de forma truculenta com os setores autonômos que lutam de forma mais ativa. E ambas as tecnocracias desfrutam do apoio da população. Tanto mais forte quanto a população se interesse somente por mais ou menos consumo. Nesse caso, as ações devem ser melhor pensadas estrategicamente e quanto mais lutas isoladas surgirem, ou cujo radicalismo as precipitem no isolamente, tanto mais fácil poderão as tecnocracias eliminar os setores mais combatidos da classe.
Texto muito interessante, como muitos outros. Por isso vou recomendando o site a outros conhecidos.
Na verdade, eles, os poderosos, não estão errados. Eles estão apenas cumprindo o papel deles, e isso já era de se esperar. Vamos nos espantar com o quê?
Errados estamos nós, dos movimentos, que não cumprimos nosso papel e permitimos que eles façam isso.
Para além das fragmentações que são impostas pela tecnocracia aos trabalhadores – de locais de trabalho, horários, contratos, salarios, culturais, genero, étnicas, etc, que já dividem os trabalhadores, ainda tem as malditas fragmentações que a esquerda coloca. Uma delas é o corporativismo dos sindicatos: tem sindicato de professor, de funcionário, de estudante, de apertador da rebimboca da parafuseta, de auxiliar de administração escolar, de garçom de hotel, etc. Um monte de divisões sindicais dentro de mesmos ramos economicos, isso já divide as mobilizações. Além dessa, tem a fragmentação colocada pela disputa de partidos e grupelhos pelo controle dos movimentos, que leva a sectarismos e dispersa os movimentos. Eles parecem dar mais importancia a brigar entre si do que contra o sistema. Na ditadura, dizia-se que esquerda só é solidária na cadeia.
A isso some-se o que venho visto nas discussões deste jornal, ao meu ver a melhor sacada: a ausência de um projeto autonomo, o que acaba dando numa esquerda reativa, que fica na defensiva apenas reagindo aos ataques do poder.
E por não ter projeto, não tem inserção e atividade nas unidades de base, o que faz com que não tenha a adesão da maioria, que se encontra passiva.
Ou seja, concordo plenamente com o texto. Não é hora de quixotismos e ações precipitadas de grupelhos ultraradicais, mas sim hora de um longo trabalho de base e mobilização a partir de baixo, construindo algo. Mas será que as diversas “Seitas dos Revolucionários dos Últimos Dias” vão querer isso? Ou vão se jogar de braços abertos para a repressão, sem apoio das bases?
“As experiências municipais e federal revelam que o mesmo provavelmente aconteceria se, ao invés de PSDB, estivéssemos submetidos a um estilo de esquerda, petista, de governar.” – concordo plenamente. O PT não é menos fascista que o PSDB. Basta ver as notícias relativas ao blog da Petrobrás. Aquilo é gangsterismo, que está sendo feito. O PT tem práticas de máfia – basta ver o caso Celso Daniel, ou a história das oposições metalúrgicas, ou os espancamentos, intimidações e mortes ocorridas em eleições de sindicatos. Ou o governo da Ana Júlia, que desceu o pau nos estudantes. Esse é o jeito de governar petista.
Não podemos deixar de mencionar o massacre que ocorreu em 2006 depois dos ataques do PCC:
Em maio de 2006, como reação aos ataques do PCC iniciados dia 12, as polícias mataram um número ainda não esclarecido de pessoas que pode chegar a mais de 400, moradoras das periferias pobres, tanto na capital quanto em cidades do interior do Estado de São Paulo.
http://www.ovp-sp.org/lista_mortos_2.htm
E o processo violento de “revitalização” do centro de São Paulo, muito bem documentado nesse site:
http://dossie.centrovivo.org/Main/HomePage
Rafael, por que o blog da Petrobrás é gangsterismo?
Eu sinceramente gosto daquele blog, no que ele ferra com a tentativa de manipulação da imprensa burguesa.
Está clara a tentativa da direita de atacar a Petribrás para atacar o governo federal e minar a própria Petrobrás. É um jogo político. (não estou entrando no mérito de ser contra ou favor do governo federal)
Quem eu li que chamou o blog da Petrobrás de “terrorismo de Estado” foi um dos filósofos porta-vozez hoje em dia da direita mais reacionária, o Roberto Romano. Ele poderia ter chamado de gangsterismo também.
O que há de terrorismo e gangsterismo em publicar as perguntas dos jornalistas com as respostas dada pela empresa?
Ora, que todo mundo faça o mesmo. Que a informação se descentralize. Que acabe o monopólio da imprensa burguesa. Eles se acham acima do bem e do mal e com direito de manipular dados e respostas.
Em meio a toda ebulição que a greve na usp nos últimos dias tem gerado, é extremamente importante que façamos reflexões como esta. Nesse caso, enquanto as demandas e reivindicações não forem estendidas à população, enquanto não se tentar criar espaços de confluências entre as tantas lutas fragmentadas, todos esses momentos de efervecência não passarão de agitações momentaneas e viciadas. É preciso aproveitar esses momentos para, na prática, estabelecermos alianças de solidariedade e, em outro plano, refletirmos sobre nossas formas de atuações. É urgente que comecemos a nos organizar a médio, longo prazo, não mais apenas de maneira reativa, precisamos tecer os laços entre essas lutas. O Sintusp me surpreendeu nesse último ato fazendo um chamado à comunidade de Paraisópolis e a tantas outras. Pela primeira vez vi uma tentativa de amarrar e somar às lutas nesse sentido. E isso precisa ser registrado, porque geralmente, mesmo um sindicato combativo como o dos funcionários da usp, dificilmente extrapola a margem de suas reivindicações pontuais e percentuais de salários. Muito me animou uma atitude como essa, espero que seja só o princípio de uma nova tendência e, tomara que não só desses trabalhadores, mas de muitos outros.